Por Mariana Lemos, Caio de Oliveira e Letícia de Sá
Introdução
O cinema é uma arte que possui o poder de envolver de forma especial aqueles que a assistem. Ao vermos um filme, nos desconectamos do mundo real e passamos a sentir e nos emocionar com os personagens que aparecem na tela. Mesmo sabendo que trata-se de algo fictício, durante o tempo em que estamos expostos à história, não conseguimos nos distanciar o bastante ao ponto de não sentirmos as mais diferentes emoções relacionadas aos acontecimentos da trama.
Essa capacidade que o cinema possui é o resultado da soma de várias ferramentas da linguagem cinematográfica. Quão melhor essas ferramentas forem articuladas, mais fácil e forte será a introdução do espectador na história. Um departamento que possui grande importância nesse processo de criação do mundo proposto pelo filme é o departamento artístico, visto que é responsável pela criação de cenários, figurinos, maquiagens. Uma das diversas opções a serem trabalhadas pelos responsáveis pelo departamento artístico são as cores.
Presentes em todos os filmes (mesmo naqueles em preto e branco), as cores nunca são escolhas aleatórias, mas sim algo consequente de um estudo, visto que influenciam a forma como o espectador irá reagir à história. Desde objetos no cenário e o figurino, até a edição das imagens na pós-produção, as cores são elementos que muitas vezes passam despercebidas pelos espectadores, mas inconscientemente, os ajudam a “entrar” na trama e compreender melhor os personagens e as situações.
O presente estudo visa analisar a utilização das cores complementares azul e laranja no cenário e no figurino do filme “Pedalando com Molière” (no original, Alceste à bicyclette).
O universo fictício da mis-en-scène
O processo de assistir a um filme é algo curioso, pois adentramos em um universo particular e nos envolvemos com a história narrada, nos desligando do mundo ao nosso redor. Se as ferramentas da linguagem cinematográfica forem utilizadas de forma harmônica, esse universo fictício será crível para o espectador e o mesmo terá maior prazer em assistir ao filme.
De acordo com Machado (1997, p.46), o fascínio que o cinema gera no espectador pode ser comparado ao fascínio do sonho.
Quando se apagam os focos de luz e silenciam os estímulos sensoriais do ambiente da sala de projeção, o espectador se coloca, portanto, à mercê do intenso estímulo luminoso que se impõe à sua frente e nesse ato de entreguismo e vulnerabilidade ele se deixa sugestionar pelo universo fictício da narrativa, a ponto de se integrar no seu jogo de conflitos como se fizesse parte deles.
Segundo Bordwell e Thompson (2013), quatro áreas constituem a mise-en-scène, ou seja, aquilo que aparece no quadro fílmico: o cenário, o figurino e a maquiagem, a iluminação e a encenação. Todas são articuladas de acordo com o desejo do diretor em prol da construção do filme.
O cenário é algo quase imprescindível em uma produção cinematográfica, pois não funciona apenas como um ambiente para as ações dos atores, faz parte da ação narrativa. Bazin [20-], citado por Bordwell e Thompson (2013, p. 209), afirma que o ser humano é indispensável no teatro, mas o drama na tela pode existir sem atores. “Algumas obras-primas do cinema usam o ser humano apenas como um acessório, como um figurante ou em contraponto com a natureza, que é a verdadeira protagonista.”
Assim como o cenário, o figurino também participa da ação narrativa de um filme, visto que é carregado de significados a respeito do indivíduo que o utiliza. Os figurinos auxiliam o espectador a compreender a personalidade dos personagens e, consequentemente, interiorizar a história narrada.
É evidente, portanto, que até mesmo os detalhes dos figurinos e dos cenários de uma produção audiovisual são pensados de forma a melhor construir a atmosfera do filme e a transmiti-la ao espectador, levando-o a “entrar” no universo fictício da obra e ignorar a sua realidade por alguns minutos.
O filme “Pedalando com Molière” (2013)
A comédia francesa, dirigida por Philippe Le Guay, nos apresenta Serge Tanneur (Fabrice Luchini), um respeitado ator que decide se aposentar e viver na pequena Île de Ré, uma ilha costeira da França, situada no Oceano Atlântico. No entanto, após anos de ostracismo, sua calma é interrompida pela chegada de Gauthier Valence (Lambert Wilson) um antigo amigo e famoso ator de televisão que o convida a interpretar um papel na peça “O Misantropo”, do dramaturgo francês Molière. Após se sentir ofendido por não lhe ser oferecido o papel principal e, inicialmente, recusar o convite, Serge propõe um desafio ao amigo: ensaiar a peça juntos durante cinco dias, para depois ele decidir sobre a sua participação.
