DESCRENÇA E MÁGICA NO MUSICAL DE HOLLYWOOD

Por Euro Azevedo

De algumas décadas pra cá, alguém que observasse o tema teria impressão de que o filme musical não se sustenta mais como gênero, como produto cultural de massa. De sua Era de Ouro até o nosso tempo, uma curva descendente representaria a diminuição na produção de filmes do gênero, até a rejeição massiva contemporânea: no gráfico A (abaixo) — Qual destes gêneros fílmicos você gosta mais?1 —, proveniente do site Statista.com, notamos que o musical é o gênero específico menos apreciado, acima apenas da categoria ‘outros’ e de ‘não gosto de nenhum gênero fílmico’; no caso de B — Qual seu gênero fílmico favorito?2, o musical vence apenas da categoria ‘filmes independentes’, perdendo para estranhas nomenclaturas genéricas, tais como ‘baseado em revista em quadrinhos’ e ‘re-lançamentos’. Não seria necessário, entretanto, recorrer a estudos de estatística. Pergunte você mesmo a conhecidos ou faça uma pesquisa no Google com os termos ‘Why’ ‘Hate’ ‘Musical’ ‘films’ (‘por que’ ‘odeia’ ‘filmes’ ‘musicais’) — nós fizemos, e o número de páginas indexadas chega 9.670.000 — e descubra que poucas pessoas afirmam gostar de filmes musicais e que há, pairando no ar, um ‘regime interpretativo’ muito pouco favorável a estas obras.

Gráfico 1

Gráfico 2
Não é incomum, por exemplo, ouvir ser inaceitável, no que tange a questões de verossimilhança, o fato de que, nos musicais, começa-se a cantar e a dançar ‘do nada’, como se, ao ser bem-sucedido na conquista de um amor, a pessoa saísse por aí entoando canções e se movendo sincronicamente — isso quando não é auxiliado pelos transeuntes e/ou por elementos inanimados (o guarda-chuva, os postes, as poças d’água). Também na literatura sobre o tema, é recorrente a menção à mudança de regime poético do filme – ou seja, da contação para a mostração, ou, mais especificamente, do ‘mundo real do filme’ para o mundo onírico das sequências dançantes e cantantes. O irrealismo do acontecimento e sua má aceitação pelo público atual, curiosamente, evoca o velho Aristóteles em sua questão sobre a verossimilhança na narrativa: para o autor, nesta, o impossível persuasivo é preferível ao possível não persuasivo. A partir disso, lembremos de como alguns números musicais surgem em certos filmes: aparentemente despreocupados com a persuasão (a não ser quando justificados como parte da narrativa, o que é o caso dos chamados ‘musicais de backstage’), como se aquela estória, que até então respeitava várias das regras de um ‘realismo’ ou ‘naturalismo’ bem assentados, simplesmente ‘delirasse’. Este texto, não obstante, deseja argumentar contra a ideia de que o musical seja uma gênero especialmente absurdo no que tange a questões de verossimilhança, ao menos em relação a outros gêneros. Por outro lado, sugere a ideia de que, no caso dos musicais, a sua capacidade de gerar ‘encanto’ deriva, muito significativamente, desta sua calculada e singular inverossimilhança — e que este ‘encanto’, por sua vez, é responsável por efeitos muitas vezes não-creditados ao gênero, a exemplo da autorreflexividade.

