ELLE

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Por Matheus Leone

O Segundo Sexo”, escrito pela filosofa francesa Simone de Beauvoir, é um livro seminal para a construção do movimento conhecido como a segunda onda feminista, no qual a autora expõe a opressão de gênero através de uma recapitulação histórica. Esse livro é referenciado em Elle quando a protagonista, Michèle LeBlanc (Isabelle Huppert), repreende o ex-marido Richard (Charles Berling) por namorar jovens mulheres que o leram. Trata-se de uma provocação nada velada, como de praxe nas obras de Paul Verhoeven – um dos mais célebres autores europeus absorvido por Hollywood, responsável por grandes sucessos de bilheteria como RoboCop: o policial do futuro e Instinto selvagem, realizando aqui seu terceiro filme desde o retorno à Europa –, mas que vai muito além de um comentário resoluto em si. A citação ao livro dialoga abertamente com a principal crítica da terceira onda feminista sobre o movimento originário – por ele não contemplar as múltiplas vivências femininas possíveis –, assim como reforça o conceito de que Elle conta uma história sobre uma vivência em particular.

Temos em Michèle um interessante caso de interseccionalidade: enquanto goza de uma posição de poder na codireção, ao lado de sua amiga Anna (Anne Cosigny), de uma empresa de games eróticos, ela é abertamente hostilizada pelo diretor criativo e de facto desenvolvedor dos jogos, Kurt (Lucas Prisor). No entanto, ela não se deixa ser intimidada por ele e, de um modo geral, demonstra estar no controle de suas relações interpessoais que também incluem seu filho, um ex-marido, um casal de vizinhos e um namorado secreto. Essa aparente segurança é abalada logo na primeira cena do filme, quando Michèle é estuprada em sua casa por um invasor misterioso.

Sendo o estupro o primeiro contato do público com Michèle, o roteiro (de David Birke, baseado no romance francês Oh…, de Phillipe Djian) trabalha de trás para frente na construção da protagonista, como numa espécie de reaquisição identitária após rotulação imediata. Bem distante da noção de “thriller de vingança” que existia sobre o filme na época em que ele ainda estava em produção e mais distante ainda da “comédia de estupro com vingança” que algumas das primeiras impressões reportavam após sua exibição no Festival de Cannes deste ano, Elle opera mais ou menos na mesma frequência de Aquarius (outro filme exibido na mesma edição do festival e estrelado por uma atriz com mais de 60 anos), no sentido que a história sempre retorna ao conflito que estrutura a narrativa, mas sem deixar com que ele defina totalmente o filme e, consequentemente, a vida de sua personagem principal. A própria construção do suspense sofre diversas ressignificações para melhor comportar as questões diretamente ligadas à psique de Michèle, hierarquizando-as acima dos eventos de fato, incluindo a violência sexual.

O posicionamento naturalista da direção de Verhoeven enfatiza esse enfoque na construção da personagem, enquanto que muito habilmente também sugere possíveis versões para o whodunnit com base na expectativa do entendimento do público nas construções de gênero – “gênero” empregado aqui tanto no sentido da construção social de feminino e masculino, quanto nas convenções do próprio cinema de gênero. A escalação de Huppert se encaixa perfeitamente nas intenções metamórficas de Elle, sendo ela provavelmente a atriz, entre atrizes e atores, que melhor demonstra perceber e se adaptar às sensibilidades específicas de um filme no cenário cinematográfico contemporâneo – do rigor lacônico de A professora de piano à leveza despojada de A visitante francesa. A parceria entre essas duas potências resultou num estudo de personagem complexo que se complica a cada explicação, a cada nova contradição.

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