Por Lucio Agra
Primeira Hipótese:
Entender a parte colorida de Esta noite encarnarei o teu cadáver (1967) como um índice da presença da psicodelia, a ser desenvolvido, de forma sistemática, nos trabalhos posteriores, notadamente em O despertar da besta/Ritual dos sádicos (1970). Costuma-se dizer que, neste último, Mojica fez uso avançado de um repertório de imagens que aludia ao mundo dos filmes “educativos” sobre as drogas dos anos 60 (de que é paradigma Alice na acidolândia – Alice in Acidland, John Donne, 1969 –, um dos vários da American International, e também com trechos em preto e branco e a cores). E que, paradoxalmente, a “mensagem” é reacionária, com uma advertência com relação aos malefícios trazidos pela “droga”. Na verdade me parece muito mais uma tentativa do cineasta brasileiro de tentar estar up-to-date com experimentos da mesma época como os que foram tentados por Terry Gilliam ou Denis Hopper. Vou mais longe: Mojica, nesse passo, faz com que o cinema nacional ingresse na esfera de uma série de filmes hoje vistos como fundantes de uma nova geração (BISKIND, 2009) que transforma o cinema de Hollywood nos fins dos anos 60, prosseguindo até os 80. Nomes como Coppola, Scorcese, Bogdanovich, Hopper e outros são discutidos hoje nessa clave, como uma geração que elaborou o impacto das drogas na transformação – e salvação – do imaginário do cinema americano (pós)moderno.
Segunda hipótese:
Mojica como um provocador. Um instrutor, um excitador, um demonstrador. Esse último compartilha com outras línguas latinas a raiz “montrer” que, em francês, quer dizer “mostrar”. De mostrar a monstro só se trocam algumas letras. Demonstrar é também expor. Todo monstro é uma exposição sem autorização, por isso assustadora. Zé do Caixão nos convoca, com seu discurso que já o apresentava em À meia-noite levarei sua alma (1964), o primeiro filme, no qual se apresenta, convoca o público. Cada um de nós é chamado ao envolvimento, ao testemunho. Tática antiga do cinema de terror, presente na abertura de clássicos como Frankenstein, de James Whale (1931), a convocação do público aqui não se dá apenas na situação de chamamento mas em todas as ocasiões, como se o tribunal do início de Esta noite… fosse formado por todos nós que julgaremos os crimes do impossível Josefel Zanatas. Um pouco da nossa clássica atitude diante dos fatos: não dispensamos um “bom” julgamento. Vide os júris, nascidos na programação televisiva dos anos 60, nos festivais e depois exportados para os programas de auditório (Chacrinha, Silvio Santos) até transformar-se na própria dramaturgia das atrações (vide “Jantar com as Estrelas”, vide a exibição da vida dos artistas no J. Silvestre, no Faustão e no BBB). Nossa subjetividade se compraz em estabelecer a circunstância do júri popular em qualquer situação de entretenimento. Sejam os filmes de Mojica: o que quer Josefel Zanatas? O que quer o hediondo Oaxiac Odez? O que quer Zé do Caixão? É preciso julgar sempre essa vontade férrea de produzir o filho perfeito, a raça suprema. A justificação dos meios pelos fins. A crueldade sem medidas. Somos permanentemente convocados pois o que se desejava é que o filme fosse depois assunto dos tribunais das mesas dos bares.
Terceira hipótese:
M, o Vampiro de Düsseldorf ,de Fritz Lang (1932), ia se chamar, originalmente Assassino entre nós mas, segundo Otto Friedrich, provavelmente em virtude do clima político, Fritz Lang recebeu cartas ameaçadoras para que não fizesse o filme (FRIEDRICH, 1997:342).
Obra também motivada por um elemento gráfico, ou talvez criptográfico (o m de mörder, assassino em alemão, que identifica o culpado) diferencia-se, porém, de Zé do Caixão na medida em que quem julga o assassino alemão é um tribunal de malfeitores. O tribunal de Zé é a expressão do ritual consagrado e cristão (o juiz tem uma cruz acima de sua cabeça).
