A IMAGEM VELADA – O INFORME LUMINOSO

"A Idade da Terra" (1980), Glauber Rocha

“A Idade da Terra” (1980), Glauber Rocha

 

Por Jacques Aumont

Tradução Fernanda Aguiar C. Martins

Revisão Eduardo Portanova

 

O Banho de Luz: um “Véu” Luminoso

É um nascer do sol, nada mais. Tema comum, até mesmo banal, no entanto se compreende o que nos é mostrado: não se trata apenas do retorno cotidiano do astro do dia. Algo de solene nesse nascer do sol faz pensar nessas civilizações das quais fala Norbert Elias[1], onde cada manhã um padre deve cuidar para que o dia comece bem: o sol aparece e é um milagre. Um pequeno disco laranja, que irrompe da montanha, muito lentamente se desprende dela, se transforma no mais claro, ergue-se ainda durante quatro minutos e finalmente inunda o céu, a imagem e nosso olho de uma pura intensidade tingida de amarelo. Nesse plano inicial de A Idade da Terra (Glauber Rocha, 1980), culminando em um banho de átomos dourados que deleitam a vista, sente-se outra coisa que uma simples fonte de luz ou a origem possível de uma lesão do olho. Esteve lá todo o tempo, antes de mim e antes da espécie humana, verá o fim, e se distancia da terra, a qual inunda, banhando tudo, desdenhosa ou soberbamente.

“O sol tal como a morte não se saberia olhar fixamente”: o aforismo de La Rochefoucauld não nos diz mais, porque sua retórica é visível demais. A invenção da fotografia o renovou substituindo o sol, ao mesmo tempo muito unívoco e dotado de símbolos, pela ideia de que em geral é a luz que se pode olhar. De fato, é um paradoxo muito antigo: a luz, que nos serve para ver, ou seja, para estabelecer com o mundo uma relação de conhecimento essencial para nossa existência (animal, mental e espiritual), a luz é um invisível. A história da fotografia, em seguida a do cinema e do vídeo, se depararam desde longa data (ou sempre) com esse dado opaco: eu não vejo a luz, eu vejo as coisas e as situações do mundo via a luz e sua ação sobre mim. As imagens, sobretudo, fotográficas (e aí inclusas as imagens moventes), que querem figurar a luz, são sempre particulares; o mais das vezes, elas são tomadas de viés, mostrando os efeitos da luz, dos reflexos, dos raios ou das faíscas luminosas. Olhar o sol com uma câmera é um tabu absoluto por várias razões, a começar pela ótica e a terminar pelo processo químico, como iremos verificar.

A entrada frontal da luz na objetiva e na imagem foi sempre vivida como um acidente, uma falha técnica, um erro que somente os iniciantes cometem, ou então um projeto de tal modo particular que se concebe apenas em virtude de um desejo de expressividade. Quando no fim de A Morte num Beijo (1955), em plena guerra fria, Robert Aldrich quer metaforizar a explosão tão temida de uma bomba atômica, ele não encontra outra figura senão um excesso de luz. A caixa contendo o mineral mágico se abre como uma caixa de Pandora, inexoravelmente, e uma luz branca insustentável se apodera da imagem, queimando a figura e, eventualmente, a personagem. Trinta anos antes, na época muda, uma luz tão viva foi pensada como forte e absolutamente transcendente: no prólogo do Fausto (1926), de Friedrich W. Murnau, buscava-se romper as trevas do Mal, raios luminosos tocavam os cavaleiros do Apocalipse, em seguida de modo insistente faziam aparecer uma pura bola brilhante, pouco a pouco diferenciada em jatos luminosos até finalmente tomar a forma de um homem ou de um anjo. O que surpreendia não era o arcanjo com seu gládio, porém a audácia luminosa que substituía o arco elétrico de Deus mesmo, nos deslumbrando olhos e alma.

As bolas de luz fascinaram ainda durante muito tempo. Em 1969, Federico Fellini adapta o romance de um velho autor latino. Após várias desventuras, Encolpio, um dos dois jovens heróis do Satyricon, é conduzido a um labirinto, não tem dificuldade para sair, cai no meio das festas de Momus, o deus do Riso, e desemboca em uma vasta arena empoeirada, onde deverá afrontar um gladiador mascarado de Minotauro, bem ao gosto dos espectadores. Na saída da caverna, uma esfera luminosa o cega, e nós com ele. À medida que avança brilha cada vez mais, atravessando a poeira e a vibração do ar queimando, no fim a imagem não é nada mais senão luz, uma névoa de luz propagada em todo o espaço. Como em Murnau, estamos em um filme de estúdio, com cenários e pesadas maquiagens, com uma ficção irrealista, que sublinha a densidade da enunciação. De Murnau a Aldrich e Fellini, através das épocas e dos estilos, uma mesma ideia de figuração: a luz pode anular a visão e, por conseguinte, a figura.

Há muito tempo aí estavam os efeitos calculados. No final dos anos 1960, foi preciso um filme singular para se encontrar um valor estético comparável a um puro acidente luminoso. Para filmar a travessia do continente por dois bikers, o diretor de fotografia Lázsló Kovács, não podendo alugar um veículo equipado e fazendo da necessidade uma virtude, fixou sua Arriflex sobre uma prancha diante de um Chevrolet Impala. E, em razão dessa bricolagem, em que a luz penetra a objetiva ao acaso – erro que Kovács e Dennis Hopper tiveram a feliz inspiração de conservar – confere-se a Sem Destino (1969) o ar de ter sido banhado por um fluido solar. O flare[2], obsessão do fotógrafo bem formado, vem a ser de repente elevado ao nível de objeto estético e expressivo, de forma graciosa, dotado de um sentido subliminar, porém fácil de imaginar: se os dois heróis se movimentam, sob essa fonte maravilhosa de sol, é porque misteriosamente são abençoados.

