Os ciclos regionais de cinema e o neoregionalismo cinematográfico-audiovisual ultraindependente brasileiro
por André Gatti
Existe um movimento interessante na história da produção, difusão e comercialização do cinema e do audiovisual no Brasil hoje, e que merece ser destacado e estudado de uma maneira mais conceitual e panorâmica. Aqui, primeiro vamos apontar esta situação que entendemos por neoregionalismo cinematográfico-audiovisual ultraindependente brasileiro, com esta finalidade relativizaremos esta situação com aquela realidade que a produção de imagens em movimento presenciou nas primeiras décadas do século. XX. Em um segundo momento, vamos compreender as várias facetas que esta nova onda imagética está trazendo para o atual estado das coisas, dimensionando a contribuição que se encontra neste movimento e que se caracteriza como um novo e inédito processo histórico. Com esta finalidade, iremos abarcar a questão nos seus vários aspectos de relevância, tais como: estético, político e econômico. Isto porque identificamos um movimento que tem se projetado de uma maneira, relativamente, sincrônica e horizontal no território nacional no campo cinematográfico e audiovisual. Pela primeira vez, temos na história audiovisual brasileira um volume de produção e qualidade que se revela como uma verdadeira novidade na trajetória das nossas tradições audiovisuais.
Portanto, podemos nos alimentar dos fundamentos da história do cinema brasileiro, pois ela vai nos trazer alguns elementos e luzes que podem ser relacionados diretamente com aquilo que acontece na trajetória da produção e difusão do neoregionalismo cinematográfico-audiovisual ultraindependente brasileiro. Para tanto, vamos voltar ao início do cinema do Brasil, isto é aquele momento em que o filme de ficção e o documentário se tornam uma realidade disseminada pelas quatro regiões que integram o território nacional, isto acontece entre 1912-1913 e prossegue até 1936, quando se encerra tal movimento/ciclo. Este se trata do período de implantação e dispersão territorial da tecnologia das imagens em movimento, propriamente dita. Foi quando se identificou que havia cinema no Brasil realizado por uma expressiva massa de produção cinematográfica, era o momento da presença dos chamados ciclos regionais de produção, incentivados principalmente pela realização de filmes de ficção para exibição comercial, ou seja, mirava-se o mercado. Mas, cujos filmes eram fomentados pelo conhecido esquema de cavação, como assim fora categorizado tal esquema por Jean-Claude Bernardet.
Ao olharmos o tema dos ciclos regionais sob a ótica da historiografia clássica do cinema brasileiro, vamos nos deparar com o primeiro movimento consistente de uma expressão cinematográfica e industrial, ainda que incipiente mas relevante para o estágio cultural em que o País se encontrava naquele momento, ou seja, dez anos antes da eclosão da Semana de Arte Moderna (1922). Podemos afirmar que a expressão ciclo regional se consolidou como um sinônimo de tudo aquilo que cinematograficamente, por ventura, viesse a ser produzido fora do eixo Rio de Janeiro – São Paulo. Portanto, um filme passa a ser considerado como produção de um determinado ciclo regional, obviamente, tendo como base a sua origem regional-local, ou seja, sua filiação geográfica, daí a ideia e a necessidade de uma cartografia do cinema nacional. Entre os ciclos regionais fundadores destacam-se os de: Porto Alegre, Manaus, Campinas, Guaranésia, Cataguases, Recife, Ouro Fino, Pelotas, Belo Horizonte etc. Ciclos de produção cinematográfica estes que hoje podem ser identificados atualmente pela pesquisa que tem sido realizada no âmbito histórico tradicional e acadêmico-universitário brasileiro. Esta filiação geográfica, em muitos casos, também influenciou tematicamente muito do que tem sido produzido no âmbito do neoregionalismo contemporaneo, não coincidentemente, nas localidades onde eles são mais consistentes sob o volume de realizações.