O argumento que diz de uma suposta ‘hiper-inverossimilhança’ dos musicais não se sustenta frente à mínima análise comparativa. Se é possível acreditar que James Bond pode, armado apenas com uma pistola Walter PPK — cujas diferentes versões têm capacidade, em média, de oito balas —, atirar e matar vinte soldados russos portando metralhadoras, isso tudo depois de várias doses de ‘vodca Martini, batida, não mexida’; se é possível acreditar que uma aranha radioativa (geneticamente modificada, nas versões mais recentes) pode envenenar o jovem Peter Parker a ponto não de causar-lhe febre ou levar-lhe à morte, mas de conceder-lhe fantásticos poderes aracnídeos; se cremos ser aceitável que seres de outros planetas, em outras galáxias falem inglês — e não qualquer inglês, mas uma sua cepa específica, com sotaque britânico ou estadunidense; se ‘aceitamos’ haver uma colônia de anjos sobre os céus de Berlim — tal qual Asas do Desejo (1987, Wim Wenders), por que duvidaríamos de alguém que dança? Coisa muito mais absurda se aceita em outras obras, aliás. Gregor Samsa, protagonista de A Metamorfose (1915, Franz Kafka), vê-se logo na primeira página transformado em um ‘inseto monstruoso’, sem que se explique como deu-se tal transformação. O próprio diabo visita a Moscou comunista de 1930, acompanhado de um gato imenso, que usa gravata e fala, em O Mestre e Margarida (Mikhail Bulgakov, 1973); de fato, a ficção não é conhecida e renomada pelo seu estatuto documental. Por que razão, então, este seria o motivo da ‘desgraça’ — e não da ‘graça’, como se tenta argumentar aqui — do filme musical?

Um termo muito caro às representações artísticas nos serve aqui: ‘suspensão da descrença’, cunhado pelo poeta e filósofo da estética Samuel Taylor Coleridge, que tenta explicar a atitude de fruidores frente a obras que desafiam regras da possibilidade. De acordo com este conceito, o que acontece é que, frente a acontecimentos ficcionais, os espectadores tendem a suspender sua descrença em relação ao que fruem. É assim que podemos apreciar um grotesco filme de terror sem sair correndo: cabeças não giram trezentos e sessenta graus em nossa realidade compartilhada, mas, no mundo do filme, podem fazê-lo. É a ‘suspensão da descrença’ — ou, dito de outra forma, a nossa faculdade de crer que as regras que se aplicam ao nosso mundo não se aplicam, em sua plenitude, ao mundo ficcional no qual imergimos — que geraria, por fim, o que Coleridge chamaria de “fé poética”. A sequência brevemente analisadas abaixo serve, aqui, como exemplo — tanto do poder de ‘encanto’ citado anteriormente, quanto de momento em que a descrença realista/naturalista se inclina à suspensão.

Em Núpcias Reais (Royal Wedding, 1951, Stanley Donen), o personagem Tom Bowen, interpretado por Fred Astaire, dança nas paredes e no teto de seu quarto porque está apaixonado por uma moça que também ama dançar. Astaire — nesse caso específico, por conta do capital simbólico ligado à sua figura, cremos ser mais significativo usar o nome do ator do que o nome do personagem — caminha para seu quarto enquanto ouvimos as primeiras notas de You are all the world to me (1950, Burton Lane), senta-se em sua cadeira e se põe a observar o retrato de sua amada, Anne Ashmond. Espera-se, claro, um momento intimista, de música e dança, e é o que acontece. O personagem faz uso de props, como quando dança com a cadeira, enquanto ‘diz’ parte da letra da música a uma fotografia de sua amada. Todavia, em meio ao seu número, Astaire, para nosso delírio espectatorial e para o ultraje de qualquer exigência realista/naturalista, começa a dançar em uma das paredes do quarto, assim, sem mais, nem menos, como se a força da gravidade e as leis da física se dobrassem ao seu caprichos de dançarino apaixonado. Ele continua, já sem cantar, e pula fincando os pés no teto com as mãos na cintura, num gesto desafiador e confiante. Daí em diante, vemos uma sequência ‘clássica’ da persona de Astaire — como quando pula o lustre ou quando dança com o porta-retratos, mas na chave interpretativa do absurdo que representa a ideia de um homem sapateando no teto.