Os diálogos dos atores, repletos de humor e amargura, emocionam e envolvem o espectador. Serge, após receber a oportunidade de encenar sua peça favorita, deseja interpretar Alceste, o protagonista da história e, por possuir diversas características do personagem, acredita ser a pessoa ideal para vivê-lo. No entanto, Gauthier também quer interpretar Alceste. A partir de então, uma batalha de egos é travada entre os dois. Enquanto Serge é um homem desiludido e avesso ao showbiz, Gauthier é um astro televisivo em busca de um maior reconhecimento de seu talento.
Trata-se de um filme realizado com cuidado em vários aspectos, pois possui belos cenários, diálogos sagazes, personagens bem construídos e ótimas atuações. Durante os cento e quatro minutos de duração da trama, o público se sente privilegiado por poder “presenciar” aos diálogos dos dois amigos que, ao mesmo tempo que se admiram, se abominam. Além disso, o roteiro combina falas originais do texto de Molière, escrito no século XVIII, com o discurso dos personagens, proporcionando à comédia um ar metalinguístico.
As cores
As cores utilizadas no filme reforçam a diferença entre as personalidades dos personagens, enriquecendo muito a produção. Percebemos a presença do azul em diversos lugares, na maioria das vezes, acompanhado por tons de laranja. Trata-se de cores complementares situadas opostamente no círculo cromático e comumente utilizadas para representar frio e calor.
Segundo Heller (2012, p. 18), “não existe cor destituída de significado. A impressão causada por cada cor é determinada por seu contexto, ou seja, pelo entrelaçamento de significados em que a percebemos.” Portanto, a presença das cores em questão no figurino dos personagens é algo repleto de significações.
A respeito das cores em uma produção cinematográfica, Frazer e Banks (2013, p. 96) dizem que
O diretor (e algumas vezes o escritor) normalmente decidirá e controlará o que é expressado pela cor, embora os efeitos tenham de ser percebidos pelos diretores de arte e de fotografia. Que cores serão identificadas com personagens, como o verde de Madeleine em Um corpo que cai (1958)? Que cor será enfatizada em paisagens, fundos e interiores? E aqueles pequenos detalhes? Mesmo a cor de um saleiro pode estar impregnada de significado. Nada em um filme está lá por acaso […].
Nesse trabalho veremos que, apesar de às vezes passar despercebida, a presença de determinada cor em um filme nos transmite muitas mensagens e nos auxilia a adentrar na trama e compreender a personalidade dos personagens nela retratados.
Apesar de a reação de um indivíduo à cor ser particular, subjetiva e relacionada a vários fatores, os psicólogos estão de comum acordo quando atribuem certos significados a determinadas cores que são básicas para qualquer pessoa que viva dentro da nossa cultura (FARINA, 1982).
O azul e o laranja
De acordo com Heller (2012), as cores complementares, tecnicamente falando, são as que mais contrastam entre si. No círculo cromático encontram-se sempre umas diante das outras. Os pares de cores complementares são constituídos por uma cor primária e uma cor secundária, como por exemplo: azul e laranja.
O azul é associado à montanhas longínquas, ao frio, ao mar, ao céu, ao gelo e à feminilidade, assim como à verdade, à intelectualidade, à paz, à precaução, à melancolia, à serenidade, à confiança, à amizade, ao amor e à fidelidade. Já o laranja, é associado ao outono, ao fogo, ao pôr do sol, à luz, à chama, ao calor, à festa, ao perigo, à aurora, à robustez, à força, à euforia, à energia, à alegria, à tentação, ao prazer a ao senso de humor (FARINA, 1982).
Para Farina (1982, p. 92),
As sensações de calor e frio em relação a uma cor são relativas ao indivíduo que a vê. Mas é inegável que as cores possuem um significado psicológico e filosófico específico, que já é de importância universal, criado possivelmente pela própria vida do homem na face da Terra, intrinsecamente ligado às suas experiências diárias. Além disso, o calor e o frio de uma cor também estão sujeitos às relações em que as cores se situam dentro de uma composição qualquer. Normalmente denominamos cores quentes as que derivam do vermelho-alaranjado e de cores frias as que partem do azul-esverdeado.