Ao contrário de Zé do Caixão, que apenas se tortura quando o remorso o assalta, o personagem alemão é sempre tomado pelo medo do que realiza: “Sempre… Sempre essa força malévola dentro de mim, levando-me a vagar pelas ruas … Vivo perseguindo a mim mesmo e querendo escapar, mas é impossível” (FRIEDRICH, 1997:342, grifo meu). Zé do Caixão, embora cético e não atormentado, vive também o delírio e também está à procura de si mesmo na sua reencarnação em um descendente.
Mas ambos estão unidos por marcas gráficas. A abertura de Esta noite… com os letreiros de coreografia saltitante de Marcelo Tássara levam essa estratégia ao excesso. A colagem de sons que acompanha a verdadeira orgia de letras dançantes parece uma partitura de música aleatória e estabelece, em pleno 67, uma cumplicidade (talvez involuntária, mas tenho minhas dúvidas) entre o Tropicalismo que emerge sob as batutas de maestros de vanguarda como Rogério Duprat e Damiano Cozzella e o primitivo – entretanto muito sagaz – artifício de acumulação barroca de Mojica. À elegância de mörder de Lang, filme da linhagem da grande arte expressionista de sua época, contraponho, em contraste aditivo, o excesso estapafúrdio desse Mojica de 67, em plena emergência das guitarras na MPB.
Letras convertem-se em rabiscos muito semelhantes aos desenhos dadaístas, círculos, quadrados, estrelas que lembram os nós de um arame farpado. As letras-rabiscos anunciam nomes que entram em relação intersemiótica com sua escrita. Atores como Graveto, Paulo Gaeta, Enio Lôbo, Renato Azevedo (com o z que teima em se inverter, irrequieto), Palito. Os nomes dos atores apresentam espantosa conivência com a impressão de que se adentra no mundo das excentricidades e esquisitices que causam medo e horror.
Quarta hipótese:
Ver os filmes da primeira fase de Mojica (À meia-noite, Esta noite, Despertar) como exacerbações que se tornarão marcas de gênero no assim chamado “cinema marginal”. O gongo, por exemplo, que reaparece em O bandido da luz vermelha (1968), de Rogério Sganzerla, e em vários outros posteriores.
O gongo pontua as cenas, como a entrada de Zé na cidade provinciana de Esta noite…, e o prenúncio de sua morte ao final. Parecendo aleatório, o uso desse recurso sonoro é uma bem cuidada pontuação cujo efeito é tão forte que impregnaria muitos filmes dos então jovens cineastas do assim chamado “udigrudi”. Em Bressane, Sganzerla, Tonacci e outros é possível ouvir repetidamente este som, já agora uma espécie de refrão, signo singular que clama a atenção para si mesmo, que se destaca do contexto pelo seu insólito, como a lembrar sempre a proveniência reivindicada pelos cineastas de vanguarda dos anos 70 no Brasil: a chanchada e o cinema de Mojica. O gongo vira uma homenagem e um elemento a mais de perturbação da leitura passiva, um despertador absurdo, como ocorre em Os Monstros do Babaloo (1971), de Elyseu Visconti.
Breve Conclusão
O Tropicalismo é que reivindicou Mojica como um dos seus emblemas. Mas certamente era um desejo do cineasta ver-se como parte de um circuito inovador, responder a algumas das “questões candentes” de seu tempo. Devemos-lhe a oportunidade de fazer isso fora de uma clausura formal que o cinema novo já inaurgurara, sem contudo lhe ser completamente alheio. Vale lembrar o encanto que Glauber Rocha dedicou ao “bárbaro tecnizado” da Sinagoga do Brás. Mojica, sem dúvida nenhuma, produziu, com Zé do Caixão, um dos itens fundamentais do nosso imaginário pop brasileiro.
Lúcio Agra é Doutor em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP, pesquisador, artista da performance, escritor, curador, professor do CECULT-UFRB.
BIBLIOGRAFIA
AGRA, Lucio Monstrutivismo, reta e curva das vanguardas SP, Perspectiva, col. Estudos, 2010.
BARCINSKI, André e FINOTTI, Ivan Maldito – a vida e o cinema de José Mojica Marins, o Zé do Caixão SP, Ed. 34, 1998.
BISKIND, Peter Como a geração sexo, drogas e rock’n’roll salvou Hollywood SP, Intrinseca, 2009; tradução de Ana Maria Bahiana.
FRIEDRICH, Otto Antes do Dilúvio Rio/SP, Ed. Record, 1997; tradução de Valéria Rodrigues.