Indo um pouco contra a corrente historiográfica dita clássica, um historiador importante como o decano Jurandyr Noronha (2008) também denomina como regional a produção cinematográfica realizada nas duas maiores cidades brasileiras: Rio de Janeiro e São Paulo, isto durante a vigência do cinema silencioso (1896-1937). Ele denomina os filmes produzidos nas citadas cidades de filmes de ciclo de São Paulo e de ciclo do Rio de Janeiro, respectivamente. Segundo Noronha, o povo brasileiro logo se tornou um povo ‘cinemeiro”, ele se refere ao fato da adesão que o cinema angariou junto a população brasileira nos primórdios da sua vida entre nós. Gente esta que para além de frequentar as salas logo também quis se ver representada nas telas, o que pode ser comprovado pela vasta produção do período, isto para os padrões sociais e econômicos do nosso país naquele momento. Esta foi a grande contribuição e lição deixada por tal fatura histórica. Esta situação só foi possível graças aos cinematografistas ambulantes e as salas, geralmente, cinemas “poeiras”, que se instalaram pelos cantos mais perdidos do País. Esta rede de circulação de equipamentos e filmes foi a verdadeira primeira semente do cinema brasileiro. O mercado então submetido às agruras de um território totalmente ocupado pelo produto estrangeiro, carregando consigo as marcas trágicas de um subdesenvolvimento cultural, político e econômico.
Ao que tudo indica, o advento do Estado Novo (1937-1945), a presença do cinema sonoro e as rotineiras crises econômicas e políticas do período vieram a soterrar momentaneamente os laivos de uma produção cinematográfica regional, pois o público logo se desinteressou pelas fitas mudas. Por outro lado, fazer filme sonoro implicava num tipo de investimento técnico e econômico bastante distante da realidade dos realizadores regionalistas, que, via de regra, estes que sobreviviam das franjas do mercado. A maioria dos realizadores passou a ser extremamente dependente do regime de cavação institucional em vigor naquele momento, no caso a produção de filmetes de propaganda política para os Deip’s e para o Dip.
Sob o tacão de um novo regime político, agora democrático, e de uma nova realidade econômica, o cinema brasileiro do eixo Rio-São Paulo volta a respirar, apesar das crises localizadas. Era o momento de construção do regime de estúdios que tinha se iniciado na década de 1930 e agora encontrava chão para se desenvolver de maneira bastante robusta, agora tanto no Rio de Janeiro quanto em São Paulo.
Na década de 1950, identifica-se uma nova vaga cinematográfica quando surge a ideologia do chamado cinema independente brasileiro que se contrapunha ao cinema dito industrial, era o apogeu do sistema de estúdios. Pois, temos em atividade neste momento um parque de produção aparentemente robusto e sólido, onde estavam empresas como a Atlândida , Vera Cruz, Herbert Richers, Maristela etc. Hoje, identificamos um movimento muito similar ao que presenciamos naquele período, pois a atual indústria cinematográfica e audiovisual brasileira, sob o ponto de vista ideológico e econômico, claro, encontra-se hegemonizada por um seleto grupo de empresas que operam dentro da mesma lógica e com os mesmos fins. Será que não podemos identificar a Total, Globo Filmes, a Conspiração e a O2, por exemplo, como os estúdios contemporâneos e que estariam fora da categoria de um cinema independente, como fora preconizado por Nelson Pereira e seus companheiros? Ainda que com um pé nesta ideologia, tal como enxergamos, entendemos que certa fatia da produção contemporânea necessita de um outro adjetivo substantivado para identificar a produção neoregional cinematográfica-audiovisual. O fato é que não somos mais uma realidade polarizada entre apenas dois seres antagônicos, nos encontramos multipolarizados e randômicos. Daí deriva o termo ultraindependente.
