Por Eduardo Portanova e Danilo Fantinel
Se a estética, matéria-prima do cinema, é o conhecimento pelo sensível, chamaremos de antirroteiro, nos inspirando em Ingmar Bergman e Jean-Luc Godard, o contraditório do roteiro. Mas não é nossa intenção esgotar – apontando o que é ou não antirroteiro – a análise de uma determinada obra, porque ela não se esgota, e porque, segundo Teixeira Coelho (1973), o fato estético possibilita apreensões variadas, tanto do mesmo indivíduo quanto de receptores vários. Por isso, também, é aberta, na acepção de Eco: “[…] cada fruidor traz uma situação existencial concreta, uma sensibilidade particularmente condicionada, uma determinada cultura, gostos, tendências, preconceitos pessoais” (1976, p. 40). Se analisássemos um filme para procurar nele um antirroteiro estaríamos deturpando a noção com que trabalhamos neste artigo, porque, no nosso caso, conta antes a impressão sensível do que o racionalismo desconstrutivista. “A significação do percebido é apenas uma constelação de imagens que começam a reaparecer sem razão” (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 38).
A forma analítica não pode criar um antirroteiro a partir de um filme tentando superá-lo. Não esperamos promover uma fase rígida de descrição e reconstrução de um filme com base em noções como antirroteiro, e sim tomar o antirroteiro como um contraponto, apenas. Logo, o antirroteiro, que é o tema deste artigo, origina-se do seu oposto, o roteiro. Para interpretá-lo como “anti”, é preciso compreender a necessidade do ilógico, e não jogar todas as fichas na lógica do pensamento. Esta lógica é representada pelo roteiro da tradição e, por isso, de espírito cativo, porque preso a essa mesma tradição. Já o antirroteiro, para ser ilógico, também precisa de um espírito, mas não cativo à tradição: livre. É um exercício da capacidade, e não do saber. Capacidade em alcançarmos algo de modo pertinente, apenas, parafraseando Nietzsche em seu aforismo 256 sobre a ciência (2005, p. 161). E não um saber lógico. O antirroteiro, ainda, é, como na fé, “uma adesão que se sabe além das provas, não necessária, tecida de incredulidade, a cada instante ameaçada pela não-fé” (MERLEAU-PONTY, 2014, p. 37). Trata-se do paradoxo entre o visível e o invisível, nos termos de Merleau-Ponty (2014). Ou seja, tomar algo pelo que é e pelo que não é.
Analogamente à Física, podemos considerar o antirroteiro também como a medida de “inaproveitabilidade” (uma margem de calor não aproveitável completamente na sua transformação em trabalho). O contrário da entropia, que representa originalidade (por sua vez ligada ao imprevisível), é, na Teoria da Informação, a redundância (repetição). Repetição é um recurso (não deixa de sê-lo, para o melhor ou o pior) de inteligibilidade do conteúdo, inclusive fílmico. Vimos que entropia é desordem e que redundância é previsibilidade. Isso porque nem todo o calor previsto é aproveitado. Quando ocorre um consumo de energia que, no caminho, impede toda essa possibilidade de aproveitamento, ou seja, uma margem de aproveitamento, entende-se que ocorrera o fenômeno entrópico. Essa indeterminação (pois não se sabe até que ponto o sistema será mais ou menos afetado pelo consumo) é o que caracteriza a entropia e o que justifica, também, sua relação com o antirroteiro. O cineasta sueco Ingmar Bergman assim o praticava. A cena final “[…] em que a Morte se afasta dançando com os caminhantes” (BERGMAN, 1996, p. 233), no filme O sétimo selo (1957), foi improvisada em alguns minutos, com figuração de técnicos e turistas.
Em outros termos, o antirroteiro é um arquétipo numinoso, pois se trata “[…] de um fundamento emocional que parece inacessível à razão crítica” (JUNG, 1979, p. 3). Não há uma única história, e sim pontos de vista míticos. E de que ponto de vista falamos? Certamente de vários, sendo a polifonia discursiva um recurso que se atualiza com mais força a cada novo ciclo do eterno retorno do mesmo que marca o antirroteiro. Esta expressão – eterno retorno do mesmo – foi utilizada por Nietzsche em seu livro Assim falava Zaratustra (1998). Zaratustra, aliás, era considerado por Nietzsche o mestre do eterno retorno. Do que se trata e o que tem a ver com o antirroteiro? Primeiro, o antirroteiro é uma forma de salientar o oposto de uma tradição, o roteiro. Ao estabelecermos esse parâmetro polar (derivado de polaridade, que, por sua vez, só acontece na relação oposta entre dois ou mais polos, mas não de um deles isoladamente), passamos a aceitar, da mesma forma, o fato de que a criação se dá num instante do vir-a-ser, sem rótulo ou planejamento prévio. O vir-a-ser, pois, que é imprevisível, não existe fora de uma estrutura polar, na qual se justifica o antirroteiro (como antítese do roteiro). Como cai a perspectiva retilínea na tese tanto do eterno retorno quanto do vir-a-ser, o antirroteiro, igualmente, por depender de um instante intuitivo, que poderá vir ou não, apenas se dá no círculo do tempo característico do eterno retorno.
