METEORANGO – ASTRO DA CINEMATOGRAFIA BRASILEIRA

Por Sebah Villas-Bôas 

O filme Meteorango Kid: herói intergaláctico (1969, André Luiz Oliveira) constitui, isoladamente, um marco do cinema na Bahia. A importância de tal narrativa cinematográfica se potencializa ainda mais quando observadas as suas condições de realização, inseridas no fluxo da produção do cinema de autor, como definem alguns pesquisadores, uma produção do movimento artístico do Cinema Marginal. Herdeiro rebelde de características do também rebelde Cinema Novo, o Cinema Marginal é reconhecido a partir de uma cisão de princípios práticos e estéticos decorrentes de um grupo de cineastas em finais da década de 1960. Muitas vezes, o Cinema Marginal é tratado por outros termos, como udigrudi (quando assim criticado por Glauber Rocha); do lixo (quando falado mais diretamente a respeito da produção de jovens cineastas paulistanos, evocando assim a cena marginalizada da Boca do Lixo, na cidade de São Paulo);underground, marginalizado, experimental e, por fim, da boca, caracterizado por uma parcela de filmes que comungava deste ideário produzidos na cidade Salvador. O termo da boca, quando designado ao “marginal baiano”, evoca o espectro do poeta Gregório de Matos (1636-1695), que recebera originariamente a alcunha de “Boca do Inferno”, por seus poemas satíricos que expunham as fragilidades morais da “cidade da Bahia” seiscentista.

A trama de Meteorango Kid apresenta uma fragmentária narrativa conduzida pelo jovem niilista e universitário de classe média, Lula (interpretado por Antônio Luiz Martins – artista plástico responsável por muitas das capas dos álbuns do grupo musical Novos Baianos), um protagonista cercado de personagens que gravitam ao seu redor numa constelação de micro-narrativas, interligadas por sequências que representam o modo de vida do protagonista, ofertam ao público figurações simbólicas do comportamento de uma geração historicamente situada nos meados finais da década de 1960, na capital baiana de Salvador. O personagem principal reflete profunda descrença por toda instituição social em que se encontra inserido, nutrindo apatia a respeito de si mesmo, totalmente despreocupado em se aproximar da realidade que o envolve, sem qualquer noção de responsabilidade para além da satisfação de seus desejos em busca de diversão e devaneios individuais. O jovem passa os dias, como representado no filme, a perambular pelas ruas da cidade; em âmbito público, vai à faculdade, mas não assiste às aulas e não participa da vida estudantil que exige atitudes políticas engajadas que, a saber, são apresentadas como inutilidades da disputa ideológica. No âmbito privado, em casa, imagina-se por vezes como um anti-herói, o Bat-Mãe, defensor de seus únicos interesses em projeção de violência imaginária contra sua própria família, ou em sua existência particular, como protagonista de filmes de sucesso – a saber, cada sequência da imaginação fílmica e mediática do protagonista, oferece a total desconstrução paródica de diferentes gêneros cinematográficos, desde os filmes de aventura de Tarzan, as encenações religiosas do neorrealismo italiano e do cineasta Pasolini, o engajamento cinematográfico militante da esquerda gramisciana brasileira, a nouvelle-vague de Godard, e, num exercício extremo de metalinguagem e crítica, o protagonista é apresentado numa intensa busca pessoal pela independência, onde não parece disposto a vender seus ideais (sejam eles quais forem) para se enquadrar ao mercado de trabalho.

Destaca-se também a relação politicamente satírica do jovem, que oscila entre o niilismo e a agressão física e verbal direcionada contra as diferenças de seus amigos e o mundo, sejam diferenças de classe, gênero, etc. Além do protagonista e dos demais personagens que o orbitam, a trama apresenta a fragmentada narrativa de um jovem negro e, parcialmente banguela, mas que ataca moças pelas ruas de Salvador, mordendo-as no pescoço, tomado então como um vampiro, certamente caracterizando uma critica à vertente dos filmes do movimento do Cinema Marginal que faziam valer suas tramas articulando signos dos universos narrativos ficcionais de seres sobrenaturais dos estúdios hollywoodianos, como nos filmes de José Mojica Marins (o Zé do Caixão), de intensa participação em realizações fílmicas do polo de expressão cinematográfica de São Paulo.