Na década de 1950, o nascente cinema independente brasileiro se encontrava profundamente influenciado pelas ideias e ideais do movimento neorrealista italiano e, ao mesmo tempo, que propagava uma volta aos temas nacionais, desta vez, sob um olhar mais social, humanizado e menos paródico. Olhar este que tanto tinha acostumado o nosso público frequentador das salas de cinema, através dos filmes populares da época produzidos pelos estúdios cariocas, principalmente, era o período do reinado absoluto das chanchadas. Aqui podemos fazer um outro paralelo ao presente histórico, no momento em que as bilheterias nacionais se encontram ocupadas pelas neochanchadas. Por sua vez, o cinema independente tinha como referencia as obras regionalistas de Humberto Mauro (Cataguases), principalmente. A ideologia do cinema independente, que fora propagada por Nelson Pereira dos Santos, Alex Vianny, entre outros, defendia um projeto novo e radical sob todos os pontos de vista, era anti-industrial, no sentido clássico do termo. Aqui temos outro paralelismo com o que acontece no cinema brasileiro contemporâneo. Além disso, os cineastas independentes preconizavam o cânone de um cinema de autor que se encontrasse voltado para a divulgação da nossa cultura nacional-popular, sob a ótica de uma espécie de frente popular do cinema brasileiro, o que não acontece hoje, pois as vertentes ideológicas se encontram muito diversificadas e, em alguns casos, são praticamente irreconciliáveis. Neste cenário dos agitados anos 50, o movimento cinematográfico regionalista de produção se reanima e começa a tornar contornos mais definidos, principalmente em estados ou localidades com alguma tradição cinematográfica, tais como Bahia, Rio Grande do Sul, Minas Gerais e interior de São Paulo, ainda que isto não acontecesse de maneira sincrônica. Curiosamente, os foros naturais destes esforços se legitimaram durante a realização do I e do II Congresso Nacional de Cinema Brasileiro. Estes Congressos aconteceram no Rio de Janeiro e em São Paulo, em 1952 e 1953, respectivamente e foram alicerçados em discussões locais que amadureceram uma nova proposta para o cinema brasileiro. Ainda que pese o fato do que realmente alimentou o surgimento dos congressos de cinema fora exatamente a crise do cinema industrial. O maior fruto deste processo foi o surgimento do Cinema Novo e seus respectivos desdobramentos políticos e históricos.
Os ganhos políticos e estéticos do cinema independente dos anos nacional-desenvolvimentistas poderão ser melhor percebidos nas décadas de 1960 e 1970, ou seja, no período antidemocrático, momento em que percebemos que a produção regionalista irá se concentrar basicamente em torno do filme de curta-metragem. Aqui uma guinada importante, pois havia uma mudança de qualidade tanto dos filmes quanto dos seus realizadores. Nestas obras, percebemos a predominância do filme documentário de caráter histórico ou etnográfico, com algumas incursões ficcionais que não eram dominantes no volume da produção. Vale lembrar o fato de que os filmes realizados pelos ciclos regionais tradicionais almejavam prioritariamente a produção de filmes longos e de ficção. Estas obras eram realizadas para serem exibidas em salas de cinema e outros espaços públicos. Agora, a realidade é outra, pois o filme curto ganhou novos fôlegos, isto se deu fundamentalmente pela renovação da legislação cinematográfica, que se estabelece no primeiro quinquênio da década de 1970. Entretanto a legislação que obrigava a exibição de um filme de curta-metragem de entrecho junto com um filme longa estrangeiro vinha desde a era Vargas, também neste período encontra a matriz do nascimento de um cinema eminentemente cultural.
A legislação protecionista deu alguma asa à produção regional de filmes curtos, ainda que estes estivessem basicamente concentrados no eixo Rio-SP, mas alimentadas pela prática de cinejornais, filmes institucionais ou publicitários algumas localidades do Nordeste e do Sul do País conseguiram ainda se manter na atividade de realização de filmes. Como afirma o crítico e historiador Jean-Claude Bernardet que, de uma maneira geral, o filme curto foi o elemento responsável pela manutenção da atividade do parque de produção cinematográfica nacional, e pela existência de um mercado, mínimo que fosse. Este modo de produção se encontrava amparado no esquema da “cavação”. Esquema este que persiste até os dias de hoje, em formatos mais variados do que aqueles apresentados nas primeiras décadas de existência do cinema nativo, mas “cavação”, ainda. Pois como sabemos, o mercado não demanda este tipo de produção, pois ele foi formatado para o consumo de um determinado produto bem definido, o filme produzido pelo cinema industrial narrativo, predominantemente estrangeiro, claro.