 

"Sem Destino" (1969), Dennis Hopper

 

Na verdade, não foi preciso aguardar 1968 para se perceber isso. Já no ano anterior, um filme multiplicava os efeitos de banho luminoso, expondo a objetiva da câmera a um sol africano. Mesmo se o fotógrafo do filme, Giuseppe Ruzzolini, era quase um iniciante, os barbagli de Édipo Rei (1967) de Pasolini são ajustados perfeitamente. A câmera olha o sol pela primeira vez durante o oráculo fatídico, introduzindo a cegueira imediata de Édipo, que se distancia tateando em uma multidão que ele não enxerga mais. Esses golpes solares, que cegam, voltam como uma espécie de deus ex machina ameaçador, de maneira sistemática e explícita, durante a longa cena do assassinato de Creonte. A luta selvagem de Édipo com cada um dos guardiões, o assassinato do idoso desarmado são pontuados de violentos clarões de luz, imprimindo à figuração um caráter incerto ao modo de pontilhados. No último golpe de espada, através do corpo do rei sem defesa, a luz má, sempre manifestadamente celeste, se torna azul: não é nem mesmo mais o sol, é a maldição em estado puro.

 

"Édipo Rei" (1967), Pier Paolo Pasolini

“Édipo Rei” (1967), Pier Paolo Pasolini

 

Murnau e Fellini tinham requisitado cada um a seu fotógrafo programar a invasão da luz; Hopper a aceita de modo acidental (como apontado anteriormente); de maneira genial, Pasolini opera os dois modos ao mesmo tempo. O efeito se produz diferentemente, seu valor é outro, apresenta-se como elétrico ou cai do céu ostensivamente, aqui benéfico, lá melancólico ou nefasto, e quase sempre conotando uma divindade ou ao menos uma espécie de além. Muito cedo, os filmes que imitaram essa figura buscaram se desfazer desses pesos simbólicos, porém isso ocorreu a fim de descobrir outros. Com trinta anos de intervalo, dois filmes descobrem a mesma inspiração figurativa, fazendo desses reflexos o meio de fabricar a mesma forma inesperada, a de uma esfera, na ótica complexa das lentes modernas. Em 1976, em A Morte de um Bookmaker Chinês, de modo cômico e fantástico ao mesmo tempo, John Cassavetes e Al Ruban criam uma imensa esfera luminosa vermelha flutuando acima do herói, “o fenômeno figurativo o mais intenso e estupefato da sequência, a saber, do filme” (um fenômeno de difração, avermelhado pelo filtro que recobre a objetiva nesse momento), uma forma que “associa economia plástica e figuratividade mítica” e “trabalha em uma virada simbólica[3] ». Em 1997, em Felizes Juntos, Wong Kar-Wai mostra um jogo de futebol numa rua de Buenos Aires, filmado em contraluz, terminando ele também com a aparição de uma enorme bolha translúcida, que fica por dez segundos ligada ao herói, e da qual se poderia dizer quase a mesma coisa.

 

"A Morte de um Bookmaker Chinês (1976), John Cassavetes

“A Morte de um Bookmaker Chinês (1976), John Cassavetes

 

Cassavetes e Kar-Wai, com suas esferas de luz sólida e leve, põem em princípio que o acidente luminoso é suscetível não apenas de inundar o campo e de compor a imagem ou de sugerir a intervenção de um além-sobrenatural, pagão ou divino, mas igualmente de produzir objetos. Objetos flutuantes, incongruentes, estranhamente inquietantes ou estranhamente familiares (uncanny ou eerie), aos quais dar-se-ão nomes de objetos reais ou que, ao contrário, deixar-se-ão na indeterminação de um puro acontecimento visual. Dario Argento retomou a ideia de Cassavetes de modo bastante literal: quando explora a casa do crime, em Prelúdio para Matar (1975), o jovem pianista se vê duas vezes enredado em um círculo irisado e translúcido, que será seu escudo protetor nessa empresa perigosa. Quase na mesma data, em outro continente, Peter Weir (A Última Onda, 1977) se utiliza de faróis de um automóvel sob a chuva para dar à luz a forma esculpida de um pequeno tingimento protetor: a metáfora está criada e, dessa vez, sem ambiguidade, a luz é defesa e não agressão.

 

"Prelúdio para Matar" (1975), Dario Argento

“Prelúdio para Matar” (1975), Dario Argento

 

"A Última Onda" (1977), Peter Weir

“A Última Onda” (1977), Peter Weir

 

Em todos esses exemplos, a luz é paradoxal: ela tanto vela quanto ilumina; ela dissimula revelando – e sempre, com um abono simbólico manifesto. Utilizar-se de dispositivos sábios de iluminação, como o fazem Fellini e Rotunno, Murnau e Hoffmann, é colocar sua mestria técnica a serviço da expressão, fazendo isso precisamente: transformar o que deve iluminar no que dissimula, no que vela. Algo diferente é o acidente feliz ou desejado, que se aprendeu a dominar. O brilho provém da lente da objetiva: um véu recobre a imagem de modo parcial, em seguida pela interposição de uma ótica entre a realidade e a superfície que registra sua imagem analógica. Um velar técnico de algum modo. Ora, como todo médium, o filme depende de sua técnica para sua própria existência, a da imagem autômata ordinária, na origem de sua invenção, mas também para sua existência expressiva.