Segundo Heller (2012), o fato de o azul ser percebido como frio baseia-se na experiência: nossa pele fica azul no frio; o gelo e a neve possuem uma cintilação azulada. Além disso, o azul tem um efeito mais frio do que o branco, pois este significa luz enquanto que o azul é sempre o lado sombrio. O laranja, por outro lado, é a combinação de luz e calor e possui um caráter penetrante e até mesmo intrusivo e pertence ao acorde da extroversão e da ostentação.
Bellatoni (2005), acredita que o laranja manifesta sua influência de uma maneira diferente das outras cores. Enquanto o vermelho fala “estou aqui!”, o amarelo é exuberante e o azul é relaxado, pesquisas revelam que o laranja é legal e divertido. Sobre o azul, a autora afirma que pode ser um “lago sereno” ou um “macio cobertor de tristezas”. É quieto e distante e em ambientes azuis as pessoas se tornam passivas e introspectivas. Trata-se de uma cor que nos leva a pensar e não a agir.
Max Luscher, diretor do Instituto de Diagnósticos Psicomédicos em Lucerna, na Suiça, criou um teste psicológico com cartões coloridos para determinar aspectos da personalidade das pessoas. De acordo com esse teste, o azul possui as seguintes características positivas: inteligência, comunicação, confiança, eficiência, serenidade, dever, lógica frescor, reflexão e calma; e negativas: frieza, altivez, falta de emoção e antipatia (FRAZER; BANKS, 2013).
As cores e os personagens
Bellatoni (2005) afirma que, devido à sua tendência para provocar inércia, o azul raramente é utilizado como cor dominante nos filmes. A menos que se queira esse efeito “cobertor de tristezas”, como no caso de “A liberdade é azul”, de 1993 (no original, Trois Couleurs: Bleu), parte da Trilogia das Cores do cineasta polonês Krzysztof Kieslowski, que explora exatamente esse potencial da cor.
Em “Pedalando com Molière”, percebemos o azul em diversos lugares, principalmente na casa de Serge. No entanto, o que torna a estética do filme ainda mais fascinante são os elementos alaranjados situados em diversas cenas. Nem sempre notadas pelo espectador, as duas cores estão presentes em quase todas as cenas do filme.
A casa do personagem é muito antiga, necessita de reforma e possui algumas janelas, portas e paredes azuis. Vale ressaltar que os tons de azul não são vibrantes, e sim frios, muitos se assemelham ao cinza. Além disso, essas cores também estão presentes no figurino do ator. O azul ao redor de Serge realça seu caráter introspectivo e sua vontade de se isolar do mundo. Os objetos alaranjados na casa do ator nos revelam um lado alegre e extrovertido, embora o seu descontentamento com a sociedade seja grande e dominante em sua vida, não lhe permitindo muitos momentos de descontração.
Gauthier, por outro lado, é um homem elegante, galanteador e comunicativo. Na maioria das vezes aparece utilizando roupas claras com peças alaranjadas. A presença do laranja no figurino de Gauthier enfatiza sua personalidade, principalmente quando contrastado com o azulado predominante no figurino e na casa do outro personagem. Essas cores, por serem complementares, quando colocadas lado a lado saltam aos olhos do espectador.
Para o estudo em questão foram escolhidas quatro cenas onde esse contraste entre as cores se manifesta. A primeira delas, chamada de Cena 1, mostra o encontro inicial entre os dois amigos, quando Gauthier acaba de chegar na casa de Serge. Logo nesse início do filme vemos elementos azuis e alaranjados no ambiente. Na cozinha, percebemos claramente esse contraste, não só nas paredes, como também no bule (azul) e na panela (laranja). Da mesma forma, no figurino dos dois personagens podemos observar a presença dessas cores complementares. Serge veste um colete e uma blusa azul escuro, enquanto Gauthier veste um sobretudo bege claro com um cachecol colorido (dentre as cores está o laranja).
Cena 1
A Cena 2 escolhida mostra o primeiro ensaio da peça teatral realizado pelos atores da trama. Nessa cena o contraste entre as cores fica bem evidente no figurino utilizado pelos personagens, o que ajuda a enfatizar a diferença entre a personalidade dos mesmos. Além disso, somos envolvidos pelas paredes azuis e notamos objetos alaranjados distribuídos pelo ambiente.
