Por Fabio Rodrigues Filho
O curta-metragem O Delírio é a Redenção dos Aflitos, dirigido por Fellipe Fernandes, acompanha o estresse acumulado de uma mulher há uma semana sem (poder) dormir. Ela, moradora de um apartamento popular de um conjunto habitacional prestes a cair sob sua cabeça, em meio ao já abandono do local, entre se despedir de seus vizinhos, capim crescido e um cemitério de automóveis, tendo ainda de cuidar e dar conta da filha pequena, depende da ajuda de um amigo do atual namorado para fazer a esperada-necessária mudança marcada para noite. Entre poréns, promessas e sonhos, a narrativa se passa em um dia e tem seu desfecho na sombra da noite.
O filme aproxima-se da personagem e da sua tormenta rastreando-a pela casa, no trabalho e numa anti-ceia natalina com as amigas. A câmera – quase sempre na mão – é perspicaz e íntima, segue e observa a personagem. Sem poder contar com ajuda do pai de sua filha (que a abortou), “abandonada” pelo namorado que não cumpre o combinado, e acometida há uma semana por um pesadelo-delírio que, ao tempo que perde seus cabelos, deixa sua cabeça em carne viva, ou melhor dizendo: em vaginas sobrepostas (atestando talvez uma defesa e posicionamento desse delírio quanto às questões e dores de gênero). Esse sonho/pesadelo é a única coisa que a permite respirar; trata-se aí do delírio. Um descanso na loucura. A câmera se aproxima lenta e instaura o delírio.
Funcionária de um lojão que vende de tudo, em especial luzes e objetos natalinos; trabalha em luzes enquanto sua cabeça pisca de estresse. Inquieta: não está em nenhum lugar, só precisa se mudar. Ou o caso da personagem, mais do que mudar, seria talvez o descansar?
A mudança é sintomática e é a síntese do acúmulo de problemas, responsabilidades, abandonos e estresses. A promessa-conselho de uma dormida pleníssima nas vésperas do natal proferida por sua amiga não parece, num primeiro momento, abalar a personagem frente ao bombardeio de conselhos e questões no seu happy hour pop natalino. No meio das duas amigas, a personagem se descola da realidade (e da virtualidade). O cansaço é sempre cansaço. Descola de saturada. Exaurida: não entra nas coisas, precisa sair de casa com sua filha.
Loja cheia, bairro vazio – evacuado. Trabalho iluminado, casa sem luz. Terra ociosa, gente sem casa. Colchões bons e gente com sono. Na teia de contradições e irrealidades do real, a personagem dá lógica ao ilógico. Rompe distâncias. A quebra da porta da loja e a necessária noite de sono abandonam o delírio e aproxima-se da utopia. Se existe delírio, agora é com o filme e não mais da personagem. O fato é que numa madrugada sem mudanças e sem favores, sozinha e atormentada pelos ruídos do mundo a cair sobre sua cabeça (e de sua filha), a personagem caminha nas ruas de Olinda com sua cruz-filha-princesa no colo. Resplandece na noite a vitrine da loja de colchões. A personagem conversa com sua filha, embora a gente não ouça. O estrondo da quebra da porta turva o “sossego” do mundo (ou somente a placidez da loja – dado nosso ângulo), ela atravessa descalça os estilhaços, e dá sossego pra si e para a filha. Elas dormem e parece simples dormir.
O filme passa rápido em seus vinte e um minutos e também se mostra simples (ou sintético) em sua enorme e instigante complexidade. Embora perpasse por vários temas, mantém seu eixo. Na proximidade filme/personagem, as questões se corporificam(de gênero, classe, trabalhista…). A montagem corre contra o tempo, como quem quer que sua personagem – motivo pela qual ela existe – descanse. O filme distancia-se deste engajamento, no entanto, em dois momentos: quando coloca a câmera dentro da loja de colchões e na escolha do título. Distâncias que também podem ser potências, não nego. O que está em jogo, me parece, é que, no caso do título, ele rompe com a proximidade com a personagem (ou na pior das hipóteses, traia a proximidade) para fazer um juízo moralista, mesmo que ele instaure uma metáfora com o natal e o anti-cristo que protagoniza o filme. De novo me retorna a questão de não se tratar de um delírio, muito menos de redenção. O título desemboca na câmera parada dentro da loja de colchões (ou vice-versa), o filme distancia-se quando a personagem decide agonizar. O que está em jogo em O Delírio é a Redenção dos Aflitos é a utopia, não o delírio; é a liberdade, não a redenção.
A exaustão com o acumulo de opressões interrompe o delírio da personagem: seu cabelo está caindo, mas o prédio é que vai cair agora por seus rangidos. Entre pesos e medidas, opressões e dores acumuladas: a luta. Ainda que a lutadora “não se saiba” lutando. Ela abandona o delírio. A exaustão tem limites e tem suas urgências. Exaurida, simples como dois e dois são quatro, a personagem quebra a vidraça, rompe o delírio e descansa no que é seu por direito humano (e, portanto, político). Ainda com as distâncias, O Delírio é próximo da utopia da sua personagem.
* Esse texto foi escrito após a exibição de O Delírio é a Redenção dos Aflitos na ocupação do Centro de Artes, Humanidades e Letras (CAHL/UFRB) pelos estudantes. Agradeço de coração a Fellipe Fernandes, por disponibilizar o filme para exibirmos numa sessão cineclubista que integrou a programação da ocupação no dia 18 de novembro (https://goo.gl/22EiwGcontent_copy);