As luzes excessivas encenadas como parte do cenário, os brilhos acidentais, logo desejados, são uma das manifestações dessa dependência, e não desapareceram com a evolução das técnicas, mesmo se privilegiei exemplos entre o fim da modernidade e o fim da película. Ademais, tornaram-se ainda mais desejadas, dominadas e conscientes. J. J. Abrams, discípulo de Spielberg obcecado como ele pelas iluminações surpreendentes, se obstinou a perpetuar esse jogo nos filmes rodados no formato digital (Super 8, Star Trek), onde ele próprio reconhece que não há uma mão morta, ao ponto de ter criado brilhos produzidos fora do campo e não na objetiva: “The flares weren’t just happening from on-camera light sources, they were happening off camera, and that was really the key to it. They were all done live, they weren’t added later. It became an art because different lenses required angles, and different proximity to the lens. Sometimes, when we were outside we’d use mirrors. Certain sizes were too big… literally, it was ridiculous. It was like another actor in the scene…[4]” “Outro ator na cena”: qual a melhor forma de resumir essas aparições luminosas, desejadas ou sentidas, pesquisadas ou aceitas? Com essas figuras, estamos a meio caminho das duas concepções majoritárias da imagem de filme: o índice e o simulacro.

 O Velamento – Luz e Processo Químico em sua Origem

Volto ao início dos anos 70, muito precisamente a 1972. Após ter realizado uma série de filmes que exumam páginas escondidas da história do Japão contemporâneo, o cineasta Shohei Imamura quebra um novo tabu, partindo em busca dos “soldados perdidos” da guerra: aqueles que se estabeleceram em um dos países, pelo exército japonês nos anos quarenta, e que foram considerados desertores ou desaparecidos. Dentre eles, um retorna a seu país. O filme o mostra, fazendo parte de sua indignação, que se tenha podido o registrar como morto; um dos funcionários que o acolhe se desculpa: “as lembranças são nebulosas”. Ora o que surpreende nessa cena é que a película, quanto a ela, não está fora de foco mas velada: um fantasma avermelhado amedronta longamente sua margem direita, sobrevindo, desaparecendo, voltando, com insistência.

Os cineastas amadores desses anos duvidavam desse véu involuntário, em geral fruto de um acidente, fora ou não do carregamento da película. Assiste-se a este nos filmes de família, e também em certos filmes pessoais de artistas underground. Quando, em meados dos anos 1960, Jonas Mekas vai ver seus amigos, Stan Brakhage em sua casa do Colorado, ele faz dessa visita um longo episódio de seu jornal filmado (Walden, 1973). Em várias retomadas, o sol filmado de face inunda a película, embranquece a tela ou a torna vermelha. Em um pequeno episódio onde Jane afaga seu cavalo, a imagem inteira se tinge de um marrom avermelhado e móvel, depois o plano muda, sempre na mesma tonalidade, e retoma as cores de um 16 mm normal. Mekas mantém esse acidente no filme, porque para ele o importante é o registro sem trucagem de uma realidade poetizada e não retocada. Em uma estética da manifestação do afeto, traz o traço visível desse imediatismo: é um indicador de verdade. É certamente assim que se entende Imamura: os soldados “sem retorno” não podem existir, uma vez que testemunham a possibilidade, para um soldado japonês, de não morrer a serviço do Imperador e de sobreviver ao fracasso. No momento mesmo em que aquele que está “de retorno” descobre que seu desertar com a morte foi dissimulado, um acaso magnífico faz com que essa cena crucial, em que “as lembranças são nebulosas”, seja habitado por um fantasma vermelho. Fantasia da História, e sangrando como ela: o acidente é belo demais para que um cineasta também amador de metáforas como Imamura sonhe se desfazer, ao contrário, forçosamente, ele terá experimentado a secreta ironia.

O cinema registra de modo convincente, uma vez que dotado da aparência das coisas registra seu movimento. Conhece-se essa problemática teórica sempre retomada como, por exemplo, a famosa frase de André Bazin sobre o objeto “apreendido no instante”[5]. Eis o tema da imagem cinematográfica como imagem indicial, quase no sentido forte de Peirce: ela compartilha certas qualidades com seu referente, antes de tudo a qualidade temporal. É também o coração do realismo fenomenológico, não apenas de Bazin, mas antes dele, de Epstein e, ao mesmo tempo que ele, de Morin e de Kracauer: o filme me oferece uma imagem, mas essa imagem participa de “algo” da realidade filmada. Ora, o suporte mesmo da imagem – sua materialidade de médium –, se isso permite essa coparticipação essencial ou existencial é também o que a ameaça permanentemente: eis em que consiste a lição do véu de Imamura e daquele de Mekas.

No mesmo momento em que Mekas ia ao Colorado, Andy Warhol filmava em seu estúdio uma série de longos beijos – longos como uma bobina de filme 16 mm, três minutos e meio. O respeito da indiciabilidade do filme era absoluto: uma vez escolhido o quadro e a iluminação, não se intervinha mais, e o contato dos lábios devia apenas se prolongar. Não “se” intervinha mais, porém o médium, quanto a ele, intervinha, e no final de cada bobina, como em Walden, um véu nascia, flutuava, lentamente invadia toda a imagem e o anulava; depois, pouco a pouco, dessa massa branca surgia uma outra imagem, se tornava precisa, finalmente se impunha na duração de uma nova bobina. Como habitualmente em Warhol, as qualidades do médium são expostas cruamente, ao ponto de se tornarem parte do projeto da obra; em Kiss (1963), trata-se tanto de filmar um gesto comum, o beijo na boca, quanto mostrar o que é a duração da imagem cinematográfica: um tempo contínuo, sem falha, de todo modo incessantemente ameaçado de anulação se se confere à materialidade do médium a possibilidade de se manifestar. (Kiss foi rodado quinze anos após A Corda, onde Alfred Hitchcock, que deixava igualmente passar a toda velocidade bobinas inteiras de filme, ao contrário, cuidava de dissimular a passagem de uma à outra.)

