Por Rafael Beck
Surgida a partir de um recorte social preconceituoso, patriarcal, racista, classista e desumano, a representação das favelas brasileiras se tornaram referência internacional pela violência associada ao tráfico de drogas. Mas essa percepção tem mudado de uns anos para cá. No Brasil, o número de moradores em favelas já ultrapassou os 10 milhões, cerca de 5% da população total. As favelas do Brasil movimentam, hoje, 63 bilhões de reais ao ano, o mesmo que nações como o Paraguai e a Bolívia geram anualmente (MEIRELLES, ATHAYDE, 2014).
Dona de uma dualidade impressionante, a favela se mostrou, durante anos, dividida entre sua cultura belíssima e sua violência absurda, gerada por uma modelo econômico excludente. E o cinema, como tantos outros, também se aproveitou dos signos que acompanham a favela e se lançou para dentro dela a fim de retratá-la em produtos audiovisuais muitas vezes questionáveis. A preocupação com a estética das cidades, sobretudo da capital do país, o Rio de Janeiro, nas primeiras décadas do Brasil República, fez com que a elite intelectual lutasse para garantir uma imagem “civilizada” da metrópole. Com esse objetivo, João Augusto de Mattos Pimenta realizou, na segunda metade da década de 1920, um curta-metragem de dez minutos intitulado As Favellas (1926), onde revelava “o espetáculo dantesco que presenciei na perambulação pelas novas favelas do Rio.”, apresentando o filme a diversas pessoas, incluindo o presidente da república Washington Luiz, e pedindo atenção para a remodelação das cidades, substituindo as favelas por conjuntos habitacionais. O curta-metragem foi o primeiro registro audiovisual desse espaço urbano que se tem notícia.
Durante o período que se seguiu, foram realizados alguns filmes marcantes que tinham a favela como espaço físico principal. O grande destaque foi: Favela dos meus amores (1935), de Humberto Mauro, clássico da época, cujas cópias se perderam. Durante a década de 1950, influenciados pelo Neorrealismo Italiano, em reação ao cinema comercial e fugindo às imitações dos filmes americanos, surgiu o Cinema Novo, encabeçado por nomes como Nelson Pereira dos Santos (precursor do movimento com Rio 40 Graus, 1954), Glauber Rocha, Joaquim Pedro de Andrade, Paulo César Saraceni. Simultaneamente ao desenvolvimento do Cinema Novo, que ganhou força durante a segunda metade da década de 1950, surgiu a Nouvelle Vague na França. Os filmes brasileiros desse período buscavam contar histórias nacionais influenciados pela liberdade (de câmera, de roteiro, de direção, de improvisação) do movimento cinematográfico francês.
Na década de 1960, cineastas se lançaram através do universo das favelas e as reproduziram em uma leva interessante de filmes, com uma abordagem econômica e social, instrumentalizada pelo materialismo histórico. Cinco vezes favela (Cacá Diegues, Joaquim Pedro Andrade, Leon Hirszman, Marcos Farias e Miguel Borges, 1962), destacou-se no período por aglutinar jovens sedentos por experimentações audiovisuais, para, com cinco curtas, revelar diversas faces desse espaço até então marginalizado ou representado de maneira “romântica”. A esse se seguiram O assalto ao trem pagador (Roberto Farias, 1962), A grande feira (Roberto Pires, 1962), Os mendigos (Flavio Migliaccio, 1962, também destacado por Glauber Rocha no manifesto), Gimba (Flávio Rangel, 1963), Escravos de Jó (Xavier de Oliveira, 1965), Infância (Antônio Calmon, 1965) e Garoto de Calçada (Carlos Frederico Rodrigues, 1965). Ladrões de cinema (1977), de Fernando Cony Campos, destacou-se pela importância cultural dada às comunidades, tornando o espaço uma alegoria da situação cinematográfica brasileira.
Um pouco antes, Marcel Camus realizou uma produção francesa com atores e locações brasileiras. Orfeu Negro (1959) voltava seu olhar sobre as favelas através da adaptação da peça de Vinicius de Moraes, Orfeu da Conceição, apresentada pela primeira vez em 1956 no Teatro Municipal do Rio de Janeiro. Protagonizado por Breno Mello e Marpessa Dawn, o longa levava o mito grego de Orfeu para as favelas do Rio de Janeiro. O Olimpo é a Favela. A lira virou violão. O filme fez sucesso em todo o mundo e levou vários prêmios importantes, como a Palma de Ouro, em Cannes. A favela carioca foi explorada de forma idealista, utópica, indo contra os preceitos do compromisso com a realidade do Cinema Novo, porém Orfeu Negro abriu novas perspectivas para que se universalizasseas problemáticas vividas na periferia.
