Por Thacle de Souza
Este não é um momento célebre. Não é um cinema da felicidade. A crítica, ela mesma, parece perder o sentido de leitura individual para uma construção de mundo coletiva. É uma expressão de dor que se instala. Não só pelas escolhas de narrativas fílmicas em seus aspectos dramáticos, mas também pelas frustrações que se instalam no cotidiano compartilhado. É uma tristeza política. É uma tristeza humana. O fora de campo que surge nos planos fixos é uma prisão natural. Em Os Cuidados que se tem com o cuidado que os outros devem ter consigo mesmos, de GustavoVinagre, é uma imagem simbólica para tanto. Um pé contra a parede, uma revisão espacial – deitado, a ferramenta do movimento, imóvel. As vozes não conhecemos, sentimo-las, uma a uma, fixadas sem a vista ou referência, de pessoas diferentes no mesmo espaço, refaz um cenário de presenças invisíveis, posturas ocultas ante o recorte que o ambiente social faz de nós. Tentando não se alienar. Inertes? Acessando o exterior a partir de pequenas células quadriculares de uma grade à janela. Pequenos espaços entrelaçados, como frestas para nos relacionarmos com o outro. Cortando cebolas: imagem-função, trivialidade, uma potência de imagem que existe como um devaneio breve, embora choremos
O que perfaz esses textos fílmicos na angústia da criação não é puramente a crítica na possibilidade de elencamento de temáticas e forma, mas a realidade política e a motivação que proporciona as leituras e as escolhas diárias. É o choro de Tan no Cuidados, a voz de Cida Moreira. Mesmo Jonas, carregado de energia, na fruição eterna de pequenos momentos da infância e a esperança que se espera carregar é atravessada pelo alvoroço que uma certa realidade obriga a fazer. A infância morre. Se a tensão na forma fílmica surge fora do quadro, como no estourado daquilo que está fora da janela no filme do Vinagre, é exatamente aquilo que está fora do nosso alcance, não só da vista, como da própria força de ação ou noção crítica da vida. Em Jonas e o Circo sem Lona, de Paula Gomes, a relação entre diretora do filme e o “diretor” do circo tem uma rara afinidade. Levados a uma construção tão entrelaçada, um sentido de proximidade. Paula diz a Jonas que o filme não é tudo, o circo não é tudo. A escola surge contra o circo em um sentido não menos esperado. O rigor do sistema educacional afasta. É assim que a diretora da escola não recomenda o documentário. Um gesto de demarcação. O filme é levado pelos acordos da mãe, cujas cenas sempre surgem como um certo despertar de materialidade – uma força do ato –, um suspeito enfrentamento entre a realidade, a ficção, a encenação, a câmera… e outra vez ela, personagem ou mãe, ambos, e o filme levado por uma doçura áurea e por rasuras no desejo infantil e a imobilidade que o futuro social prega com suas insurgências. No campo fílmico, em dado momento fruindo o envolvimento, outrora sendo levados pela tensão crescente do cinema handyca(também em Cuidados): em Buscando helena, de Roberto Berliner e Ana Amélia Macedo, a imobilidade – essa da câmera-tátil que dispersa o olhar contra os motivos, pendendo enquanto a ação se divide em fazer/ser sob a cena, também provoca um atrito das percepções temporais entre a imagem movente que respira e não se separa do corpo contra a fotografia, encerrando o ciclo com uma imagem estática – organizada lentamente sobre o fenômeno real. O título que traz o ano de 2004 provoca uma ansiedade das trivialidades que se instalam na família de classe média, o crescimento das crianças que vivem essa realidade e a outra, uma organização política-histórica que se desenrola durante os próximos doze anos. Buscamos sentido, se é filme; mas precisamos mesmo?
É sempre interessante pensar que a sobriedade seja uma enganação. Esse estado articulado das coisas que parece que vem antes de nós e para além de nós. O Estranho caso de ezequiel, de Guto Parente, é uma barreira que se espera romper, também é uma fuga de suas questões. A sensorialidade que o experimental propõe oferecer, essa não se separa da contação de história. Ganha força mesmo que não seja silente, que seja trivial. Se for um tipo de cinema inventivo, carrega um torpor na sua forma, uma indexação demasiado concreta de que aquela experiência é assim. Esse é um cinema da experimentação, esse é um cinema que prega pela liberdade da forma, ou pela sobriedade outra vez, travestida de outro corpo? A associação que existe no filme entre singelos atos para um longo tempo, é como pequenos insights de conexões narrativas. Pode ser onírico. Pode ser vazio. Pode ser o esvaziamento da recepção fílmica. Ao filme interessa tudo. Se existem camadas narrativas, comparem-se os filmes do Alumbramento, para uma busca eficaz pelas opções em ora “narrativizar”, ora partir por outros caminhos. Quando às vezes liberar é como se ater a uma norma para uma ideia de sensorial. Escapismo ou opressão à luz verde. Personagem ou sarcasmo lúdico do estado mental. Parece que não há ética em escrachar tudo. Mas parece que em vezes há rigor e geometria na forma fílmica. O abismo na encenação parece evidente assim que se inicia porque não muda mais, e a história está ali, mas com arestas específicas na linguagem cinematográfica. É isso. Com tudo isso, o filme precisa existir e investir em um contra-acordo da recepção, propulsionando o outro, como que descaso, como que diferente proposta.
A história de minha mãe se imprime em mim. A história de meu pai se imprime em mim. É uma realidade em que o tempo vagarosamente torna palpável para a visão violenta que é necessário ter. E é para tanto que as rupturas surgem das vivências e daí vem as opções de cinema e de linguagem. A animação Quando os dias eram eternos, de Marcus Vinicius Vasconcelos, surge como uma homenagem, em estrita relação emocional/confessional. Os ruídos (no grafismo e no som, que torna audível o ruído-imagem) como uma força incessante do tempo para aquilo que não controlamos. O Butô (a partir de performance de Kazuo Ohno) é uma opção de expressão de uma dor rastejante do corpo para o espaço e a dança, nessa linguagem do movimento, reforça essa imprecisão do traço. Do frame espontâneo que a animação proporciona. Desenho solto como a dança deve ser nesse filme, conforme as palavras de Kazuo, que o diretor reforça, assim como o processo de luto, ou um sobressalto de entender a dor do ato, a morte, ou a escolha que proporciona a dor. Em Constelações, de Maurílio Martins, é a incomunicabilidade na forma das línguas que não se encontram e o diferente tempo de projeção das dores de cada um, seja apontado para o passado na dinamarquesa ou para o futuro nesse jovem cujo fim é a vida. Talvez tenha sido contado de trás para frente: assim que nascemos ao submergirmos na água, nasce-se para uma repetição sistemática, a estrada, a desordem das línguas e das narrativas e das forças de poder.
É nesses espaços que a linguagem surge menos como regozijo; penetrando mais as dúvidas que
vivemos diariamente.