Assim, o antirroteiro tende mais à implosão dos direcionamentos narrativos que estruturam roteiros tradicionais e menos à explosão de práticas redundantes. Godard dá a entender que sua postura criativa é, por vezes, estimulada por circunstâncias que podem definir estratégias e soluções únicas. Sobre Acossado (1960), o cineasta diz que gostaria de tê-lo rodado em estúdio, algo que não foi possível devido a problemas diversos. Em sua limitação técnica e prática, pela qual admitiu inclusive que, à época, “não entendia nada tecnicamente” (GODARD, 1989, p. 20), o realizador se manteve alheio ao formalismo que subsiste na arte cinematográfica, chegando a sacrificar algumas imagens primeiras em nome da necessidade que o momento do fazer cinema impôs:
Esta continua sendo minha regra, que considero mais simples e que permite fazer diferente, isto é, fazer o que se pode, e não o que se quer; fazer o que se quer a partir do que se pode, fazer o que se quer com aquilo que se tem, e não sonhar o impossível (GODARD, 1989, p.20).
Atento a sua capacidade de realização, Godard mostra que abrir mão de um ideal fílmico pode aprimorar o senso de liberdade na filmagem – liberdade que realize o sonho possível, pelo menos. Assim, a improvisação torna-se uma entre tantas ferramentas de criação valorizadas pelo antirroteiro. Se hoje fala-se muito na crise criativa do cinema, geralmente destacam-se os roteiros como um dos principais problemas da indústria cinematográfica como um todo. Curiosamente, a formatação dos roteiros segundo regramentos destinados a suprir um modelo de produção de filmes em massa pode apontar algumas raízes de certas dificuldades atuais do fazer cinema. Neste longo período que se estende pelo menos da fase de ouro de Hollywood até os dias atuais, em que roteiros assumiram papel central no processo de filmagem, o scritp (ou screenplay) passou por um intenso processo de estruturação, colocando-se como utensílio essencial e potencialmente inflexível para a realização de filmes. Roteiristas como o norte-americano Syd Field, idealizador do “Paradigma”, que define as 120 páginas de um suposto roteiro ideal e nas quais figuram os três atos básicos de um longa-metragem (Apresentação, Confrontação e Resolução), tornaram-se gurus da indústria do entretenimento.
O paradigma, assim como o guia de Vogler, é o contrário do antirroteiro. Vogler se baseou no livro O herói de mil faces, do mitólogo norte-americano Joseph Campbell, que cunhou o termo jornada do herói para caracterizar as etapas arquetipais no ser humano e relacionou-as à narrativa fílmica. Disso resultou um Guia Prático de Roteiro, caracterizando-se os seguintes estágios: mundo comum; chamado à aventura; recusa do chamado; encontro com o mentor; travessia do 1º limiar; teste, aliado, inimigos; aproximação da caverna oculta; provação suprema; recompensa; caminho de volta; ressurreição, e, finalmente, retorno com elixir. “Trabalhei com a ideia de Campbell sobre a Jornada do Herói para entender o incrível fenômeno que ocorreu com filmes como Guerra nas Estrelas e Contatos Imediatos […] refletiam padrões que Campbell viu nos mitos” (VOGLER, 1997, p. 13).
Diferentemente de um esquema vogleriano, O sétimo selo, como foi dito, teve grande improvisação, como na cena mencionada anteriormente, filmada por causa de algumas nuvens que surgiram, de repente, e que, para Bergman, formavam o visual perfeito para a imagem que ele tinha em mente. A obra, que não levou mais que 35 dias para ser concluída, teve filmagens complicadas, mas ainda assim foi motivada por uma “alegria despreocupada” (1996, p. 232), o que tende a auxiliar processos criativos libertários que trazem à tona questões pessoais cujas motivações são, muitas vezes, universais. Ao comentar seu “road movie” que se desloca “muito livremente quer no tempo como no espaço” (1996, p. 232), Bergman explica o quanto, por quase duas décadas em sua vida, desde a infância, temeu intensamente a morte. Diz o cineasta que foi com O sétimo selo que conseguiu começar a elaborar melhor sobre ela.