O período entre 1975 e 1982-83, foi um momento que o mercado reagiu positivamente ao filme brasileiro industrial narrativo, mas ainda de maneira inconsistente para promover uma desocupação do produto estrangeiro das entranhas e amarras mercadológicas estabelecidas pela produção hegemônica. Para se ter uma pálida ideia, hoje, algumas das empresas majors aqui instaladas já se encontram atuando de maneira direta entre nós faz mais de 100 anos, como é o exemplo da Fox, não por acaso a maior distribuidora em nível global atualmente em atividade.
Entretanto, durante o transcorrer da década de 1980, boa parte da produção audiovisual cultural e independente acostumou-se ao leito da captação em vídeo, cuja difusão girou em torno das nascentes TVs comunitárias ou alternativas de exibição pública que estavam aliadas a outros espaços e sistemas de difusão mais tradicionais, tais como: sindicatos, igrejas, escolas, museus, universidades, cineclubes etc. Esta foi a chamada era do vídeo (analógico) que se encontrava ligada aos movimentos populares e de vanguarda, que se espalharam por todo o país, quase que ao mesmo tempo. Observamos que esta característica é um dos pilares no neoregionalismo cinematográfico-audiovisual, pois este, também, se reproduz de maneira similar. Esta nova realidade tecnológica, do vídeo analógico, ou seja, de um suporte audiovisual ser utilizado por segmentos tão distintos da sociedade brasileira e sem quase nenhuma tradição do tipo, aponta para alguns traços distintivos do que aconteceu em outras eras na história da nossa cultura cinematográfica e audiovisual. Portanto, de uma maneira geral, desta situação anterior deriva, pelo menos em boa parte, o atual neoregionalismo cinematográfico-audiovisual ultraindependente brasileiro, que começava a se instalar de maneira tentacular entre nós na chamada década perdida. Por sua vez, naquele momento, o mercado ocupado só liberava algumas pequenas franjas para espasmos de produção cinematográfica local, fora do eixo, por assim dizer.
Na década perdida, ainda que houvesse uma produção independente e regional, basicamente concentrada nos seguintes estados: Rio Grande do Sul, Minas Gerais, Pernambuco, não por acaso onde tivemos fortes ciclos regionais no seu período clássico, a situação geral não era das mais animadoras. O mercado cinematográfico se encontrava em pleno declínio, salas fechadas, as rendas caindo etc. Neste cenário, sofrem, principalmente, os filmes populares, as pornochanchadas, pois estas de maneira vertiginosa foram perdendo seus espaços tradicionais de exibição. Isto aconteceu na medida em que os cinemas populares ou de rua foram sendo extintos e a exibição migrava a passos céleres para os Shoppings Centers, cujos efeitos estão até hoje aí para serem percebidos. A produção do filme pornográfico se mostrou como um átimo de produção. De maneira resumida, pode-se dizer que na virada da década de 1980 para o decênio vindouro, o circuito de exibição cinematográfica passou primeiramente por um radical processo de encolhimento e, depois, de reorganização empresarial, com a chegada das empresas transnacionais da exibição de filmes. Somente na segunda metade da década de 1990 o mercado de salas de cinema voltou a respirar, ainda que em um patamar diferente daquele consagrado pela tradição que alicerçou o mercado brasileiro. Em algumas localidades a produção respirava no espírito de uma proposta autônoma, longe dos padrões consagrados pelo modelo vigente desde os anos de 1960. E, com o horizontalização da exibição multiplex, as produções regionais deveriam procurar outros leitos para estabelecer uma relação com o público.
Ainda na década sombria, consolidou-se uma robusta rede de videolocadoras dedicadas ao mercado de locação de fitas para exibição doméstica, que viria dar algum alento ao cinema tupiniquim e regional, mas, este espaço foi logo violentamente ocupado pelas transnacionais do audiovisual e seus produtos. A janela homevídeo veio somente fortalecer as produções das empresas hegemônicas. Estas com o advento do DVD vão alcançar lucros nunca antes vistos por elas. Por sua vez, as produções nacionais e locais ficam acantonadas pela nova onda globalizante do setor. Atualmente, as receitas nestes segmentos se encontram em momento de claro declínio, devido as várias facilidades da tecnologia digital e, principalmente, pela acessibilidade de conteúdo via Internet.
