DOCUMENTÁRIO: O QUE DIZEM OS FESTIVAIS?

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Por Ana Rosa Marques

Desde os anos 2000 vem se comemorando uma maior presença dos documentários brasileiros na tela grande do cinema, um espaço que no nosso país antes era reticente ao gênero1. No entanto, devido ao seu caráter pouco afeito ao espetáculo e sem grandes esquemas de distribuição, é nos festivais que o documentário, especialmente o de produção mais independente, encontra um lugar privilegiado de fruição. Na última década, não apenas aumentou seu prestígio em alguns importantes festivais Brasil afora, a exemplo do Festival de Tiradentes e o de Brasília, como surgiram mais eventos especialmente dedicados ao gênero, como o Cachoeiradoc (em 2010), Fronteira (em 2014) e o Pirenópolis.doc (em 2015)2.

Entre os festivais atualmente existentes, o Forumdoc, em Minas e o Cachoeiradoc, na Bahia possuem perfis semelhantes. Ambos buscam ampliar a difusão e o acesso aos filmes através de exibições gratuitas seguidas de debate e atividades extensionistas ligadas às universidades públicas federais. Embora tenham uma mostra competitiva bastante própria, diversas obras coincidem e constituem um panorama do que se vem produzindo no Brasil de maneira muito singular e que por vezes se circunscreve aos festivais. 3

A partir de alguns filmes em comum selecionados para as mostras competitivas desses festivais entre 2010 e 2015, pretendo apontar alguns aspectos estéticos e discursivos de parte da produção independente brasileira nessa pouco mais de meia década. Ao fazê-lo, pincelo alguns pontos norteadores da política de seleção (ou de exclusão) desses dois eventos, critérios que também são fundamentais na definição do seu perfil.

Como parte da equipe de curadoria do Cachoeiradoc, percebo junto a meus colegas que na vastidão de filmes que recebemos anualmente, a tão propagada diversidade de abordagens, formas e estilos do documentário contemporâneo não é tão generalizada assim. Opinião compartilhada também pelo grupo do Forumdoc4. Ao lado da multiplicidade criativa, há também muita repetição de velhas fórmulas, de caminhos previsíveis e de relações hierarquizadas entre quem filma e é filmado.

Assim, para se contrapor aos padrões mais convencionais e sem partir de conceitos fechados a priori, a curadoria busca obras que procuram ser inventivas, não apenas em relação ao cinema, mas no olhar sobre o mundo. Em geral, os filmes selecionados arriscam alternativas que questionem alguns lugares comuns do documentário brasileiro. Por exemplo, muitos recusam o formato desgastado da entrevista de perguntas prontas para respostas igualmente prontas. Abrem-se para o imprevisto da cena e evitam explicar ou comprovar um tema pre-existente ignorando as pessoas filmadas em suas subjetividades e desejos. Ou que apenas as observa fingindo uma invisibilidade neutra.

Em relação à entrevista, estratégia de abordagem característica dos documentários brasileiros desde os anos 90 a ponto de virar um “cacoete”, como apontou Jean Claude Bernardet (2003), desenvolveu-se algumas saídas que a utilizam de uma outra maneira. Em Os dias com ele, se explicita a crise desse modelo, apresentando suas tensões ou lacunas. A entrevista é o ponto de partida para a ativação de um embate e do relato no qual o personagem resiste a ser apenas um alvo de observação ou de apresentação. Ele reage e procura determinar as questões que devem ser feitas, indaga e interpela seu entrevistador, buscando romper a clássica relação sujeito-objeto. Em A falta que me faz, o interesse e cumplicidade mútuos entre os dois lados da câmera fazem com que as perguntas frequentemente sejam substituídas por conversas. E muitas vezes sorrisos, silêncios ou dispersões são mais significativos que as palavras.