A ideia de que, se morresse, não existiria mais, que teria de passar pela porta obscura, que havia alguma coisa que eu não podia controlar, coordenar ou prever foi para mim uma fonte permanente de medo. Que eu, de repente, tenha tido a coragem de dar à Morte a figura de um palhaço branco, personagem esta que conversava, jogava xadrez e não arrastava consigo quaisquer segredos, foi o primeiro passo em minha luta contra o horror que sentia da morte (BERGMAN, 1996, 238).
O cineasta voltou-se aos seus medos primordiais, como a angústia decorrente da passagem do tempo e da consciência da morte, que são na verdade dilemas antropológicos e filosóficos de todo homem, para assim dinamizar um processo criativo destinado à atenuação e compreensão de anseios ancestrais. Seguindo Henri Bergson, o teórico do imaginário antropológico Gilbert Durand afirma que o homem lança mão da imaginação simbólica para restabelecer o equilíbrio psicossocial perdido com o conhecimento sobre a inevitabilidade da morte (2000, p. 98). Assim, criamos constantemente imagens oriundas de arquétipos constitutivos do inconsciente coletivo e, com elas, estabelecemos simbolismos e propomos narrativas míticas que eufemizam os sentidos sobre nossa finitude para, enfim, “melhorar a situação do homem no mundo” (2000, p. 99). Portanto, se as imagens surgem da nossa certeza sobre o fim da vida, Durand entende que “toda a arte, da máscara sagrada à ópera cômica, é sobretudo iniciativa eufêmica que se insurge contra o apodrecimento da morte” (2000, p. 99).
Dessa forma, imagens, símbolos e mitos muito antigos e recorrentes, oriundos da imaginação simbólica dos primeiros grupos civilizatórios, transitam entre gerações formando um sistema de conteúdos simbólicos que problematizam e tentam explicar a existência humana. Ainda hoje, articulamos a mesma imaginação simbólica para produzir novas imagens e mitos que possam propor outras explicações sobre homem e mundo. Essa retroalimentação constante do imaginário em função de uma imaginação incessante proporciona uma pluralidade de sentidos que podem ser atribuídos às questões que movem os indivíduos. Portanto, vemos que Bergman evita artifícios como a jornada do herói, esta esquematização redutora de mitos que articulam a imagem arquetípica heroica, para retomar criativamente um dos grandes temas da humanidade. Apesar de trabalhar sob os direcionamentos prévios de um roteiro, o cineasta sueco não recorreu a diagramas pré-moldados para expressar seus anseios por meio de imagens – imagens estas primeiramente simbólicas, internalizadas e vivenciadas pelo autor, e posteriormente transformadas em ordem visual, impressas em película em projetadas em tela. Pelo contrário, para criar imagens poéticas que problematizam não apenas a sua experiência, como também a existência de cada sujeito ciente da morte, Bergman se manteve livre para criar recorrendo a imagens que já estavam dentro de si, adequando-as ao momento da filmagem e à surpresa do inesperado – como uma paisagem com a ideal formação de nuvens para seu filme, por exemplo.
A extrema tabulação das narrativas em função de roteiros tradicionais se mostra então possivelmente cerceadora da criatividade. É preciso lembrar que acidentes de percurso ocorrem mesmo neste suposto trajeto regular do herói estruturado por Campbell e cooptado pelo cinema – e é possivelmente neste ponto que ficam claras as divergências entre as percepções sobre o herói entre o pensador norte-americano e Durand (2012). Para este, o herói não é uma figura unidimensional que responde a uma narrativa previamente estruturada, nem mesmo a expressão principal de um monomito, mas sim uma imagem simbólica cuja multipolaridade semântica remete ao próprio arquétipo do herói, esta potência psíquica presente no inconsciente coletivo que é a raiz de simbolismos universais e complementares. Possivelmente, o antirroteiro estaria mais próximo desta visão durandiana sobre a pluralidade de sentidos própria à recorrência mítica do que ao quadro organizacional proposto por Capmbell. Cineastas não estariam evitando sua imaginação criadora, produtora de imagens, ao depender de roteiros extremamente fechados, que controlam o inesperado para evitar processos criativos de tentativa e erro? Ao programar e roteirizar todos os segundos de todas as cenas de todo o filme, ao padronizar excessivamente todos os processos de filmagem, realizadores de cinema não estariam obstruindo o pulsar do fazer artístico?