 

"Walden" (1969), Jonas Mekas

“Walden” (1969), Jonas Mekas

 

No caso de Imamura como no de Mekas ou de Warhol, um acidente de filmagem é aceito, conservado, transmutado em signo – ambíguo como todo signo visual, do qual nunca se sabe se ele se contenta em deixar ver, se mostra ou mesmo comenta. Integrar o acidente de filmagem a um filme é um gesto que se tornou corrente desde a modernidade, mas um acidente como esse vai se opõe, bem mais que o flare ou os barbagli, a uma ideologia baseada na correção técnica: o sol pode penetrar na câmera, pode-se o tolerar porque isso não põe em causa uma ideia da filmagem como passeio de um olhar sobre o mundo; mas a película, quanto a ela, não possui o direito de ver o dia (no sentido literal como no sentido segundo) de outro modo senão via a objetiva. O sol está lá quando eu filmo, mas a película se supõe a esquecer; a mostrar, mesmo indiretamente, em um filme, constitui uma transgressão, retirando o filme do contexto industrial, onde a perfeição técnica e sua demonstração permanente são garantidas. Um filme conserva velamentos, que se trate de um documentário ou, como no início de One PM (Jean-Luc Godard, 1971) um ensaio político, dá-se como um enunciado pretendendo violar as regras ou então cujo conteúdo é tão essencial, que pode justificar uma forma imperfeita, repleta de erros.

De fato, é no cinema experimental e poético que se encontram esses véus da película em abundância. No fim do período underground, Fuses (Carolee Schneeman, 1964-67) multiplica os obstáculos no olhar; arranhões, raspagens, decupagens, negros, tudo serve para tornar difícil a percepção do que de todo modo se deseja dar a ver. Por encantamento ou por saturação, os véus chegam então como que naturalmente, sem que se os separe de todo esse trabalho de poetização. O véu possui uma sedução irresistível. Ainda em 1976, Roslyn Romance, o poema criado por Bruce Baillie, em memória de sua mãe, cede à sua atração, e declina dele toda a gama absolutamente: luz na objetiva através da folhagem, reflexos passando sobre fotos antigas e fazendo surgir fantasmas, explosões de luz desfiguradoras até o véu vermelho ou laranja[6]. É evidentemente no filme poético e pessoal, fora do institucional, que essas intervenções selvagens da luz e da química encontram seu lugar mais naturalmente, uma vez que tais filmes jogam com toda espécie de intervenções sobre a imagem. Como diz o comentário enfático de Noguez, An Avant-Garde Home Movie de Brakhage “vale, sobretudo, por um feliz acidente: a película utilizada, sendo salva de um incêndio, resultava na revelação de imagens azuladas, salvo em seu centro onde as cores permaneciam puras. Isso, acrescentado ao emprego das sobreimpressões, contribuindo para fazer ‘de um dia na vida dos Brakhage […] uma selva de linhas móveis, corpos saltando, crianças correndo, bobinas de filmes em turbilhão, tudo isso em cores vivas”.[7]

 

"Roslyn Romance" (1977), Bruce Baillie

“Roslyn Romance” (1977), Bruce Baillie

 

Mas existe toda uma outra genealogia do velamento. Em 2013, a Coreia do Sul homenageia seu mais antigo cineasta vivo, o veterano Im Kwon-Taek, que realiza seu centésimo primeiro filme, após pouco mais de cinquenta anos de carreira. Em um país onde a preservação das cópias de filmes, a saber, a simples existência de arquivos cinematográficos, é uma realidade recente, encontramos apenas cerca de um terço de sua obra para essa retrospectiva, e certas reproduções sofreram com o tempo visivelmente. De Mandala (1981) ou de Genealogy (1978), a cópia que serviu para fabricar a edição DVD exibe, por vezes, uma respiração avermelhada, um sopro flutuante sobre a imagem: um véu, que provém, não de um acidente de filmagem, mas da preservação do filme. Fantasma ainda, e dessa vez, em um sentido literal.

Visualmente, o efeito é o mesmo: uma camada colorida, com formas indecisas, propagada sobre a imagem desigualmente, a obscurece, e às vezes parece lhe imprimir um comentário irônico. Todavia, diante desses “antigos” filmes famosos, como tantos testemunhos, não se deve acreditar que foram retirados da ruína. Aqui o véu diz respeito ao conjunto dessas manchas claras, encontradas de modo frequente nos filmes ainda mais envelhecidos (em película de nitrato). Em um caso como no outro, a química da película, sua estrutura granulada à base de sais de prata fotossensíveis, é traída pelo véu, mas a morfologia da infração é muito diferente. O véu vermelho é uma espécie de viragem (no sentido onde se entendia a colorização dos filmes na época muda), cujas formas evocam uma ligeira bruma flutuante, quando as decomposições procedem por manchas parecendo sólidas, compactas, cedendo a um imaginário do ataque, da destruição ao invés do simples velamento.

A cópia decomposta, a conhecemos, é boa para ser trabalhada. Outrora, acontecia que se a projetava em uma cinemateca (na de Paris em todo caso, na época de Langlois), quando o filme era tão raro que não se podia pensar em achar uma cópia melhor. Era preciso então assistir ao filme com esse suplemento indesejado, do qual todo o jogo consistia em fazer abstração o quanto possível. Velamento parasita, o qual não é surpreendente se a pós-modernidade tenha se empenhado em o tornar um objeto amável e modelável, como toda história e todo o resto. Uma obra típica desse ponto de vista é Decasia de Bill Morrison (2002), cujo título sintetiza decay e Fantasia significativamente: programa límpido, conduzindo o filme rumo a uma fantasia visual, renovando a de Disney na época da decomposição do nitrato. Na estética “acabada” da firma Disney se substituiu um estilo inquietante, onde o branco exerce uma conotação glacial de modo incessante, como se fosse um continente submerso do qual se gostaria de mostrar visões gerais.