A exemplo desses filmes, se percebe como os documentaristas vem buscando formas de tentar democratizar a fala. Não se trata mais de “dar a voz ao outro”, mas enunciar junto ao outro. Experimentando maneiras de dizer em conjunto, o filme torna-se um espaço de partilha e de criação coletiva, permitindo que esse outro também conte, também invente ou se invente. Não é apenas o cinema representando alguém, mas um alguém que vai criando ou se criando à medida que o filme é feito e esse processo é incorporado à narrativa.

Mais do que eu possa me reconhecer constrói um retrato muito diferente dos padrões das biografias cinematográficas, nas quais os personagens são resumidos à uma identidade definitiva e definidora, cristalizados numa narrativa de feitos passados. Conforme observa Roberta Veiga (2015), não é um filme “sobre” o pintor Darel Valença Lins, mas um encontro entre ele e o cineasta Allan Ribeiro que se dá na cena, no momento da filmagem onde se troca imagens e falas. Outra experimentação de biografia se dá no curta Filme para poeta cego na qual o realizador se submete às fantasias do seu personagem, o poeta Glauco Mattoso. Aqui, é o próprio personagem que propõe as regras do filme.

Num mundo em que se tem cada vez mais consciência da presença da câmera, as pessoas também querem participar da construção das suas representações. Desta maneira, é preciso visibilizar as vidas filmadas em negociação com a maneira como desejam ser vistas ao mesmo tempo que não se invisibiliza a câmera.

Em diversos filmes percebemos uma explicitação do papel mediador da imagem através de vários procedimentos como encenação assumida, presença da equipe e exposição da feitura cinematográfica no próprio texto filmico. São recursos que nos fazem conhecer o próprio cinema, além de ser um instrumento para descobrir o outro, a si mesmo e a realidade em seu presente, passado ou futuro. Vemos esse diálogo temporal em filmes como O Mestre e o Divino, Tava e Kene Yuxi, entre outras obras que buscam rever e questionar a história ou as tradições a partir dos encontros e desencontros que a realização fílmica proporciona.

Ao abrir-se ao mundo, ao colocar-se sob o “risco do real”, conforme proposição do crítico e cineasta Jean Louis Comolli (2008), o documentário fertiliza-se pelas forças do imprevisto e do incalculável. O pensamento de Comolli encontra eco na ação de alguns cineastas que, ao invés de partir de um tema ou de uma realidade pré-existente, criam artifícios produtores de situações a serem filmadas e cujos resultados não se tem controle. Assim, ao mesmo tempo que se estabelecem regras, limites como ponto de partida e desenvolvimento do filme, não se pode determinar seu ponto de chegada, pois que depende da ação das pessoas filmadas e do desenrolar dos acontecimentos. Em Câmara Escura, o diretor Marcelo Pedroso envia anonimamente uma caixa com uma câmera ligada para casas de classe alta em Recife e volta pessoalmente para acompanhar as reações dos proprietários. Dispositivo terrorista ou contra-terrorista de questionamento à uma lógica de poder que sequestra a câmera não mais para utilizá-la como instrumento para conhecer e compreender o mundo, mas para o seu controle e vigilância?

Em Doméstica, filme de Gabriel Mascaro, diversos adolescentes de todo o país recebem junto com uma câmera a encomenda de filmarem as empregadas domésticas de suas famílias. Desta forma, cineasta e os jovens cinegrafistas desenham juntos um retrato da mistura de poder e afeto que permeia as relações de trabalho no Brasil. É através desse “dispositivo de infiltração” desenvolvidos nesses filmes, como bem definiu Mariana Souto (2012), que se adentra esses universos fazendo emergir sentimentos e reações inesperadas.

Em outra proposta estética em relação à consciência de que a câmera modifica situações e comportamentos, alguns realizadores buscam assumir e até mesmo partir da constante performance que executamos não apenas em um filme, mas na própria vida. Com fotografia ou montagem que denotam uma clara encenação, vemos pessoas reais interpretando personagens inspirados nelas mesmas em situações ficcionais ou não. Acompanhando o seu dia-a-dia, surpreendemo-nos com sua capacidade de não se enquadrar em roteiros tipificantes ou papéis estereotipados.

