Comercialmente rotulado no gênero audiovisual do documentário e, premiado no Festival de Cannes, Cinema novo (Eryk Rocha, 90’, 2016) é um filme pretensiosamente elaborado em sua montagem dinâmica, a fim de dialogar com outros sistemas simbólicos de saberes e práticas para a enunciação de mensagens na proposição de ideias e transmissão de valores, sejam estes, arcaicos ou tradicionais, como a tradição da oralidade do canto e da poesia popular, a performance teatral, os ritos espetaculares, a saber, fenômenos artísticos atemporais, que, mesmo transmutados, encontram-se registrados nas lentes cinematográficas do movimento estético cinemanovista da década de 1960, como assoalho cultural no qual o incerto projeto de Estado-nação brasileiro se edifica. Flertando com as proposições dos realizadores do movimento cinematográfico do Cinema Novo, o filme homônimo assume uma ousada tarefa para com a recente tradição do cinema brasileiro: explorar as referências de um passado cada vez mais longínquo (porque desconhecido por grande contingente de jovens receptores da atualidade), no intento de um leitmotiv da simbologia do Cinema Novo em relação ao imaginário nacional, recortado e personificado, nas narrativas e dramas humanos de diferentes sujeitos sociais brasileiros.
A montagem sagaz engendra uma estratégia de apelo sensorial para uma dimensão reflexiva em que o “documentário” pretende um filme-ensaio. No círculo hermenêutico de referências apresentadas, propõe-se uma circunscrição acerca do imaginário-maquínico do movimento cinematográfico do Cinema Novo, compondo uma frenética dança de frames e sequências narrativas em bricolage de signos visuais e sonoros, extraídas de outras produções fílmicas cinemanovistas com exceção, talvez, para curtas gravações de arquivos inéditas em que os realizadores do movimento estético aparecem em momentos de descontração. A construção de sentido de toda a montagem elege um duplo vetor que se estende simultaneamente em dois planos: o campo histórico do concreto, abordagem factual aos sujeitos realizadores e ao contexto da época, e, abordagem criativa ao campo ideacional do imaginário-maquínico audiovisual das produções que mapeia. Na teodiceia dos signos visuais e sonoros postos em movimento para a reunião no simbólico mítico do cinema brasileiro, a narrativa de noventa minutos elege alguns filmes e cineastas gravitando no em torno de Humberto Mauro como uma espécie de panteão de pensadores/realizadores enquanto avatares do ideário cinematográfico brasileiro. Certamente recorrendo a ficcionalização das figuras públicas que já se delineiam históricas, desses mesmos sujeitos e suas realizações audiovisuais, os realizadores cinemanovistas são retratados de maneira idílica, num recorte que favorece o lado solar de todos os personagens.
No decorrer da linha mestra do filme, ambos os campos explorados, o factual e o ficcional, alinhavam-se por meio da subjetividade do realizador que erige um sentido e o dispara ao encontro do imaginário nacional numa cartografia sócio-filosófica característica ao pensamento plástico audiovisual, no qual formas visuais e sonoras, ora em amálgama de síntese, ora justapostas, em direta associação com as tantas montagens intelectuais da cinematografia russa (tendo em Eisenstein seu nome mais relevante), são encadeadas de maneira caleidoscópica, na tentativa de uma convergência da realidade que, captada de maneira imaginativa e objetivamente fragmentária, não é a de um “homem com uma câmera”, mas sim, de um sujeito com uma ilha de edição não-linear.
Destaca-se, na composição de movimento que a montagem confere aos olhares maquínicos e sem corpo das muitas câmeras reunidas, todas elas num ciclope digital, as sequências de distintos personagens em carreiras e corridas, sertões afora e cidade adentro, como que perdidos no tempo e no espaço, enunciando um típico recurso dos filmes de aventura, a perseguição de sonhos para a satisfação de anseios, quaisquer que sejam, reafirmando uma das máximas da estética da fome, que é a representação do povo e do contexto de precariedade econômica brasileira, outrora nos termos do subdesenvolvimento, como a consumação de uma distopia do agora; o Brasil, féerico sonho tropical e pesadelo sociopolítico.
Outra passagem eloquente é a sequência que se apropria do parto de Macunaíma (de Joaquim Pedro de Andrade, 1969), enfatizando a concreta queda factual do nanico corpo de Grande Otelo ao contato do barro primordial no terreiro de uma choupana, por entre as pernas da nacionalidade mãe-brasilis de levantada saia verde resplandecente, a montagem conecta tal cena com o ribombar de uma explosão que provoca o despencar do paredão rochoso de uma gigante pedreira (da estória Pedreira de São Diogo, Cinco Vezes Favela – 1962, com direção de Hélcio Milito). No ir e vir incisivo de tais sequências, eis o desfecho, a queda final; irrompe abrupto a placenta do subjetivismo da nação o arquétipo do sujeito nacional, este, figura um corpo contorcido, subitamente expelido, tendo na gravidade o bruto acalento do chão de sua pátria.
O grande mérito de Cinema Novo, para além de sua aguda montagem a partir de um vasto banco de imagens, é justamente sua proposta de compêndio audiovisual da simbologia das produções cinemanovistas, ofertando ao público mais recente a possibilidade de descobrir a força poética proposta pelo cinema de autor que, factualmente, ficcionalizava os dramas de sujeitos sociais brasileiros numa proposta interpretativa e crítica da realidade imanente.
Sebáh Villas-Boas artista visual precário, prof. do curso de Artes Visuais do CAHL – UFRB/BA. Graduação em Comunicação Social: rádio e Tv – UESC/BA. Mestrado em Cultura e Sociedade – IHAC, UFBA/BA. instagram: @sebha.hidra.colere