Chama a atenção o fato de que a ascensão mercadológica audiovisual das últimas duas décadas ficou centrada no segmento da TV por assinatura. Este que tomou um fôlego e hoje se caracteriza como o segundo maior mercado do audiovisual, perdendo apenas para a TV aberta em receita. A exemplo do que aconteceu com o vídeo, o mercado de TV paga também foi ocupado pelas grandes corporações, nacionais e estrangeiras. Estas que entupiram a programação com conteúdos importados e, tal segmento, somente em 2012, começou a se oxigenar com alguma produção independente e regional brasileira. Isto graças a edição da lei nº 12.485/11. Lembrando que a participação da produção regional independente da TV brasileira esta fundamentada no Cap. V da Constituição de 1988, lembrando que ela não se remetia a TV por assinatura, pois quando a Constituição entrou em vigor ainda não havia TV paga entre nós. A rigor a chamada Lei do Cabo é apenas uma pequena regulamentação dos artigos que tratam o Cap. V.
A formação da nova onda do neoregionalismo cinematográfico-audiovisual ultraindependente
Como vimos anteriormente, não somos tão destituídos de uma tradição regional cinematográfica e/ou audiovisual, isto porque a ideologia dominante faz tudo para nos levar a pensar desta maneira. Entendo que existe um elemento fomentador deste processo que se encontra nos novos sistemas de difusão de conteúdo audiovisual regional. Entre sistemas de difusão estão os cineclubes, festivais, mostras de filmes e internet. Estes elementos atuando mesmo de maneira assistêmica conseguiram consolidar alguma tradição em suas respectivas localidades e difundindo conteúdos audiovisuais fora dos esquemas tradicionais de circulação de tal produção. O que precisamos é estabelecer uma política que consiga concatenar estes esforços, e com isto alcançar resultados mais expressivos. Pois devemos buscar uma autonomização da atividade neoregional cinematográfica-audiovisual. Construir um modelo próprio e original pautado por algumas experiências bem-sucedidas, no campo nacional e internacional.
Destacamos o cineclubismo da virada do milênio que forjou um novo tipo de formato e atuação que escapavam ao modelo clássico, ou seja, aquele cineclube vocacionado para uma estrita cinefilia e atuação crítica, e também fugia do modelo do cineclube profissionalizado como fora estratificado em algumas localidades de São Paulo, Rio de Janeiro e Minas, na virada da década de 1980 para 1990. Os cineclubes, agora digitalizados, exibem conteúdos dos seus próprios integrantes e de outros também, bem como atuam em rede e servir de veículos para a circulação dos filmes realizados por outros cineclubistas-realizadores e coletivos de produção que pipocaram em várias regiões do país. E claro que estes também mantiveram a tradição cinéfila, mas sem ser o foco e a profissionalização busca uma sinergia de atividades e entes, ao mesmo tempo.
Entre os eventos estão os pioneiros festivais de cinema de Brasília, Gramado, depois, com o tempo, a coisa se espalhou para outras cercanias, tais como: Florianópolis (SC), Recife, Taquaritinga e Triunfo (PE), Belo Horizonte, Ouro Preto, Tiradentes (MG), São Luís (Ma), Salvador (Ba), Belém (PA), Porto Velho (Ro), Curitiba e Londrina (Pr) Santos (SP), Vitória (ES), Manaus (Am) etc.
Estima-se hoje que o número de certames cinematográficos e mostras de conteúdos regionalistas deve estar na casa das dezenas. O Fórum de Festivais que foi criado em 2001 é a prova concreta desta realidade que se encontra embasada em um público de mais de 2,5 milhões de espectadores no ano de 2013, de acordo com o guia de festivais de 2014.
A combinação dos elementos citados também foi decisiva na consolidação deste processo que ainda se encontra em curso. Observa-se que isto tudo vem acontecendo nos mais diversos rincões brasileiros. Este novo cenário está contribuindo para a construção de uma complexa diversidade de conteúdo audiovisual em formatos e gêneros dos mais variados. Vivemos a primavera do audiovisual autônomo e regional brasileiro em uma dimensão histórica totalmente inédita.