 

"Decasia" (2002), Bill Morrison

“Decasia” (2002), Bill Morrison

 

Não por acaso a decomposição do nitrato começou a fascinar nos anos 1980. Eis a época em que os grandes arquivos cinematográficos se conscientizam do caráter altamente deteriorável do suporte película, da necessidade de o preservar e de restaurar os filmes, mas também a época em que se redescobre um grande número de cópias tingidas (ou sob o processo de viragem) de filmes mudos, e quando a onda em reproduzir essas tinturas se propaga, em novas cópias com cores por vezes tão improváveis quanto aquelas que uma restauração violenta o fez no Retábulo de Issenheim ou na Última Ceia de Leonardo. Paralelamente a essas operações de salvaguarda, museológicas ou menos museológicas (firmas privadas começam a perceber o interesse comercial dessas reconstituições), alguns artistas pressentem que a química da decomposição do nitrato pode ser um magnífico agente de criação poética “automática”. Com efeito, o que surpreende é o caráter extravagante dessas formas informais que esboça o desgaste sobre a película e seu caráter imprevisível. O repertório é sempre um pouco o mesmo – ou talvez são os artistas que se revelam muito fascinados pelo mesmo gênero de efeito, sobretudo os que afetam a figura humana, em torno da qual ou sobre a qual passam as formas improváveis que a química inventou: cometas geométricos, cristais salinos… Eis a época na qual Jürgen Reble e o grupo Schmelzdahin[8] experimentam (por uma vez, pode-se falar de “cinema experimental” de modo adequado) a decomposição provocada, arquivando a metragem encontrada e, alguns meses ou anos mais tarde, voltando a descobrir os estragos ou as maravilhas de um processo que o envelhecimento terá acelerado consideravelmente.

 O Véu Fílmico: Passageiro

Do véu solar, ainda proveniente do mundo, ao véu químico, surgido das profundezas da matéria, não se trata do mesmo processo, nem do mesmo efeito. Ambos (e até mesmo o filtro, que eu apenas menciono) têm muito em comum: esses efeitos óticos e químicos ocultam a imagem parcialmente, porém os mais interessantes são aqueles que não a ocultam absolutamente, e de algum modo acrescentam, flutuam sobre ela, hesitam a fazer parte dela verdadeiramente. No sentido forte, o charme dos véus luminosos e dos véus de película reside no fato de que, em ambos os casos, a imagem produz seu próprio véu.

Em termos estritamente visuais, esses véus pressupõem ao menos dois modelos: um na própria visão, antes de toda imagem, o outro na arte prínceps da imagem, a pintura. O ato de ver não ocorre sem seus momentos de vertigem, nos quais se perde o ponto onde o campo visual é invadido pela neblina, onde o sangue da retina passa ao primeiro plano. E o véu vermelho do aviador ou do corredor de fundo, podendo ir até ao desaparecimento e o “véu negro”. Outros distúrbios, mais misteriosos, mais raros, mais graves, produzem um véu branco, que conduz sempre à opacidade e à perda do visível. O véu fílmico flerta com esses diversos efeitos fisiológicos, com esses lapsos ou esses maus da visão que modificam, instantaneamente ou para sempre. Em Dragões da Violência (Samuel Fuller, 1957), um marshall míope é confrontado a bandidos que persegue; um plano subjetivo nos mostra o rosto do mau totalmente fora de foco, simplesmente privado de definição. Noutro extremo, em Ensaio sobre a Cegueira (Fernando Meirelles, 2008), uma esplêndida ideia de roteiro: a humanidade inteira é contaminada por uma doença misteriosa que começa por uma brusca tontura, extrema e tão logo permanente; vê-se tudo apenas branco. Ambos os exemplos, e aqueles que se poderia acrescentar (os casos onde o ecrã se colore de vermelho para golpear ou provocar uma crise cardíaca) revelam algo mais simples: a imagem (de filme no caso) só pode produzir um fenômeno físico e fisiológico o simplificando, o caricaturando, o tornando simbólico. Observa-se que os velamentos mencionados são de outra natureza.

Na pintura sempre se buscou um efeito comparável, que era preciso cada vez produzir, como todo o restante, deliberadamente, e “do exterior”: a simbolização é inerente à própria empresa pictural. A primeira solução é se valer de um acessório transparente ou translúcido, os mais banais sendo a cortina de gaze que flutua perante um objeto ou a névoa que o afoga, que vieram a ser no século 19 verdadeiros topoi, respectivamente da pintura de interior e da de paisagem. Ainda no século 20, obras como Double portrait (1912) de Umberto Boccioni ou, em um estilo mais fotográfico, o poético Wind by the sea (1947) de Andrew Wyeth expõem sua virtuosidade de toque produzindo “cortinas” leves, transparentes, móveis. Trata-se no fundo de uma ideia de cenário, que o cinema pode ter a tentação de copiar. Encontramos tecidos de véus nos filmes com as estéticas mais opostas como Dias de Ira (1943), de Carl Theodor Dreyer, deixando Ana aparecer através da tela esbranquiçada de seu bordado, ou Fome de Viver (1983), de Tony Scott, onde uma gratuidade de efeitos de luz retorna como uma escansão com a tule branca da sala de música (para citar apenas esses dois). Em ambos os casos, o jogo de véu eficaz permanece marcado sobre a ação, visivelmente fabricado.

