Por Guilherme Sarmiento
Assisti Meteorango Kid – o herói intergaláctico em meados da década de 1990, no Cinearte Uff. O longa-metragem de André Luiz Oliveira provocou tal impacto sobre meus instintos pós adolescentes que seus personagens ficaram longamente suspensos na poeira da imaginação e, até hoje, quando escrevo um roteiro, caem sobre a mesa de trabalho alguns destes detritos julgados por mim parte do passado. Na época, o filme dizia tudo o que eu queria escutar. Mostrava tudo o que eu queria ver. Seu “herói” perambulava, como eu, à espera de que algo acontecesse; amargava o futuro destilando crueldades; intoxicava-se para não ser asfixiado. Eu me projetava no Lula, mas o Lula também anunciava aquilo que eu era. Contemporâneos, vivíamos dentro de uma mesma poética. Agora, depois de mais de vinte anos, assistir as peripécias do personagem requereria bem mais do que se deixar atingir por seu cinismo inconvenientemente explosivo. Revê-lo envolveria o distanciamento crítico não somente do produto fílmico em si, mas dos efeitos causados em alguém diante do qual me tornei um estranho. Seria investir em um outro tipo de desdobramento. Colocar-se diante da nostalgia do que se perdeu e se consolar com a ilusão de uma identidade criada, configurada, no movimento das primeiras impressões. Reviver, de certa forma, é um recurso possível para se acreditar inteiro.
Quando sentei no auditório do CAHL(Centro de Artes Humanidades e Letras) da UFRB, vinte anos depois, para reviver essa experiência, havia me esquecido de boa parte do filme. Lembrava de seu começo, claro, com a imagem gratuitamente transgressora do Lula crucificado. Fingir-se de Cristo faz parte da iconografia dos marginalizados. Um transformista contorce seu corpo nu e mortificado sobre uma cruz colorida e ainda hoje fere suscetibilidades judaico-cristãs. Mas a cena que permaneceu em minha mente com tão cristalina insistência não foi exatamente essa. Aguardava com ansiedade o momento em que Lula, Caveira e seu amigo – que não é nomeado no filme – ficassem sozinhos em um pequeno quarto e fumassem um cigarro de maconha. Foi preciso que mais da terça parte do filme se passasse para o surgimento da minha sinédoque particular, pois todo o Meteorango Kid condensava-se neste núcleo dramatúrgico e sobrevivia somente para sua lembrança. Agora, me debruçava na cadeira de trás para ter uma visão de perfil daquele jovem cinéfilo que assistia uma obra inteira para guardar dela um simples resíduo, e tentava entender o porquê, os motivos por trás desse corte cujos resultados impediam o acesso a uma experiência na época sentida em sua totalidade.
Antes de continuar com essa minha pesquisa íntima gostaria de abrir um breve parêntese. Não quero aqui afirmar o primado de uma memória onde os mecanismos de seleção e exclusão ajam como a repescagem de “momentos sínteses” de experiências marcantes. Às vezes filmes completamente banais ocupam um espaço demasiado e obras significativas escondem-se atrás de entulhos e, por conta disso, corre-se o risco de não sobrar nenhum sinal de seu depósito. Todo esse processo envolvendo lembrança e esquecimento parece obedecer a uma estranha economia na qual a imagem não é medida exclusivamente por seu valor de utilidade. No entanto, por essas coincidências felizes da vida, o que minhas reminiscências retinham de Meteorango Kid também se ramificava a partir do ponto nevrálgico do drama. Quando revi o filme, entendi alguns elementos que desde aquela época me chamaram a atenção e se sedimentaram a ponto de constituir parte de meu imaginário cinematográfico.