Em Céu sobre os ombros, um travesti é também um estudioso sobre sua própria prostituição, um monge Hare Krishna anda de skate, é grafiteiro e torcedor do Atlético Mineiro, um escritor e pai de família anda pela casa vestindo apenas um par de meias cor-de-rosa. Rodrigo, personagem de A onda traz o vento leva, é um jovem negro-pobre-surdo-soropositivo-pai solteiro que também é um cara feliz e apaixonado pelo trabalho, pela filha e pela vida. Vemos sem exotismo e com encanto essa narrativa sensorial marcada por sons e vibrações.

A performance (do outro ou do próprio realizador) ganha ares de fabulação em diversos filmes. Em A vizinhança do tigre, os atores ajudam a inventar e interpretam uma história baseada em suas próprias vidas num bairro pobre de Contagem (MG) onde também vive o diretor. Em Branco sai preto fica, o personagem fictício Dimas viaja do futuro ao presente para coletar provas dos crimes cometidos no passado pelo estado racista e violento. Os outros personagens desse filme, são pessoas reais que viveram o fato histórico abordado pelo filme, só que aqui elas não encenam suas próprias vidas, mas representam situações que tem a ver com sua verdadeira história.

Em contraste com as diversas produções dos últimos 20 anos que tematizaram a periferia sob um olhar piedoso, os dois filmes citados acima buscam falar do presente ou recontar a história por uma perspectiva endógena e inventiva. Ideia sintetizada na última frase de Branco sai preto fica: sobre a nossa memória, nós mesmos fabulamos. Seu viés não é vitimista, mas de resistência e afirmação, mostrando que ali, para além da violência e da pobreza, também se luta, se faz e se sonha.

Exibido na abertura do Forumdoc 2014 e na competitiva do Cachoeiradoc desse mesmo ano, um filme como Branco sai preto fica desconcerta parte da crítica, especialmente aquela ligada à grande imprensa. Na cobertura do Festival de Brasília, onde o filme também foi premiado, estampou-se em alguns jornalistas uma incapacidade de dialogar com filmes resistentes a padrões ou classificações. Segundo Raul Arthuso (2015), estabeleceu-se uma discussão rasa que se ateve ao caráter híbrido dos filmes numa busca infrutífera em desvendar o que era documental e o que era ficcional para poder enquadrá-los e torná-los “acessíveis”.

Anos à frente de uma crítica que, enrolada nas engrenagens mercadológicas e publicitárias da indústria cinematográfica, se reduziu ao papel de guia de consumo para o espectador, alguns realizadores não mais perdem tempo com fronteiras enrijecidas e seguem adiante em explorar os desafios que o real e o cinema lhes impõem.

O rumo à ficção também é um dos experimentos para enfrentar às provocações que um país em convulsão coloca ao cinema. Vemos corruptos condenarem e julgarem a corrupção, estudantes acossados pela polícia por cometerem o “crime” de defender sua escola, condomínios de luxo “ecológicos” soterrarem reservas ambientais e territórios sagrados. Como não achar que o o surreal parece suplantar o real? Caminhar ao lado da ficção, sem abandono ao compromisso com a realidade, sem temer o dissenso e o conflito, para a invenção e proposição, sem fantasia ou ilusão, de um lugar onde se possa existir, resistir, sonhar e lutar por um real melhor que esse que insiste no apagamento ou na invisibilidade do diferente, do oprimido, do insubmisso.

O nosso grande poeta Carlos Drummond de Andrade nos diz que “todos os dias a imaginação  humana confere seus limites, e conclui que a realidade ainda é maior do que ela”.  Se o documentário experimenta, testa novos dispositivos de escrita, se hibridiza com a ficção, nem tudo é construção. O real permanece especialmente na verdade dos corpos, que trazem em si o rastro desse mundo. Esses corpos carregam as marcas de sua singularidade, como também de um coletivo, da sociedade. E é isso que faz a potência do cinema documentário, acredita Comolli.