O antirroteiro, no entanto, não objetiva ignorar o planejamento mínimo que é necessário à realização de um filme. Porém, observa que a possibilidade da existência de lacunas e dúvidas pode apontar caminhos paralelos ou transversais que convulsionem a obra, tornando “livre” o fazer cinematográfico. Hiatos na tessitura de um roteiro não são, para o antirroteiro, falhas estruturais, mas algo como fendas dimensionais que possam proporcionar saltos quânticos ao realizador dentro de sua própria obra. O inesperado, para o antirroteiro, seria uma forma do realizador não mais trafegar exclusivamente no tensionamento linear das tramas fílmicas tradicionais, para que assim possa se fazer criativamente presente nas recorrências circulares de um eterno retorno cujo teor mítico o roteiro poderá assumir. O antirroteiro proporciona a “livre” criação do realizador a partir da celebração do incerto e da roteirização do imprevisto, sendo estas ferramentas que revitalizam a forma e o sentido do filme.
Naturalmente, as condutas criativas propostas pelo antirroteiro cinematográfico enfrentam as exigências da técnica e da prática, das demandas mercadológicas e do padrão artístico que este mercado demanda. Cabe aos realizadores optarem entre o rigor imposto pela regra da produção em série e a liberdade propiciada pela anarquia da criação – aquela que pode de-formar a linguagem estimulando um “cinema liberador do cinema”, como Inácio Araújo (2008) define a obra de Orson Welles, Jean-Luc Godard e Roberto Rossellini, identificados pelo autor como tríade do antirroteiro. Essa noção também pode ser observada em documentários, que hoje têm assumido um caráter ficcional1 cada vez maior por haver a compreensão de que toda representação humana é um “constructo”, uma escolha. E, sendo uma escolha, obviamente também é recusa. O “docu” prospera sem unidade e sem definição a priori. É sinal de uma ruptura mais nítida com o mito da naturalidade e do academicismo documentais. Hoje, a tendência é pensar em uma realidade plural. Godard mistura cenas “reais” com ficção. Godard é uma ficção de si. Em JLG por JLG (1994), afirma: “Cultura é a regra; arte é a exceção”. Estas distinções ainda permanecem na cultura. No entanto, a pós-modernidade tem provocado uma liquefação progressiva do referente expresso por Godard. Isso porque Godard lamenta a derrota do pensamento.
Ou seja, o referente seria, nesta analogia que fazemos com a cultura, a exceção, enquanto a pós-modernidade promoveria, ainda segundo a perspectiva apresentada, a cultura volátil e fácil, no nível da espetacularização. A ciência, que contraria o mito, procura uma razão linear para as coisas. Mas o mito, ao contrário, que transcende qualquer forma de racionalidade contínua, move-se em todas as direções: passado, presente e futuro. E um filme, que nada mais é do que uma de-formação pela sensibilidade, acontece como um evento mítico. É um instante eterno. É a eternidade do instante. Esse instante tanto quanto aquela eternidade são o que, na visão nietzscheana do eterno retorno do mesmo, funda a circularidade. Não mais o tempo sucessivo por etapas subsequentes, e sim a centralidade em toda parte. A memória mesma no presente mítico, cíclico, que não se divide em categorias e que está reclusa na entropia. O não-início entrópico, pois, é o fundamento quântico do antirroteiro. Quântico porque, nessa Física, existe um princípio de indeterminação dos polos. O antirroteiro, portanto, não deixa de ser um exercício de filosofia polar.
Quando se fala em entropia, é preciso considerar que este é um sistema, mas, como todo sistema, apesar de parecer fechado, aproxima-se ainda, conceitualmente falando, de uma variação, porque não conseguimos estabelecer o início de um sistema entrópico, a não ser em testes muito precisos em laboratórios. Mas não queremos levar o antirroteiro para um tubo de ensaio. Portanto, o que interessa na entropia – e no antirroteiro – não é o fato de, conceitualmente, ela se dar “triadicamente” com início, desenvolvimento e degradação, e sim em se dar como processo indeterminado dos polos que acabam se atraindo e se repelindo constantemente, na preparação ou no confronto, e que, para equacioná-los, criamos, no Ocidente, esse conceito de entropia. Os iogues e os índios não conhecem racionalmente esse conceito. Vivem-no. A entropia se dá nessa constante variação entre o que chamaríamos de início – que só existe conceitualmente –, desenvolvimento – que também só existe conceitualmente – e fim (um irrealismo). Em suma, o conceito de entropia nos ajuda a refletir sobre o antirroteiro no sentido de podermos enxergá-lo com o nosso olhar míope (aquele que se conforma com o já-visto).
