Por Lucas Ravazzano de Mattos Batista
Introdução
A produção de musicais no Brasil passou por diferentes momentos ao longo da história da nossa cinematografia. Dos musicarnavalescos e das Chanchadas que começaram a partir dos anos de 1930, passando pelos filmes da Jovem Guarda em meados dos anos de 1960, até o chamado movimento do BRock que se deu a partir de 1980, apenas para ficar em alguns dos principais movimentos. Uma coisa que todos esses momentos da nossa produção musical tem em comum é o diálogo constante com a música brasileira e seus artistas.
Se nas Chanchadas tínhamos a presença de músicos como Francisco Alves ou o Trio Irakitan aparecendo em números musicais, durante o período da Jovem Guarda tivemos artistas como Roberto Carlos e Wanderlea interpretando a si mesmos em narrativas ingênuas sobre aventuras e romance, enquanto que no BRock tínhamos a presença de bandas como Barão Vermelho ou Ultraje a Rigor.
Apesar destes artistas aparecerem em cena quase sempre como personagens de si mesmos, as narrativas que os acompanhavam não eram, em geral, histórias sobre suas vidas, sobre sua trajetória profissional ou seu caminho rumo ao sucesso. O formato da cinebiografia musical, tão presente no cinema hollywoodiano em filmes como The Doors (1991) ou Ray (2004), só começou a ser produzido com vigor a partir da década de 1990 com O Mandarim (1995), de Júlio Bressane, e foi crescendo através dos anos 2000 em filmes como Cazuza: O Tempo Não Para (2004), Dois Filhos de Francisco (2005) ou Tim Maia (2014). O formato não dá sinais de cansaço, com filmes sobre Rita Lee e Erasmo Carlos sendo produzidos. Se movermos nosso olhar do campo da ficção para o documentário, o número de produtos fica ainda maior, mas, por enquanto, trataremos apenas da ficção.
Artistas da música e a biografia no cinema brasileiro
Antes de mais nada é preciso esclarecer que os exemplos anteriormente não são exatamente os primeiros exemplares de musicais biográficos localizados dentro da produção cinematográfica brasileira. Antes destes tivemos filmes como A Estrada da Vida (1983), dirigido por Nelson Pereira dos Santos, que abordava a história da dupla sertaneja Milionário e José Rico e foi estrelada pelos próprios. No entanto, está distante demais temporalmente deste atual ciclo para ser inserido nele e não possui filmes similares cronologicamente próximos de si para que possamos afirmar que houve um movimento anterior.
Tivemos também a obra Tico Tico no Fubá (1952), uma biografia do compositor Zequinha de Abreu produzida pela Vera Cruz e também Chico Viola Não Morreu (1955), sobre a vida de Francisco Alves, mas este não é considerado musical, constando como drama em bases de dados como IMDb, E-Pipoca e Adoro Cinema. Deste modo, percebemos que o cinema brasileiro já tinha alguma vocação em produzir biografias de músicos famosos, embora relativamente afastados uns dos outros para serem considerados como ciclos ou tendências como ocorre a partir de 1990. Trataremos, portanto, destes filmes, começando por O Mandarim e passando por Cinderela Baiana (1997), Villa Lobos: Uma Vida de Paixão (2000), Cazuza: O Tempo Não Para (2004), Dois Filhos de Francisco (2005), Noel: Poeta da Vila (2006), Gonzaga: De Pai Para Filho (2012), Somos Tão Jovens (2013) e Tim Maia (2014).
O Ciclo das Biografias
O Mandarim, de Júlio Bressane, é possivelmente a menos convencional das obras aqui tratadas. Comumente identificado como parte do movimento do cinema marginal brasileiro iniciado em meados da década de 1960, o diretor Júlio Bressane costuma realizar filmes de caráter mais experimental e muitos de seus filmes não apresentam este tipo de narrativa tradicional, linear, como ocorre em O Mandarim. Apesar de tratar do cantor e compositor Mário Reis, O Mandarim não apresenta uma reconstituição factual da vida de seu biografado. Ao invés disso sobrepõe imagens, diálogos e performances que nos revelam as influências, ideias e obras do artista, sua reconstrução, portanto, é muito mais de ordem sensorial e temática. Apesar de se distanciar deste modelo de narrativa clássica que normalmente está associada ao cinema musical, isso não interdita que ele possa ser considerado como parte do gênero.
Cinderela Baiana, dirigido por Conrado Sanchez, é levemente baseado na vida da dançarina Carla Perez, interpretando a si mesma, que à época integrava o grupo É O Tchan, mas, como o título sugere, essa história tenta se desenvolver com um viés romantizado de conto de fadas, claramente voltado para um público mais infantil. Assim sendo, as performances do filme são mais dançadas do que cantadas. Embora algumas das performances sirvam para estabelecer a personalidade da protagonista ou delinear conflitos, outros números de dança parecem não possuir relação nenhuma com a personagem ou suas ações. Isso o distancia um pouco da típica biografia musical, mas o coloca em proximidade com o musical infantil brasileiro, como os filmes dos Trapalhões ou da Xuxa, que também traziam este tipo de número de canto ou dança que muitas vezes eram desconectados do desenvolvimento da trama ou dos personagens.