Para além da diversidade de formas, muito resumidamente expostas aqui, é importante uma renovação do olhar e das vozes. A tal aclamada pluralidade só se dará com a inclusão de miradas e falas invisibilizadas ou emudecidas. Não é à toa que os filmes indígenas se destacam nesses festivais na composição de um panorama do contemporâneo. Porque é preciso ouvi-los em sua integralidade sem polir as diferenças junto aos outros. Agregá-los é potencializar e multiplicar os discursos e as representações sempre insuficientes diante da complexidade da vida e do mundo.

Os filmes indígenas, além de apresentarem temas (o cotidiano, as histórias, os rituais, a tradição) que muitas vezes não circulam fora de circuitos segmentados, possuem o frescor e a intimidade que apenas o olhar endógeno é capaz de ter. Por exemplo, em Karioka, Takumã Kuikuro faz um divertido passeio em terras cariocas questionando os modos de vida ditos “civilizados”. No curta O caminho com Mário e no média Kene Yuxi, os cineastas confrontam a visão romantizada que a sociedade branca ocidental faz sobre os índios. Ao mesmo tempo, ao experimentar a criação de formas cinematográficas próprias, em termos espaciais, temporais ou rítmicos, o cinema indígena propõe outras maneiras de se ver e relacionar com um filme.

A escolha estética e política dos filmes desses festivais contribui para desenhar o seu perfil junto a um público ávido não por fórmulas prontas, testadas e já aprovadas, mas que busque no cinema um espaço onde se manifestem diferentes vozes e se arrisque outras maneiras para a arte pensar e criar. Mais do que exibir filmes, o debate sobre as questões que eles levantam auxiliam na consolidação desses eventos como lugares de reflexão e celebração do cinema, além de formação de novas plateias.

Ana Rosa Marques é professora do curso de cinema e audiovisual da UFRB, curadora e  uma das coordenadoras do Cachoeira Doc, um dos principais festivais de documentário do Brasil

BIBLIOGRAFIA

Catálogos do Forum doc e do Cachoeiradoc de 2010 a 2015

ANDRADE, Carlos Drummond de Andrade. Contos Plausíveis. São Paulo: Companhia das Letras, 1981.

ARTHUSO, Raul. O ilustre estranho: sobre a tiradentização do cinema brasileiro. Disponível em http://revistacinetica.com.br/home/o-ilustre-estranho-sobre-a-tiradentizacao-do-cinema-brasileiro/. Acesso em 2/12/2015

BERNARDET, Jean-Claude. Cineastas e imagens do povo. São Paulo: Companhia das letras, 2003

COMOLLI, Jean-Louis. Ver e poder. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008.

LINS, Consuelo; MESQUITA, Cláudia. Filmar o real. Rio de Janeiro: Ed. Zahar, 2008.

SOUTO, Mariana. O direto interno, o dispositivo de infiltração e a mise-en-scène do amador: Notas sobre Pacific e Domésticas. In: Devires – Cinema e Humanidades, Belo Horizonte, v. 9, n. 1, pp. 66-85, jan./jun. 2012

VEIGA, Roberta.Do retrato ao autorretrato: notas aleatórias do espaço imagético em Mais do que eu possa me reconhecer sobre filme de Allan Ribeiro”. Catálogo do Festival do Filme Documentário e Etnográfico – Forumdoc.BH 2015.

NOTAS

1 Na década de 90, uma média de 4 filmes era lançado no cinema. A partir de 2001 esse número aumenta para 8 e em 2013 chegou-se a 50 documentários lançados comercialmente segundo dados da Ancine.
2 Atualmente temos 7 festivais de documentário no Brasil: É Tudo verdade, Forumdoc, Cinedocumenta, In-edit, Cachoeiradoc, Fronteira e Pirenópolis.doc.
3 No período avaliado nesse texto, mais de 30% da programação da mostra competitiva do Forumdoc coincide com a do Cachoeiradoc.

4 Catálogo do Forumdoc 2012

 

 

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