Cena 2
Outra cena onde fica ainda mais claro, para o espectador, a presença do contraste entre o azul e o laranja é a do primeiro passeio de bicicleta realizado pelos personagens, chamada aqui de Cena 3. Nela, Serge, como de costume, veste azul escuro e Gauthier, laranja. Além disso, a paisagem (cenário) também reforça essa dicotomia de personalidades, com a presença da água em sua tonalidade fria, mas com a cena pontuada pela iluminação solar.
Cena 3
Na cena do penúltimo ensaio da peça teatral realizado pelos atores (Cena 4), quando os dois personagens parecem estar em harmonia, as cores contrastantes complementares não são evidenciadas no figurino. No entanto, a poltrona alaranjada está à direita do quadro, o mesmo acontecendo com Gauthier.
Cena 4
Além das cenas acima mencionadas, é interessante analisar os minutos finais do filme (Sequência 1), visto que vemos, pela primeira vez, Gauthier utilizando uma blusa azul combinada com cores escuras. Podemos interpretar esse fato como uma consequência por ele ter traído o amigo. Dessa forma, deixou de ser aquela pessoa alto-astral que vimos durante a obra e se mostrou possuidor de uma enorme frieza ao ir para a cama com a mulher pela qual Serge havia se apaixonado.
Sequência 1
Considerações finais
É importante perceber que tudo em uma produção cinematográfica é pensado com o intuito de melhor construir e transmitir a história para o espectador. Apesar da maioria das pessoas não notar e apenas absorver o que assiste na tela, todos os detalhes, quando trabalhados de forma coesa, auxiliam o observador a entrar no mundo fantástico do filme.
“Pedalando com Molière” é um longa-metragem que apresenta diversas ferramentas da linguagem cinematográfica trabalhadas com maestria. Dentre elas, analisamos nesse trabalho a utilização das cores azul e laranja. As composições cromáticas do filme, além de esteticamente encantadoras, transmitem mensagens para o espectador. A presença do azul e do laranja nas cenas intensifica o contraste existente entre a personalidade de Serge e a de Gauthier e nos auxilia a assimilar o caráter dos dois. O primeiro, um intelectual introspectivo, o segundo extrovertido e até mesmo intrusivo. Ambos diferem muito entre si e são essas diferenças que intensificam a graça do filme.
As cores podem influenciar os sentimentos do espectador e precisam ser bem planejadas para não causar estranhamento (a não ser que esse seja o objetivo). Elas guiam o olhar do público e podem até sugerir sensações como calor ou frio. No caso do filme analisado, o contraste de “temperatura” sugerido pela utilização de uma cor fria e de uma quente foi empregado como recurso metafórico para demarcar a diferença de personalidade entre os personagens centrais da trama.
Mariana Lemos é graduada em Publicidade e Propaganda pelo Centro de Ensino Superior de Juiz de Fora e gradanda em cinema pela UFJF.
Caio de Oliveira é graduado em Publicidade e Propaganda pelo Centro de Ensino Superior de Juiz de Fora.
Letícia de Sá é especialista em Moda, Cultura de Moda e Arte pela UFJF e Professora de Jornalismo, Publicidade e Design de Moda do CES/JF
BIBLIOGRAFIA
BELLANTONI, Patti. If it’s purple, someone’s gonna die: the power of color in visual storytelling for film. Burlington: Elsevier, 2005. 243 p.
BORDWELL, David; THOMPSON, Kristin. A arte do cinema: Uma introdução. Tradução: Roberta Gregoli. Campinas: Editora da Unicamp; São Paulo: EDUSP, 2013. 768 p.
FRASER, Tom; BANKS, Adam. O guia complete da cor. 2 ed. São Paulo: Senac, 2007. 224 p.
HELLER, Eva. A psicologia das cores: como as cores afetam a emoção e a razão. Barcelona: Garamond, 2012. 311 p.
MACHADO, Arlindo. Pré-cinemas & pós-cinemas. 4 ed. Campinas: Papirus, 2007. 303 p.
MODESTO, Farina. Psicodinâmica das cores em comunicação. São Paulo: Edgard Blucher, 1982. 274 p.
PEDALANDO com Molière. Direção: Philippe Le Guay. Intérpretes: Fabrice Luchini, Lambert Wilson, Maya Sansa. Roteiro: Fabrice Luchini; Philippe Le Guay. 2013. 1 DVD (104 min), son., color.