A coisa se torna ainda mais interessante quando a pintura (cristã) concebe o véu como sendo um objeto fundamental, porém no registro do maravilhoso. Eis antes de tudo o mito, nascido na Idade Média, de Verônica – uma imagem obtida pela impressão, mas uma impressão mágica, que não mobilizaria nenhum pigmento. Hoje ainda, do “Santo Véu” de Manoppello pretende-se que não constitui nem pintura nem tecelagem, ademais, visível nos dois lados do tecido, do qual seria de algum modo consubstancial – ao ponto que alguns veem o Mandylion de Edessa, outros nada menos que um fragmento da mortalha do Cristo: estamos no sobrenatural ou na mística popular. Mais amplamente, para os pintores da imagem não produzida da mão do homem é um horizonte, e concretamente um desafio, que pouco relevou. A maioria das figurações do véu de Verônica mostra um rosto de face, bastante expressivo (aflito, sofredor, brilhante), mas ostensivamente pintado. O mais convincente de todos é Francisco de Zurbarán, cujas duas Santa Face, a de Estocolmo (ca.1631) e a de Valladolid (1658) conseguem confundir nossa percepção sugerindo a meia ilusão de uma imagem magicamente impressa. Ora, tanto uma como a outra exercem, para assim alcançar, o sfumato – técnica complexa que obriga a pintar em várias camadas deixando cada uma secar longamente. Assim sendo, em pintura, o efeito mais evanescente, a representação do mais impalpável são obtidos graças a um trabalho longo e meticuloso.

Vê-se em que a imagem de filme difere radicalmente. O banho de luz, o véu a invadir a película são instantâneos. Nenhum trabalho, nenhum prazo; nenhuma magia, nada de sobrenatural. Isso se produz imediatamente e resulta da física ondulatória e da química. Certamente é sempre o velho topos da indiciabilidade e do automatismo: a imagem fílmica “se beneficia de uma transferência de realidade da coisa sobre sua reprodução […] ela participa da existência do modelo como uma impressão digital[9] “). Não faltam exemplos de filmes que exaltam essa indiciabilidade e esse automatismo para produzir efeitos luminosos expressivos, por exemplo, o excesso de brancura com o qual R. W. Fassbinder trabalha em O Desespero de Veronika Voss (1982), Ingmar Bergman em Da Vida das Marionetes (1980), e antes deles Dreyer, em uma cena chave de Gertrude (1964)[10] ; ou o efeito de dissolução progressiva da imagem que Bergman imaginou para o final de A Paixão de Ana (1968), e que se reencontra em certos filmes “experimentais” como Freeze Frame (Peter Tscherkassky, 1983), o qual faz queimar a imagem ou Marylin Times Five (Bruce Conner, 1973), que aumenta o grão elementar; ou ainda os efeitos visualmente parecidos, porém profundamente diferentes em sua estrutura própria de vídeos como Chott-el-Djerid – a Portrait in Light and Heat (Bill Viola, 1979). Ou, em um gênero vizinho, os apagamentos de imagem em certos filmes fantásticos (por exemplo, A Guerra dos Mundos, versão Byron Haskin, 1953, que pela primeira vez realizou o truque do humano “apagado” pelos Marcianos).

"A Guerra dos Mundos" (1953), Byron Haskin

“A Guerra dos Mundos” (1953), Byron Haskin

 

O digital não deixou escapar sua chance nesse domínio, permite até mesmo uma mestria ainda maior, conjugando as virtudes da cinematografia (capta-se a luz tal como ela se dá) e as do desenho (pode-se retomar, corrigir, acrescentar à vontade ou quase). Uma das primeiras obras-primas rodadas com essa nova tecnologia, Arca Russa comporta ao menos dois planos refeitos em pós-produção, a fim de lhes conferir um véu cinza melancólico (o atelier dos túmulos dos mortos da guerra de 1941-45, e Catarina II saindo no frio). Há apenas o mar, de repente aparecendo na base do Hermitage, que não evoca qualquer velamento inesperado.

Para melhor precisar a figura do velamento, é preciso, pois, acrescentar à indiciabilidade e ao aspecto automático, um terceiro traço: o aspecto acidental (e seu corolário, a labilidade). O velamento em cinema – o velamento do qual falo, o que consiste em não revestir toda a imagem de uma camada semi-opaca à la Bergman/Dreyer – constitui um efeito que muda no tempo, sem cessar, então um efeito eminentemente cinematográfico. Não se calcula melhor esse caráter acidental do que em filmes que o imitam. Em Desejo e Obsessão (Claire Denis, 2001), enquanto o jovem biólogo americano é recebido em um laboratório que detém talvez a chave de seu trouble, sua interlocutora lhe faz um discurso pouco amável e o plano termina com um velamento laranja – menos de meio segundo, mas inesperado nesse contexto e também o menos acidental possível. Ainda mais ostensivo, e ainda mais artificial, há o véu com tez castanha, que intervém ciclicamente durante a longa errância de carro do herói de Brown Bunny (Vincent Gallo, 2004). Apesar de tudo, esses filmes não puderam evitar lidar com as cartas mestras da pós-modernidade, o simili, revelando a contrario um traço essencial do que realizam um pastiche: isso não se domina.

 Velar

O cinema inventou, meio-século mais tarde, se vangloriou como sendo a mais perfeita reprodução possível da realidade, do mundo. O velamento nos lembra que essa perfeição, em seu automatismo, está sujeita ao erro – um erro não humano e, além do mais, fascinante. O véu – e aqui, pouco importa que seja acidente luminoso ou acidente químico – é o que deixa advir, no tecido “sem costura” do filme ideal, uma falha, uma fissura. O que se vê nessa ruptura? O real ? Nada ? Um mundo de formas fantásticas livremente interpretáveis ? Sente-se que a resposta depende da ideia que se fez do cinema e até mesmo do cinematógrafo.