O filme seguinte é Villa-Lobos: Uma Vida de Paixão, de por Zelito Viana, que acompanha a trajetória do compositor brasileiro de sua juventude à sua morte. Sua narrativa é estruturada de modo não linear, indo e voltando entre os diferentes períodos da vida de Villa-Lobos, como se fossem as memórias fugidias que passavam pela mente do compositor em seus últimos momentos. Sob algumas perspectivas teórico-metodológicas esse filme não seria considerado musical, já que teóricos como Jane Feuer ou Barry Keith Grant entendem que o musical tem números de canto ou dança e este filme tem majoritariamente apresentações de música orquestral, embora seja impossível negar a importância e centralidade da música e seus números para o filme. A obra representa também uma tentativa de realizar um grande épico no cinema brasileiro, algo que Mauá: O Imperador e o Rei (1999) tinha tentado fazer um ano antes.
Cazuza: O Tempo Não Para, de Sandra Werneck e Walter Carvalho, por sua vez, é um exemplar mais tradicional das cinebiografias musicais. Foi o primeiro filme do ciclo a se tornar um sucesso de público, tendo sido a nona maior bilheteria do ano de 2004. A partir de então praticamente todas as cinebiografias lançadas comercialmente seguiram um modelo similar ao seu que, como já foi dito, parece tirar uma parcela de inspiração pelas cinebiografias produzidas pelo cinema hollywoodiano, em especial em sua estrutura narrativa ao acompanhar seu percurso rumo à fama, tratando dos bastidores de sua trajetória, as inspirações para seus sucessos e os problemas que surgem conforme sua fama e sucesso aumentam.
No filme, as apresentações musicais marcam os principais momentos da vida do protagonista. Um deles é quando Cazuza conhece pela primeira os músicos com quem irá formar o Barão Vermelho e eles começam a tocar, sendo através da performance de uma canção, e não por diálogos, que o laço e a amizade entre eles se estabelece. Do mesmo modo, a número final com a canção o Tempo Não Para aparece para nós quase como uma síntese daquilo que o cantor sentia quando estava se aproximando de seus últimos dias
O filme seguinte é Dois Filhos de Francisco, dirigido por Breno Silveira, que conta a história da dupla Zezé di Camargo e Luciano. A trama se divide em duas partes acompanhando primeiro a infância de Mirosmar, nome real de Zezé, de sua formação como músico até a morte de seu irmão Emival. Depois dá um salto no tempo e reencontramos o personagem já adulto e suas tentativas de construir uma carreira musical ao lado do irmão Welson, nome real de Luciano, até o ponto em que atingem o sucesso com a canção É o Amor. O filme, no entanto, apresenta poucos números, a maioria deles na fase da infância do protagonista. Já na segunda parte, temos apenas o número que nos apresenta a Zezé em sua fase adulta. De resto a música aparece ao fundo em montagens que mostram a passagem de grandes períodos de tempo, como a primeira turnê do protagonista ainda na infância ou seus ensaios com Luciano já adulto.
Noel: Poeta da Vila, de Ricardo Van Steen, trata do sambista Noel Rosa, acompanhando o percurso do cantor e compositor para alcançar o sucesso, suas dificuldades, o preconceito de sua família e seus problemas de saúde. O filme é bastante marcado pelas performances de canto e também de dança e estes embalam momentos importantes da vida do cantor. Além disso, também nos mostra, embora superficialmente, o cenário boêmio dos morros cariocas do início do século XX no qual o samba se desenvolveu e se difundiu, revelando outras figuras importantes deste cenário como Wilson Batista, Cartola e Mário Lago.
Já Gonzaga: De Pai para Filho, de Breno Silveira, trata da trajetória de Luiz Gonzaga, considerado o rei do baião, e seu filho Gonzaguinha, cantor e compositor. Traça um amplo panorama da vida dos dois artistas e os números de canto e dança reconstroem algumas das principais apresentações de suas trajetórias, como o momento em que vemos apresentação de Luiz Gonzaga no programa de Ary Barroso ou o número com a canção Dezessete e Setecentos que leva à sua demissão da gravadora e ao começo de sua parceria com Humberto Teixeira.
Somos Tão Jovens, de Antonio Carlos da Fontoura, trata da carreira de Renato Russo, líder da banda Legião Urbana e, assim como Dois Filhos de Francisco, seu foco é nos anos iniciais da carreira do artista e seu período de formação. Os números musicais performances ajudam a colocar a trama para frente, os conflitos entre Renato e seus colegas de banda surgem durante as performances, enquanto tocam ou ensaiam e a performance final da canção título delineia os sentimentos e a visão de mundo do protagonista.
Por fim há Tim Maia, de Mauro Lima, que acompanha a carreira do músico homônimo desde sua juventude até a sua morte. Há uma diferença na versão veiculada nos cinemas com a que foi exibida na televisão pela Rede Globo, mas neste texto tratamos da versão de cinema. Assim como boa parte dos filmes deste ciclo, o filme segue a abordagem comum de tratar do percurso para o sucesso, as dificuldades enfrentadas e os amores vividos, tudo isso influenciando sua produção musical. Cada fase de sua carreira é marcada por um número que se relaciona com a jornada do artista naquele momento, tanto que a cena em que ele canta pela primeira vez a canção Você é deslocada para o final do filme, como se representasse uma síntese ou resumo de tudo que vimos sobre o cantor até aquele momento ou que o filme tentasse aplacar o pesar de sua morte com aquilo que seus realizadores consideravam como sendo seu melhor momento.
Assim sendo, através deste breve panorama do recente ciclo de biografias musicais do nosso cinema, vemos como estes filmes mantêm a tradição do gênero musical na cinematografia brasileira, inclusive exibindo a mesma relação entre cinema e música popular presente desde os musicais carnavalescos do período das Chanchadas.
Lucas Ravazzano é doutorando em Comunicação e Cultura Contemporâneas pelo POSCOM/UFBA
BIBLIOGRAFIA
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