Em termos de Teoria da Informação, colocando-a agora, a entropia é […] “a medida da desordem introduzida numa estrutura informacional” (COELHO, 1973, p. 21). Isso quer dizer que a entropia é similar ao estado da arte de filmes de diretores como Bergman e Godard, entre outros, por causa de seu maior grau de originalidade do que filmes redundantes do ponto de vista da informação. Teixeira Coelho (1973) esclarece que a palavra entropia, em Física, representa a função de um estado termodinâmico dos sistemas que serve para medir a “inaproveitabilidade” da energia desse mesmo sistema. A questão da polaridade, que, no fundo, é o que se reflete aqui em termos de antirroteiro e roteiro, pode ter se originado na filosofia pré-socrática com Parmênides, que, na esteira de Anaximandro de Mileto, pensou sobre o existente e o não-existente. Ele, Parmênides, questionou: “O não-existente existe?”. Parmênides se pautava na validade universal dos conceitos (é como se pensássemos na validade universal do roteiro, ou melhor, do conceito de roteiro). Assim, Parmênides, intencionalmente, desvencilhava-se do mundo intuitivo. Ou seja, desvencilhava-se, no nosso caso, do antirroteiro, que é uma prática antes intuitiva do que conceitual.
Portanto, diríamos que o roteiro representa uma ideia parmenidiana de objetivação do ilógico (o antirroteiro). Nesse sentido, nós estamos assumindo, aqui, que o antirroteiro é um dos polos de um vir-a-ser da guerra dos opostos (roteiro-antirroteiro), como Heráclito – outro filósofo grego – pensava, contra Parmênides. Sim, mas se o antirroteiro já é como ele pode vir-a-ser? É porque ele já é no sentido de ser anterior à formulação dele próprio. Nós só conhecemos algo porque formulamos um conceito que pré-existe na nossa mente (MERLEAU-PONTY, 1999). O antirroteiro já é podendo ainda vir a ser justamente por ter como dínamo principal a intuição, o impulso criativo anterior ao conceito e decorrente da própria imaginação simbólica. Conforme Durand, a imaginação precede a razão, ou seja, é energia primordial cujas imagens ativam afetos e pensamentos. O antirroteiro, portanto, motivado pelas sensações e sentidos mais primordiais, coloca-se no polo oposto ao do roteiro, resultante de maior racionalização. Neste equilíbrio equacional cujo magnetismo mantém em relação opostos que não se anulam, mas se complementam, não reivindicamos a extinção do roteiro, mas a valorização do antirroteiro como força criadora primeira – ou, pelo menos, muito potente. Este embate revela a harmonia complementar dos opostos tão necessária ao cinema, e prejudicial à obra quando não adequadamente equalizada. Talvez por isso Godard critique Steven Spielberg e seu Contatos Imediatos do Terceiro Grau (1978), filme que para o francês falha ao não representar devidamente aquilo que promete. Para Godard, a técnica vazia superou a criatividade sensível quando o norte-americano decidiu abordar metafisicamente um tema que, de resto, foi “muito mal feito como metafísica”:
Fui assistir (…) a Close Encounters of the Third Kind, e o que eu queria ver era o contato imediato do terceiro grau. Pois bem, a gente não o vê; o filme termina justamente naquele momento. Eu qualificaria isso de “covarde”, efetivamente, se fosse preciso qualificá-lo. Há, aí, de fato, toda uma covardia de US$ 15 milhões2. (…) uma bela trapaça de US$ 15 milhões que rende US$ 80 milhões. (…) Enfadonho? Um pouco. Se durasse mais tempo e se a gente pudesse subir na nave… Mas então, com efeito, seria preciso construir o cenário do interior, seria preciso ter um pouco de ideias. E então o filme termina! (GODARD, 1989, p. 40).