O neoregionalismo cinematográfico e audiovisual brasileiro contemporâneo
Diferentemente do passado, o neoregionalismo cinematográfico e audiovisual se trata de uma categoria estética e de um modo de produção, ao mesmo tempo, cujo padrão é o não-padrão. Esta situação se caracteriza por ser uma realidade que se cristalizou de algum tempo para cá, onde produtores regionais de conteúdo audiovisual que se encontram voltados para o entretenimento se espalharam pelos cantos mais recônditos do Brasil.
Esta situação se deve ao fato de que houve uma indução desta produção cujo protagonismo pode ser dividido entre três entes distintos: Estado, sociedade civil e o setor de desenvolvimento tecnológico.
O Estado brasileiro foi um importante indutor deste neoregionalismo em seus três níveis de atuação, portanto, em nível federal, estadual e municipal, pois houve um sistema de financiamento, ainda que irregular, mas que ajudou a calçar unidades fixas de produção, muitas delas situadas em localidades em que historicamente não identificamos uma semente de produção a priori. Esta indução veio através de recursos incentivados, editais de secretarias e organismos ligados ao setor cultural e audiovisual.
O MinC através da Sav desenvolveu projetos de regionalização em locais fora do eixo tradicional de produção através de várias ações como o Cane e o Doc Tv etc. Além disto, houve os editais de produção de curtas e longas-metragens que também tiveram uma certa indução desta nova faceta do audiovisual brasileiro.
Houve também mecanismos de apoio desenvolvidos na esfera local, municipal e/ou estadual e regional, ou seja, nutridos pelas prefeituras e pelos governos estaduais, em diferentes níveis. O FSA e a regulamentação da lei 12.485/11 são elementos novos que estão dando uma musculatura para que tal processo possa vir realmente a amadurecer.
Por outro lado houve iniciativas particulares que também alimentaram de maneira significativa a produção regional. Observa-se a atividade de realizadores que por iniciativa própria enfrentam a dura realidade de produzir e distribuir seus conteúdos audiovisuais, sendo que muitos destes filmes são permeados pelo cinema de gênero (horror e ação) ou de viés experimental ou autoral. Outra realidade identificada foi a presença dos coletivos de cinema que entabularam um modo próprio de produção com a finalidade de garantir uma circularidade de um esquema de produção pautado por poucos recursos e muita vontade de fazer a coisa em si.
Além disso, nos últimos anos, identificamos o surgimento de escolas de cinema e audiovisual, notadamente, no espectro de cursos universitários de graduação, extensão e pós-graduação. Hoje no Brasil são mais de 60 cursos de graduação espalhados pelo território brasileiro. Cada um deles com a sua produção está contribuindo de maneira decisiva para a ampliação da produção ultraidenpendente brasileira.
Além disso, destaca-se a presença de festivais e mostras de cinema e vídeo espalhados pelo país que serviram como janelas e como elementos indutores desta enorme safra de filmes. Entre estes podemos destacar a Mostra do Filme Livre, Mostra do Cinema de Garagem, Mostra do Cinema de Bordas etc. Além dos grandes festivais como Gramado, Brasília etc. que dedicam espaços e prêmios regulares aos filmes produzidos nas suas cercanias.
Por fim, o elemento aglutinador deste cenário, com certeza, se encontra nas facilidades oferecidas pelos dispositivos digitais de captação, finalização, reprodução e exibição de um modo geral. Este cenário também foi incentivado pela blogesfera e pelas mídias sociais que se transformaram em importantes ferramentas de divulgação, informação e extroversão deste tipo de produção que transita entre o fã, o amador e o aspirante a profissional.
André Gatti atua desde os anos 80 na formação de quadros para o cinema, por meio de oficinas, cursos de graduação e pós-graduação. Pesquisador da indústria do cinema e do audiovisual, com obras publicadas em livros, artigos, verbetes no Brasil e no exterior.
BIBLIOGRAFIA
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NORONHA, Jurandyr. Dicionário Jurandyr Noronha de cinema brasileiro de 1896 a 1936 – do nascimento ao sonoro. Rio de Janeiro: EMC, 2008.
RAMOS, Fernão; MIRANDA, Luís Felipe (orgs.). Enciclopédia do cinema brasileiro. Senac: São Paulo, 2012.