Fred 2

Enquanto ouvimos a voz da canção, ou seja, antes de subir pelas paredes, o dançarino nos é exibido em alguns cortes; quando a letra acaba, um movimento para trás nos põe diante de um plano-geral do apartamento, escolha esta que se mantém durante quase todo o número acrobático, à exceção de alguns movimentos e closes — mas sem nenhum corte. Por um lado, esta escolha parece advir de uma motivação estética: parece ser a melhor forma, a mais crível, por assim dizer, de mostrar o absurdo de sapatear nas paredes e no teto. Entretanto, a escolha também deriva da estratégia de mise-en-scène.3 Ora, esta sequência é impensável se tivermos em mente o regime gravitacional da nossa realidade — e da do resto do filme, inclusos os outros números de dança. Nada mais absurdo. Mas não nos enganemos: fique o espectador fascinado pela plástica e não se pergunte nada, apenas admire; fique o espectador a conjecturar sobre a feitura da cena, sobre as possibilidades técnicas do encanto, ele está encantado. Aliás, esta segunda disposição espectatorial dialoga —negando — com o mito do cinema musical como filme alienante: sua clara inclinação a uma interpretação autorreflexiva da cena (no sentido de que ela nos distanciaria da narrativa e nos faria pensar na própria existência do momento em que se filma) aponta para o texto como uma construção, algo que, ao menos depois da ‘virada modernista’ pela qual passou a arte em fins do Século IX e começo do XX, e do advento da crítica marxista, passa a ser reconhecido como uma estratégia ‘de esclarecimento’. 4

É por escapar de nossos esquemas endurecidos de percepção do mundo sensível — não se fica de pé num teto — que a sequência analisada, além de tantas outras, revela outros horizontes sensíveis. É curioso pensar que são exatamente estes momentos ‘mágicos’ — tradicionalmente associados à ideia de que o musical é alienante — que fazem com que o filme possa ‘apontar para si mesmo’, gerando efeitos de distanciamento por meio exatamente do que se pensava fazer o contrário: do ‘incrível’ — no sentido em que a palavra se relaciona com o conceito de ‘suspensão da descrença’ trabalhado acima, mas também em seu sentido comum de coisa maravilhosa, admirável e singular; do encanto.

Euro Azevedo é Doutorando em Comunicação na UFBA e realiza pesquisas sobre o Musical na América Latina no Laboratório de Análises Fílmicas.

BIBLIOGRAFIA

ARISTÓTELES. Poética. Tradução de Eudoro de Souza. In: Coleção Os Pensadores:
Aristóteles, v. II. São Paulo: Abril cultural, 2000.

ALTMAN, Rick. The American Film Musical. Indianapolis: Indiana University Press, 1987.

BRECHT, Bertolt. Estudos sobre Teatro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1964.

GRANT, Barry Keith. The Hollywood Film Musical. John Wiley & Sons, 2012.

 

NOTAS

1 Presente em http://www.statista.com/statistics/254115/favorite-movie-genres-in-the-us/. 2012. Acessado em 22/02/2016.
2 Presente em http://www.statista.com/statistics/264127/favorite-movie-genre-in-the-us/. 2013. Acessado em 22/02/2016.
3 Este texto, por uma questão de integridade retórica, não tem a ambição de explicar a ‘mecânica’ por detrás do ‘absurdo’ da cena. Uma pesquisa simples na internet, todavia, pode explicar o truque.
4 Pensemos no verfremdungseffekt do dramaturgo Bertolt Brecht, traduzido também como ‘efeito de distanciamento’ ou ‘de desilusão‘. Através de diversos procedimentos — como o uso de cartazes em cena, que faziam referência à própria peça; auto-observação dos atores, como se questionassem sua interpretação, com a intenção de não despertar a empatia do público; perguntas dos atores dirigidas à plateia, entre outras quebras constantes da ‘quarta-parede’ — buscava-se um teatro que deixasse de ocultar que é teatro (BRECHT, 1964).

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