Emprego essa palavra de modo intencional, a qual Robert Bresson e Eugène Green opuseram nitidamente, como se sabe, ao cinema vulgar, que se contenta em fazer encenar fábulas com atores. Nessa concepção extrema, o cinema é muito simplesmente o que revela o real sob a realidade[11], e para ela o véu é uma incongruência: seja, caráter pueril de luz, acentua indevidamente e faz significar um dado do mundo, essencial, mas por essência mudo; seja, mácula de dissolução física, autoriza a matéria a se manifestar no mundo também ilegitimamente. Para a concepção mais oposta a essa aqui, a que valoriza da imagem fílmica sua qualidade de simulacro fabricado e dominado, ocorre o inverso evidentemente: o velamento consiste em uma, entre várias outras, modalidades dessa fabricação e desse domínio. Quando um dos pilares mais extremos dessa definição da imagem cinematográfica escreve que “a imagem fílmica aparece não como uma representação, mas como uma configuração da luz[12]”, apenas diz: o véu, qualquer que seja a sua natureza, empoeiramento ou decomposição, configura a luz, ou seja, o que cria forma a partir de um material paradoxal, o material luminoso.

É inútil buscar reconciliar essas abordagens, inimigas desde sempre (desde que se faz teoria do cinema), mas pode-se tentar as atravessar. Como nota com justeza Georges Didi-Huberman, as imagens “não são ilusão pura, nem verdade total, mas esse batimento dialético que agita conjuntamente o véu com a fissura.[13]” O que ocorre nos fenômenos que descrevi envolve ao menos dois possíveis:

  • A imagem cinematográfica e fílmica em geral é destinada, não a me dar o mundo (como o quer a ideologia do índice e da presença), não a me dar o equivalente artificial do mundo (como o deseja a do simulacro), porém a me dar uma percepção – uma percepção nova e um tipo inabitual sobre algo que não é o mundo, porém um mundo. O que ocorre com essas imagens veladas? Elas marcam uma intervenção a mais se comparadas à imagem fílmica comum: a intervenção sublinhada, entre mestria e acaso, do operador (com os flares); a intervenção estúpida e indesejada do material, com os velamentos. Isso fait style, sem dúvida, mas não o gênero de estilo que corresponde à minha percepção natural. Esse estilo, como todo estilo fílmico, é uma experimentação da percepção. Parece se limitar a experimentar as margens, as condições raras, as falhas, os fracassos – mas de fato se situando no coração da perceptibilidade, mesmo que seja a fim de testar de uma maneira um tanto grosseira, um modo de responder à proposição seguinte de Merleau-Ponty: “Um filme não se pensa, se percebe.[14]” O que acontece quando o que se percebe não é mais o mundo tornado imagem, mas a imagem se manifestando no lugar do mundo? Ocorre que somos conduzidos à “experimentação controlada, e não à experiência ordinária[15]“: um mundo a perceber nos é dado como são dados os mundos de cinema, mas esse mundo de repente nos exige uma performance mental e perceptiva inédita. Ele nos dá uma percepção nova.
  • De todo modo, essas infrações na imagem são também uma via desviada para repousar uma antiga questão: o que a imagem pode mostrar? E o que quer dizer exatamente “mostrar”? É para compreender como uma espécie de dizer implícito, de expressão visual? Ou a imagem não teria outro poder a não ser o de se nos apresentar muda? O que compreendemos quando pensamos ter entendido o que nos dá uma imagem do mundo? Ainda aqui as respostas oscilam entre dois extremos: a desconfiança em relação à imagem “véu” que recobre o real, o deforma (para consolar ou para enganar), segundo o velho tema platônico; ou a confiança que se pode lhe fazer como instrumento de exploração e de conhecimento, no fundo igual à linguagem. Um véu que se vela é quase límpido demais: aceitando esses velamentos de origem múltipla, a imagem aceitaria se designar como o que oculta o real e renuncia, pois, a dizer o que seja (ao benefício da construção de um mundo outro). Uma concepção “construtivista” da imagem pode ao contrário sentir, nesses velamentos, uma real franqueza, consistindo em confirmar que a imagem é construída, que ela quer dizer algo (eventualmente a propósito de si mesma).

O sol se ergue, interminavelmente, uma propagação de luz inunda os maus e arma os bons de poderosos escudos: são apenas interpretações, porque nenhuma imagem jamais fica sem algo a dizer (senão ao preço de uma perda). O suporte do filme vem assombrar a história, um dia toda matéria fará valer seus direitos na decomposição: sem mais nada a dizer, o velamento me apareceu, ele se manifestou em mim, revelando da obra de cinema o poder que toda obra possui: aparecer, vir me ver, se propor ao meu encontro[16]. O véu, o velamento são apenas um dos meios para o filme nos persuadir que ele está para nós.

Jacques Aumont é critico e universitario (professor emérito da Universidade Paris III – Sorbonne Nouvelle, diretor de estudos na E.H.E.S.S.), e ensina atualmente na École Nationale Supérieure des Beaux-Arts.

Fernanda Aguiar C. Martins é professora adjunta do Colegiado em Cinema e Audiovisual da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia – UFRB. Fundadora e Coordenadora do LACIS – Laboratório de Análise e Criação em Imagem e Som (UFRB/CNPq).

Eduardo Portanova  é jornalista, tradutor do francês e professor-pesquisador. Pesquisa assuntos na área da Comunicação, das Ciências Sociais (Sociologia do Cotidiano e Políticas Culturais), do Imaginário e do Cinema. Pesquisador do Imaginalis – Grupo de Estudos sobre Comunicação e Imaginário.

Referências Bibliográficas:

AUMONT, Jacques. L’Attrait de la lumière, Belgique/France : Éditions Yellow Now/ les Belles Lettres, 2010.