Noutro plano do filme, a saber, metanarrativo, a relação entre a câmera em perspectiva subjetiva, a composição dos quadros, a banda sonora, enfim, toda a montagem, ofertam impressões do estado psicossomático e representações do imaginário de formação das idealizações do protagonista; seu horizonte imaginativo apresenta referências que apontam para a realidade concreta fora da tela, ancoradas em práticas, produtos e processos da cultura de massas e dos mass media em plena hegemonia de colonização simbólica – e até mesmo onírica – global em meados do séc. XX.

O que se revela nas figurações simbólicas do imaginário onírico do jovem Lula são projeções de seus desejos íntimos em relação à aceitabilidade social a partir da ascensão ao elevado status quo de celebridade mediática ingressando nas estruturas de produção da cultura de massa e dos mass media, a saber, sistemas simbólicos hegemônicos no cultivo das personas e sujeitos sociais de sua geração no campo das artes e propaganda para multidões (respectivamente, cinema e publicidade). Os sonhos do jovem figuram universos fantásticos dos filmes do ideário pop oscilando entre os dramas beatnik do transeunte desajustado em meio ao cenário urbano, aventura nas selvas (Tarzan), capa e espada de pirataria, super-heróis (uma paródica versão do Batman, o Bat-mãe), e até mesmo sua experiência de paquera é experimentada enquanto uma vivência tipificada por referências de filmes de romance da nouvelle vague francesa com trilha sonora italiana (quando das sequências narrativas em que acompanha a uma conhecida sua, repórter, indo entrevistar pescadores que supostamente teriam avistado óvnis).

A banda sonora do filme simultaneamente representa uma manifestação da consciência do protagonista, tanto quanto do espírito do tempo (zeitgeist) de sua geração, situando e relacionando o tempo narrativo ficcional em condição histórica local e o global; em diversos trechos há ocorrência de uma massa sonora ruidosa de fundo, desde eletrificados ruídos produzidos por amplificadores de guitarra, frases entrecortadas e editadas em repetição de trechos de gravações de voz (com destaque à voz do cantor tropicalista Gilberto Gil, que evoca memórias e gostos de sua própria vivência).

Meteorango Kid, ao ser anexado à constelação de filmes do movimento do Cinema Marginal, desempenha o escracho absoluto, o esculhambo máximo. Sua estética, em estilo visual de composições equilibradas e de alta saturação em contraste de claro e escuro, exerce a partir dos signos poéticos do projeto intelectual e estético do qual participa a destituição de suas próprias referências, evidenciando o seu verdadeiro sentido fílmico, único possível quando da análise histórica a qual a distância do tempo permite; que o movimento do Cinema Marginal era uma proposta de ficção para a fruição da juventude burguesa do eixo Rio de Janeiro / São Paulo, em princípio, desinteressada do engajamento politico, que não fosse a manutenção do status quo e das vantagens da classe média desiludida; refletia as mazelas da cidade grande e a crescente paranoia da juventude de classe média que via suas certezas de conforto desmoronar ante os aparelhos repressores do regime ditatorial. Lula é um protagonista sem glamour, alienado de seu próprio papel na trama social. O herói Intergalático, gravitando à deriva numa tentativa sem fim de se sentir protagonista da narrativa que vivencia; um sujeito incapaz de reconhecer em si mesmo uma existência coesa e ancorada nas pressupostas certezas dos valores que podem ser atribuídas aos valores tradicionais burgueses do humanismo liberal. A identidade do Meteorango é de fato uma representação do sujeito descentrado, os rótulos não bastam para descrevê-lo, nem tampouco apaziguá-lo em ser quem é.

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