Em sua crítica, Godard denuncia uma prática de fazer cinema que falha não por falta de orçamento ou planejamento, mas por falta de uma conduta de produção livre que dê conta da demanda criativa exigida pelo filme em si, e que seja independente do rigor exigido pelo cronograma e pelas planilhas da indústria audiovisual. Por isso, Godard prefere “fazer o que se quer a partir do que se pode” (1989, p.20), tendo como regra então não ter regras, postura assumida em Acossado, já que “as regras são falsas ou mal aplicadas” (1989, p. 23). Ao relembrar do set de filmagem de sua grande obra, o artista afirma que sempre trabalhou de forma preparada, mas um preparo que estava mais em sua cabeça do que no papel, tornando-o mais suscetível ao improviso do que muitos colegas cineastas.
Lembro-me de que Acossado (…) foi feito de acordo com o que eu via. Depois de certo tempo, entrei em pânico completo de tanto escrever. (…) Disse a mim mesmo: “pois bem, não escrevo mais, vou com o que já fiz, depois a gente vê”. (…) Era evidente que não poderia conseguir só com lápis e papel o que deve ser feito de outra maneira. (…) E desde essa época não fiz mais roteiro. Sempre tomei notas, tentei organizar essas notas de maneira bastante simples, com princípio, meio e fim quando há uma história, ou com um tema que se desenvolve logicamente (…). E, depois, rememorá-lo mais ou menos como um músico tenta cantarolar a melodia (GODARD, 1989, p. 34).
Dessa ideia prévia sobre um filme, pouco roteirizada, Godard parte para as filmagens disposto a encontrar no improviso, no inesperado, a ferramenta que o ajudará a de-formar sua obra. Para o autor, improvisar é colocar-se nas condições reais que se apresentam, a partir das quais o criador inventa ou modifica o que faz (o filme) e o que fez (o roteiro, mesmo que este não passe de algumas anotações) em função de uma montagem cinematográfica que toma forma no momento da ação.
Sempre agi de acordo com as condições. Sempre rodei uma cena de acordo com o que encontrava, a verdade verdadeira, e se isso mudasse o filme, bem, mudava o filme. E o filme continuava a partir desse momento. Esta é a verdadeira montagem. Ele se montava também a partir desse momento (GODARD, 1989, p. 35).
Godard conclui que, para ele, todos os filmes são como monstros, porque primeiro foram escritos. Ao contrário, deveriam ser antes vivenciados individualmente pelos cineastas, passando mais diretamente do sensível ao filmado sem o intermédio de outra linguagem que não a audiovisual – e sem o medo do inesperado. Essa ligação direta do fazer cinema com intuição, afeto, sensibilidade ou inteligência emocional, proporcionada pelo antirroteiro, resulta então em imagens poéticas e narrativas fílmicas livres. Estas estabelecem um paralelo com a imaginação simbólica durandiana, produtora de imagens cuja gênese se encontra no trajeto antropológico que, como visto, polariza as pulsões do homem e as coerções provenientes do meio social. Portanto, os múltiplos sentidos dos filmes de Godard e de Bergman, bem como das imagens simbólicas de Durand, surgem do encontro direto entre a essência do homem e o contexto no qual ele vive – ou ainda entre o que está dentro do sujeito e o que está fora dele.
Desta interação simbiótica entre homem e o contexto no qual vive surgem emoções, sensações e pensamentos que direcionam condutas humanas, imagens simbólicas ou obras audiovisuais. Atento às interações do homem com o meio, Merleau-Ponty observa que a emoção não é um fato psíquico e interno, mas uma variação de nossas relações com outrem e com o mundo.
Necessário, aqui, rejeitar esse preconceito que transforma o amor, o ódio ou a cólera em realidades interiores, acessíveis a uma só testemunha, ou seja, a quem as experimenta. Cólera, vergonha, ódio ou amor não são fatos psíquicos ocultos no mais profundo da consciência de outrem; são tipos de comportamento ou estilos de conduta, visíveis pelo lado de fora (MERLEAU-PONTY, 1983, p. 109).
O autor, que ao se referir a “tipos de comportamento” aproxima-se do arquétipo citado por Jung1, conclui ser a emoção uma reação de desorganização que intervém quando estamos num impasse. Para Godard, o impasse poderia significar uma oportunidade criativa, uma solução inesperada. Dele poderia surgir a chance de trabalhar cinematograficamente algum tema, sentimento ou emoção que diz respeito não apenas ao sujeito, mas à humanidade. E é por isso que, quando Bergman cria um filme para elaborar seus sentimentos e anseios sobre a morte, acaba propondo sentidos sobre a finitude dos quais muitos compartilham. Após a estreia de O sétimo selo o cineasta comentou que, para muitas pessoas, o longa “tratava de dúvidas e angústias que elas próprias sentiam” (BERGMAN, 1996, p. 240), o que ressalta a importância do sentir e da intuição, bem como das possibilidades do incerto e do inesperado, como elementos próprios do antirroteio – aquele que está no polo oposto e complementar do roteiro, este mais estruturado pela razão.