Na década de 1980, as favelas sofreram o impacto da guerra contra o tráfico. Crianças, idosos, mulheres, homens, todos se tornaram vítimas dos conflitos que se instalaram nos morros. A década de 1980 também não foi nada boa para o cinema. Após anos sendo censurado pela Ditadura, o cinema nacional tinha como única grande produtora a ineficiente EMBRAFILME, que já estava em declínio quando, em 1990, foi dissolvida pelo então presidente Fernando Collor. Seguiu-se, assim, um período onde a média de filmes brasileiros produzidos por ano não passava de três longas metragens. Antes de sua saída, entretanto, Collor assinou a Lei Rouanet e, em 1993, Itamar Franco sanciona a Lei do Audiovisual, que incentivam a produção cinematográfica, mas só teriam resultados significativos a partir do ano de 1995.
O primeiro mandato de Fernando Henrique Cardoso foi marcado, também, pelos efeitos positivos do Plano Real, como o desaparecimento dos casos de inadimplência e melhores condições para classes mais baixas poderem comprar mais e de forma mais justa (MEIRELLES; ATHAYDE, 2014). Os filmes caracterizados como favela movie da década de 1990 se dedicavam a explorar não a violência das favelas, e sim o ser humano e suas emoções, sensações e impressões sobre a vida. Não é a toa que Cacá Diegues resolveu visitar a obra de Vinícius de Moraes, como Camu o fez na década de 1950, para realizar Orfeu (1999). Alguns filmes estão mais preocupados em retratar as vidas de seus protagonistas em momentos bastante particulares do que trazer uma análise mais ampla do contexto no qual se inserem: a esposa que decide tomar uma atitude em relação ao marido, em Um céu de estrelas (Tatá Amaral, 1996), a dupla de crianças que se torna “bandida”, em Como nascem os anjos (Murilo Salles, 1997), as almas gêmeas que se encontram, mas acabam tendo um final trágico (Orfeu 1999).
No início dos anos 2000, os brasileiros começaram a se preocupar com o desemprego. Nas favelas, a realidade não era diferente do restante do país. Em 2003, entretanto, com a eleição do presidente Luis Inácio Lula da Silva, novas políticas públicas foram criadas para atender as necessidades da população mais pobre. Nos cinemas, as favelas eram retratadas de forma estereotipada, com personagens violentos, sobretudo, negros – aos brancos, sobravam os papéis dos jovens que acabavam se relacionando com o tráfico e um ou outro morador de favela. A favela, também, era retratada como um lugar isolado do restante das cidades, destacando-se as produções que representavam os morros cariocas.
Com o longa Cidade de Deus (Fernando Meirelles, 2002), o cinema brasileiro ganhou proporções internacionais e consolidou os filmes nacional e internacionalmente o gênero, que passou a ser denominados pela crítica e pela mídia como favela movie. Nos cinco anos que se seguiram ao lançamento, os favela movies se dedicavam a revelar as mazelas brasileiras, mas se deixavam cair nos estereótipos da violência, do tráfico, da falta de futuro dos moradores das comunidades. Os reais culpados pela construção e permanência desse sistema social – políticos, burgueses e policias – foram pouco retratados ou denunciados.
Os filmes Tropa de Elite (José Padilha, 2007) e Linha de Passe (Walter Salles e Daniela Thomas, 2008) mudaram a realidade do favela movie no Brasil. O primeiro, revelava o ponto de vista de policias em suas incursões nas favelas, criticando a forma como ações, sobretudo as do BOPE, eram realizadas com o objetivo de “pacificar”. O segundo, tira o foco das favelas cariocas, sempre destacadas pelo cinema, para uma favela paulista, onde sonhos frustrados, diversidade religiosa, maternidade e paternidade indesejadas, abandono de crianças são revelados através do cotidiano de uma família buscando uma vida melhor.
Diante de uma tradição já consolidada de filmes, resta a pergunta: O que seria um favela movie? Basta ter como cenário principal uma favela para ser assim denominado? É necessário que a favela apareça no filme, ou narrativas que retratam os reflexos dessa aglomeração urbana são suficientes? Os personagens devem ter características específicas? Favela movie é um gênero cinematográfico? Uma moda que passou, ou que continua bastante presente no cinema nacional?
Mas mais importante que questionar a definição do favela movie, e sobre seus reflexos em outras plataformas audiovisuais, é analisar como esses filmes estão retratando o Brasil, seus moradores e suas culturas. É muito bonito e necessário que espaços marginalizados sejam revelados pelo audiovisual, mas é preciso cuidado para não recair em esteriótipos e apenas afirmar essa marginalidade, desvelando abordagens preconceituosas que foram estabelecidas a partir de um pensamento retrógrado, o que continua sendo feito com frequência por realizadores brasileiros.
Rafael Beck é aluno do curso de Cinema e Audiovisual da UFRB.
BIBLIOGRAFIA
MEIRELLES, Renato; ATHAYDE, Celso. Um país chamado favela: a maior pesquisa já feita sobre a favela brasileira. São Paulo: Editora Gente, 2014.
FREITAS, Guacira Barbosa de. A relação entre mídia e periferia: um estudo sobre o projeto Central da Periferia da TV Globo. Tese de doutoradoSão Leopoldo. 2011.
BENTES, Ivana (org.). Ecos do cinema. De Lumière ao digital. In Sertões e favelas no cinema brasileiro contemporâneo: estética e cosmética da fome. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 2007.