CAFÉ COM CANELA

Por Guilherme Sarmiento

No Panorama Internacional Coisa de Cinema de 2016, o júri da competitiva baiana manifestou publicamente em seu parecer algumas críticas às obras realizadas no estado, considerando-as pouco reflexivas daquilo que se espera de um “cinema contemporâneo”. Meu comentário aqui vai por um outro viés, porque, no meu entender, o “cinema de arte” hoje no Brasil sofre por vezes de um insuportável excesso de “contemporaneidade”. Isto porque a “contemporaneidade” como um fator estético normativo mais esteriliza do que propriamente vivifica as obras. Fugir a ela me parece, hoje, algo muito salutar e necessário. Por isso, filmes como Café com canela são tão importantes: eles simplesmente vivem, respiram, sem a falsa impressão de que almejam estetizar uma experiência presente e, assim, sobrepor aos traços livres uma demão de tinta tão espessa a ponto de imobilizar suas possibilidades de contínuo movimento.

Talvez porque os diretores Ary Rosa e Glenda Nicácio sejam oriundos de outros estados do Brasil, sobre eles não pesou nenhuma responsabilidade de “contemporaneizar” a baianidade. Essa tarefa árdua e, por vezes, estéril é encampada por muitos cineastas baianos justamente por ser uma exigência da crítica, que procura nos filmes o modelo exemplar de uma identidade “repaginada”. À espera de uma sensibilidade incomum, que transfigure os embates movidos no presente para a apreciação devota, referenda aspectos demiúrgicos desta formalização estética e política da experiência. Por vezes isso soa como uma litania sebastianista, cantada enquanto um novo gênio não dá o ar de sua graça e devolva ao cinema o brilho de uma época de ouro imaginária e, consequentemente, inalcançável. Sem tomar para si essas mistificações inibidoras do talento, Café com canela se vale da delicadeza para introduzir o espectador num ambiente onde o ethos, o caráter de uma comunidade, manifesta-se integrado a um universo ficcional e a um modo de produção favoráveis a sua expressão sem maneirismos ou estetizações desnecessárias.

Reside aí o grande trunfo do longa-metragem. Temas bastante caros ao cinema contemporâneo florescem em ambiente irrigado o suficiente para dispensar a ansiedade de se molhar continuamente o broto com o risco de matá-lo. A cidade de Cachoeira torna-se o cenário ideal para que se crie uma história onde duas mulheres negras (Violeta e Margarida) se aprocheguem uma da outra e, com essa invisível tecelagem de afeto, entreguem ao final o artesanato expressivo da solidariedade feminina. As interpretações vivas de Valdinéia Soriano e Aline Brune dão as dimensões políticas desse sentimento aparentemente banal e, no fundo, revolucionário e libertador, que é a empatia com o sofrimento do outro. Da mesma forma, a escolha de Babu Santana para interpretar Ivan consegue surpreender por entregar a expressão da afetividade homoerótica a um ator geralmente escalado para papéis embrutecidos. Essa “quebra” suave de certas expectativas promovidas por Café com canela, sua atenção às pequenas subversões, dão o tom desta fábula sobre o valor da amizade.

Esse tema certamente caiu como uma luva para todos os envolvidos na produção e, por isso, a atmosfera criada por Café com canela transcorre como algo genuinamente vivido. Mesmo considerando certos deslizes comuns a diretores estreantes, Glenda Nicácio e Ary Rosa conseguiram criar uma aura em torno da produção que referenda a potência da história contada. Na realização fílmica celebra-se não somente o encontro amigável entre duas personagens fictícias, mas se encaminha o amadurecimento de um projeto nascido de um esforço artístico, institucional e comunitário muito mais amplo. Café com canela satisfaz um conjunto de aspirações tidas desde que se fundou um curso de cinema no Recôncavo baiano: deixar-se capturar pela deliciosa armadilha rendilhada de cheiros, sabores e sonoridades flutuantes, suspensas, no ar úmido e quente às margens do Paraguassú. Quando Dona Dalva, uma das maiores compositoras de samba de roda da Bahia, surge na tela, os olhares sobre sua imagem se deixam atravessar por um feixe de desejos, de vontades, que sustenta a grande abóbada barroca em cujas bordas esse filme certamente brilhará como uma estrela matutina.

Vale destacar também o bonito trabalho de cenografia realizado para dar vida à subjetividade da personagem Margarida, caída em depressão após a morte do filho, elemento importante para a construção da dramaturgia do longa-metragem. Aqui atesta-se mais uma vez a maneira como Café com canela se abre a artifícios que “quebram” com a tendência hiperrealista do cinema brasileiro recente, apostando em experimentações, hibridismos, cujo fim último é realçar a fruição da fábula. Sem interferir no andamento do drama de redenção, o cenário singra pela história como um soturno navio fantasma perdido em um oceano solar, solidário e afetuoso, representado pela cidade de Cachoeira.

Por tudo isso, o surgimento de Café com Canela confirma o momento instigante pelo qual a produção de cinema na Bahia vem passando e que, certamente, trará novas surpresas no futuro se alguns fatores permanecerem estáveis diante do cenário de desmonte implementado após o golpe parlamentar. Que as políticas de incentivo e financiamento público à produção cinematográfica sejam mantidas pelo Estado e, como ocorreu em Recife, se tornem parte de uma estratégia de governo – considerando, também, os avanços obtidos com a interiorização do ensino superior como parte deste esforço de disseminar a cultura e o fazer audiovisual para além do eixo Rio-São Paulo. E, principalmente, que os jovens realizadores continuem sem o medo de não serem contemporâneos, pois o cinema é maior, muito maior, do que a contemporaneidade. Façam simplesmente filmes e, depois, deixem que a crítica se entenda em que prateleira colocá-los, pois as grandes obras muitas vezes são anacrônicas, extemporâneas e deslocadas. Não se imobilizem diante da canela, das especiarias. Experimentem colocá-las no café, pois é da mistura que nascem os novos sabores.

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