Uma definição de imaginário, em primeiro lugar: “É transfiguração de uma representação concreta através de um sentido para sempre abstrato” (DURAND, p. 12). Considerando o antirroteiro o oposto do signo, porque não é uma representação concreta, mas a transfiguração dele, roteiro, e dela, representação, é possível transitar nesse terreno movediço que é o imaginário. Sabemos que se usa o termo imaginário de várias formas, conforme deixo claro Durand: “Imagem, signo, alegoria, símbolo, emblema, parábola mito, figura, ícone, ídolo são utilizados indiferentemente pela maior parte dos autores” (2000, p. 7). Para não cairmos nessa indistinção, optamos pelo termo no sentido de uma qualidade dificilmente apresentável concretamente, e que nos parece ser o caso do antirroteiro. Ora, se o imaginário é alógico e não remete a uma representação, a uma, como acima, “qualidade dificilmente apresentável concretamente”, como poderemos assumi-lo teoricamente? Só há uma saída: considerando-o uma manifestação da subjetividade. Neste caso, a escolha de Bergman e Godard se justificaria mais pela razão sensível, portanto, do que um suposto conceito de antirroteiro em seus filmes. Antirroteiro, além disso, se apresenta como noção, e não como conceito – este mais fechado e rígido.
Vimos que o roteiro e o antirroteiro são polaridades ao mesmo tempo antagônicas e complementares. A isso denominamos, com Heráclito, o vir-a-ser, que se forma, justamente, da guerra dos opostos. Em determinado momento, um pólo prevalece sobre o outro. O antirroteiro, neste artigo, prevalece, então, sobre o roteiro. No entanto, o antirroteiro, é engendrado pelo roteiro. Portanto, o antirroteiro não desqualifica o roteiro, porque depende dele enquanto polaridade contrária ao eterno retorno do mesmo (vir-a-ser). O roteiro é uma busca de certezas. O antirroteiro pensa miticamente, aquilo que é instigante e vivo. Ou seja, tudo o que está em conflito converge harmoniosamente. O antirroteiro, para concluir este inconclusivo artigo, não tem a pretensão de tocar a verdade absoluta em lugar algum. Assumimos, então, que o antirroteiro é uma não-verdade tida como verdade. É uma ideia nem dedutiva, nem indutiva. É transdutiva. Que a tragédia comece, diria Nietzsche.
Temos, nesta síntese do filme, um complexo de situações que nos remetem, pelo menos da forma como este artigo aponta, ao contraponto entre o ser e a máquina. As fronteiras são fluidas. Se tomarmos – e este é o caminho que adotamos – a perspectiva do imaginário, segundo o qual a cultura – como um constructo – não se aparta das pulsões, considerando-as aqui como motivações inerentes ao ser, poderíamos trabalhar com a ideia de polaridades. Esta também é a ideia das “constelações metafóricas”. Trata-se, na verdade, quanto à natureza epistemológica adotada, da procura de uma abordagem por aproximações e de modo, na medida do possível, compreensivo. Por isso, é importante introduzir uma rápida observação de que não nos baseamos em uma análise fílmica semiótica-estruturalista estrita. Significa dizer que não utilizaremos o método preponderante nos estudos de cinema ancorados, em sua maioria, na leitura sígnica de origem metziana (Metz).
Polaridades, e isso também precisa ficar muito claro, não são, da forma como nós interpretamos, dicotomias. A busca de uma aproximação entre antirroteiro e seu oposto, o roteiro, é uma dimensão qualitativa enraizada numa estrutura arquetípica. Aqui, nosso propósito não é desvendá-la, e sim matizá-la. Ao fazermos isso, procuramos considerar a relação entre o ser máquina como esse trajeto que se faz entre o coercitivo e o pulsional, na esteira do que Durand (1997) denomina “trajeto antropológico”. O arquétipo, conforme vemos na Psicologia das Profundezas, situa-se exatamente aí, em “formas arcaicas restituídas à vida” (JUNG, p. 13, 2007). Este artigo procura não mergulhar nas profundezas dessa análise de cunho psicanalítico. O que gostaríamos de salientar tentará permanecer nesse viés, metodologicamente falando, de uma sociologia fenomenológica e compreensiva, cujo aporte tem ressonâncias simmelianas (as de um pragmatismo cotidiano), weberianas, no sentido de considerar as não-racionalidades (a relação, por exemplo, entre forças coercitivas, oriundas da construção social, e pulsionais, entranhadas no humano ser), e maffesolianas (as de caráter fenomenológico).