Primeiro, não há como ignorar a potência criativa da cena que sempre retornava a minha memória quando o assunto era Meteorango Kid. Dificilmente se achará no cinema abordagem tão frontal e verossimilhante de uma bad trip. Com poucos recursos, a partir de cortes secos, somente com um colchão mulambento dentro de um ambiente fechado, André Luiz Oliveira compõe um eletrizante quadro em cujo centro bate em disritmia o coração paranoico. Ele pulsa dentro de corpos relaxados para desfigurar o gesto em pequenos e insensíveis aceleramentos, até o surgimento de uma gargalhada gratuita. O descompromisso debochado com o mundo adulto, aparentemente protegido pelas paredes sujas do quarto-e-sala, vai sendo aos poucos impregnado pela peste e pela crueldade. Esses miasmas chegam ali através do jovem sem nome, que esconde seu corpo em um casaco jeans, afrontando a seminudez de Lula e Caveira com seu pudor proletário. Sua barba malfeita, seu ensimesmamento concentrado, se afigura como a prostração do engajamento diante da alienação. Lula é um remediado – avacalha o sistema, porque, em certo sentido, o sistema o protege como filho abastado. Seu amigo torna-se um intruso no momento em que resiste a se entregar a esse avacalhe – sua condição subalterna o impede de provar o anarquismo como remédio.
Diante daquelas imagens pude me ver me mexendo na cadeira do Cinearte UFF, experimentando sentimentos contraditórios onde o maravilhamento deixava ao fundo um travo de desespero. Porque – agora me dava conta disso –, nesse momento eu deixava de me identificar com o Lula e me colocava na pele daquele jovem casmurro, fechado, cujo maior erro fora simplesmente abrir uma janela para que a violência do mundo circundante fizesse presença ali, naquele quarto, e as incertezas diante do futuro desfizessem as ondas de prazer prometidas pela droga. Quando assisti Meteorango Kid pela primeira vez era apenas um jovem recém-chegado do interior do estado do Rio de Janeiro. Fazer cinema era – e continua sendo – um investimento de risco. Portanto, os questionamentos existenciais do jovem encasacado reverberaram sobre as crenças que brevemente seriam testadas no momento de minha formatura, depois da qual seria, de forma impiedosa, jogado no mercado de trabalho.
Por tudo isso, Meteorango Kid encontrou em mim uma acolhida e sobreviveu, através dos tempos, como a experiência nutriz de uma atmosfera transgressora e juvenil. Para além das intromissões da experiência sensível na configuração dos sonhos, sua onda migratória atravessa passagens abertas por trocas simbólicas, de natureza intertextual e também reformula a própria expressão do pensamento. Pedaços dessa memória afetiva irrompem em obras díspares e extemporâneas, atestando que seu acesso envolve um encadeamento de filmes em frutíferas relações atemporais. Sem dúvida, Lula ganhou inúmeras sobrevidas na cinematografia contemporânea baiana: podemos encontrar suas pegadas em Depois da chuva, de Marília Hughes e Cláudio Marques, Tropykaos, de Daniel Lisboa, e no curta Ótimo amarelo, de Marcus Curvelo, todos expressivos de um percurso errático motivado pelas deambulações de seus jovens protagonistas. Existe uma empatia imediata entre o desterro experimentado por Lula – sua trajetória por um mundo desintegrado e pós-utópico – com aquele motivado pela brutalidade neoliberal, seus novos modelos de controle e manipulação que só admitem, para serem afrontados, uma recusa radical de se centrar a voz em qualquer discurso. Com essa negativa, se colocar à margem das articulações como um subversivo à espreita – um revoltado – e não mais como um revolucionário à espera.
Depois que assisti Meteorango Kid, no início da década de 1990, saí andando pelos calçadões da praia de Icaraí junto com alguns amigos em alegre diálogo pós-sessão noturna. Deixava-me ir embora e me perguntava se essa foi a melhor maneira de se fazer uma “revisão crítica”. Elucubrar sobre uma experiência de vida desdobrando-a diante do olhar do leitor e, com isso, provocar a estranha sensação de que um modelo de paratexto, em vez de sobreviver ao lado da obra principal, como um pequeno parasita, dobra-se sobre si para simbolizar o desfalecimento experimentado ao se olhar um ouroboros. Sumir na interseção impossível entre o fora e o dentro, a interioridade e a exterioridade, em cujo nódulo o inimaginável, o negativo/positivo da imagem, desafia nossa a imaginação a se centrar na vertigem. Quando abri meus olhos, estava no presente, diante da tela de LED do computador. Sem mais o que dizer, apertei a tecla de ponto final e prendi o círculo, fixando-o como se fixa um inseto empalhado com um alfinete.