BAZIN, André. “Ontologie de l’image photographique”, 1945, Qu’est-ce que le cinéma?, 1, Éd. du Cerf, 1958.

BERTETTO, Paolo. Lo specchio e il simulacro. Il cinema nel mondo diventato favola, Milano: Bompiani, 2007.

BRENEZ, Nicole. “Couleur critique. Expériences chromatiques dans le cinéma contemporain” (1995), De la figure en général et du corps en particulier, Paris-Bruxelles, De Boeck, 2000.

DIDI-HUBERMAN, Georges. Images malgré tout, Paris : Éd. de Minuit, 2003.

ELIAS, Norbert. Du Temps (1984), France : Librairie Arthème Fayard, 1996.

GREEN, E. Poétique du cinématographe, France: Actes Sud, 2009.

MERLEAU-PONTY, Maurice. “Le cinéma et la nouvelle psychologie”, Sens et non sens, Paris : Nagel, 1948.

NOGUEZ, Dominique. Une renaissance du cinéma. Le cinéma « underground » américain (1985), Paris : Paris Expérimental, 2002.

WOERNER, Meredith. “J. J. Abrams Admits Star Trek Lens Are ‘Ridiculous’” Disponível em: http://io9.com/5230278/jj-abrams-admits-star-trek-lens-flares-are-ridiculous. Acessado em: 11.10.2015.

WITTGENSTEIN, Ludwig. Remarques mêlées, Mauvezin: T.E.R., 1990.

ZERNIK, Clélia. Perception-cinéma. Les enjeux stylistiques d’un dispositif, Paris : Vrin, 2010.

 

[1] ELIAS, Norbert. Du Temps (1984), France: Librairie Arthème Fayard, 1996, p. 63.

[2] Segundo o dicionário Larousse on-line, o vocábulo “flare”, proveniente do inglês “flare”, a saber, “flamboiement”, significa uma variação rápida e irregular da luminosidade de uma estrela. Por sua vez, no Oxford Learner’s Dictionaries on-line, o termo “flare” consiste numa luz ou chama brilhante, mas instável, de curta duração. Doravante, a palavra “brilho” será utilizada para designar “flare”, o que não impede a retomada do termo.

[3]BRENEZ, Nicole. “Couleur critique. Expériences chromatiques dans le cinéma contemporain” (1995) In. :_. De la figure en général et du corps en particulier – L´invention figurative au cinéma, Paris-Bruxelles: De Boeck Université, 2000, p.15.

[4]WOERNER, Meredith. “J. J. Abrams Admits Star Trek Lens Are ‘Ridiculous’”. Disponível em: http://io9.com/5230278/jj-abrams-admits-star-trek-lens-flares-are-ridiculous. Acessado em: 11.10.2015.

[5]O filme não se contenta mais em conservar o objeto tomado em seu instante como, no âmbar, o corpo intacto dos insetos de uma epopeia revolta (…). Pela primeira vez, a imagem das coisas é também a de sua duração e como a múmia da mudança.” BAZIN, André. “Ontologie de l’image photographique”, 1945, Qu’est-ce que le cinéma ?, 1, France : Éd. du Cerf, 1958, p. 16.

[6] Seu filme mais conhecido, All my life (1966), é um plano único, um travelling lateral de uma barreira de madeira onde se juntam rosas eglantérias, enquanto se escuta Ella Fitzgerald cantar a canção epônima; ele está em Kodachrome 16 mm, uma película cuja textura se reconhece entre mil outras, e um filtro amarelo recobre a película de modo incompleto (sobre um tanto de imagem não filtrada): o véu, dessa vez, é produzido, calculado, instalado; somos levados a interrogar o que ele significa.

[7] NOGUEZ, Dominique. Une renaissance du cinéma. Le cinéma « underground » américain (1985), Paris: Paris Expérimental, 2002, pp. 104-105.

[8] Esse nome poético é o imperativo do verbo dahinschmelzen, fundir (de alegria, de dor, ou fundir simplesmente); ele intima ou sugere no filme a ordem de fundir ou se fundir. (Grato a Christa Blümlinger.)

[9] BAZIN, André. “Ontologie de l’image photographique”, 1945, Qu’est-ce que le cinéma ?, 1, France : Éd. du Cerf, 1958, p. 25.

[10] AUMONT, Jacques.L’Attrait de la lumière, Belgique/France: Éditions Yellow Now/ les Belles Lettres, 2010, p. 55.

[11] “É no mundo concebido como realidade fechada que o homem contemporâneo escolhe os elementos a partir dos quais ele constrói para si ‘fantasmas’ […] O cinema lhe mostra esses mesmos elementos como fragmentos do mundo possuindo uma verdade intrínseca, mas lhe retirando a possibilidade de ‘fantasmar’” GREEN, E. Poétique du cinématographe, France: Actes Sud, 2009, p. 19.

[12] BERTETTO, Paolo. Lo specchio e il simulacro. Il cinema nel mondo diventato favola, Milano: Bompiani, 2007, p. 95.

[13] DIDI-HUBERMAN, Georges. Images malgré tout, Paris : Éd. de Minuit, 2003, p. 103.

[14] MERLEAU-PONTY, Maurice. “Le cinéma et la nouvelle psychologie”, Sens et non sens, Paris : Nagel, 1948, p. 10.

[15]ZERNIK, Clélia. Perception-cinéma – Les enjeux stylistiques d’un dispositif, Paris: Vrin, 2010, 48.

[16] “A obra de arte não quer transmitir algo senão a si própria. Do mesmo modo que, quando eu visito alguém, eu não desejo produzir qualquer sentimento, mas antes de tudo visitar – e ser eu mesmo o bem-vindo.” WITTGENSTEIN,Ludwig. Remarques mêlées, Mauvezin: T.E.R., p. 76.

 

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