Essa questão do antirroteiro nos remete, ainda, a Dufrenne, que, para falar de estética, afirma: “[…] a presença do sensível atesta a realidade do objeto, a plenitude do sensível atesta sua beleza” (2008, p. 90). Poderíamos transpor esse raciocínio de Dufrenne, que é voltado, na verdade, para a recepção de uma obra estética, para o sentimento de antirroteiro. Isso porque o sentido original de estética, em grego, é o sensível. Portanto, a beleza do antirroteiro está voltada antes para uma sensibilidade – uma questão individualizada e única de pessoa para pessoa ou de uma pessoa do que para um aporte estritamente racionalista. Dufrenne afirma, para complementar, que “[…] julgar que a obra é bela é simplesmente manifestar o prazer” (2008, p. 90). Não é disso, precisamente, que se trata entre antirroteiro e roteiro? Antes de finalizarmos este artigo, poderíamos considerar outra questão, não menos importante do que a anterior, no sentido de que, com Heidegger, existe um conflito de base – que, para Nietzsche se traduziria na tragédia e, para Durand, no “trajeto antropológico” – próprio de todo relativismo que é o da diferenciação complementar entre o “ser-aí”.
Voltamos aos polos dialógicos referidos anteriormente no vir-a-ser entre a subjetividade do ser e o aí da construção do filme como força coercitiva. O vivido do antirroteiro, porém, não é perfeito. A complexidade não é perfeita. O trágico não é perfeito. O indivíduo esfacela-se em múltiplos papeis porque ele não se reconhece mais uno. Esse é o sentimento niilista, o de que nada mais é, e que pontua o antirroteiro. E, assim como na filosofia débil, que, conforme Vattimo (1996), tem por objetivo negar as estruturas estáveis do ser, o antirroteiro, do qual falamos consiste, além de outras leituras possíveis, é um contraponto à crença, ainda presente, na invariabilidade do roteiro, no “habitus”, que ancora – hoje não mais – a pessoa a alguma coisa porque, ao contrário disso, isto é, da fixação, a ciência é entrópica: o que nasce também morre. O nascimento do antirroteiro, portanto, também é sua morte. Daí o sentido da expressão nietzscheana: a tragédia começa.
Eduardo Portanova é jornalista, tradutor do francês e professor-pesquisador. Pesquisa assuntos na área da Comunicação, das Ciências Sociais (Sociologia do Cotidiano e Políticas Culturais), do Imaginário e do Cinema. Pesquisador do Imaginalis – Grupo de Estudos sobre Comunicação e Imaginário.
Danilo Fantinel é graduado em Jornalismo pela UFRGS em 1999, é mestrando em Comunicação e Informação na mesma instituição como bolsista CAPES. Integrante do Grupo de Pesquisa Imaginalis, estuda as relações entre Imaginário e Comunicação no cinema e na prática jornalística contemporânea. Atuou profissionalmente no Grupo RBS entre 1995 e 1999, e também de 2007 a 2012. Integrou a equipe de jornalismo do portal Terra Networks entre 2000 e 2005. Transitando entre jornalismo impresso, online e radiofônico, foi produtor, redator, repórter e editor de Política, Cidades, Cultura e Comportamento. É colaborador das revistas Vida Simples e Veja Porto Alegre, ambas da editora Abril. Vinculado à Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul, publica no portal Papo de Cinema.
BIBLIOGRAFIA
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FILMOGRAFIA:
Acossado, de Jean-Luc Godard (1960)
Contatos Imediatos do Terceiro Grau, de Steven Spielberg (1977)
Guerra nas Estrelas, de George Lucas (1977)
JLG por JLG, de Jean-Luc Godard (1994)
O sétimo selo, de Ingmar Bergman (1957)
1 O arquétipo poderia ser mais bem percebido não como uma imagem exata, mas sim como uma potencialidade primordial, ou ainda aquele “fundamento emocional que parece inacessível à razão crítica”, do qual no fala Jung (1979, p. 3).
1 Um bom exemplo seria Um passaporte húngaro (2003) de Sandra Kogut.
2 O orçamento de Contatos Imediatos do Terceiro Grau seria de aproximadamente US$ 19,5 milhões, segundo o site IMDB: http://www.imdb.com/title/tt0075860/