METEORANGO KID: O ANTI-HERÓI DO ANTISSISTEMA

Por Matheus Leone

Sendo o cinema uma arte cara demais para não ser comercial, é natural que a experimentação sobre a forma cinematográfica, fora de um esquema industrial, tenha sido realizada por uma elite cultural nos anos 1960, que realizava obras voltadas para si. É natural também que esses filmes representem uma bastante subjetiva versão da sociedade, como se pretendessem dramatizar a confusão interior de seus autores enquanto eles tentam lidar como podem com um dos mais intensos períodos da cultura do século XX – um movimento que pretendia demolir os valores tradicionais, incompatíveis com a revolução, e tatear em busca do novo de tal forma que não poderia ser batizado de outra coisa além de “contracultura”.

Na esteira desses eventos e coexistindo com fatos históricos como a instituição do AI-5 no Brasil, a greve geral de Maio de 1968, na França, e a Primavera de Praga, do mesmo ano, na antiga Tchecoslováquia, surgiu em 1969 Meteorango Kid, o herói intergalático. Escrito e dirigido por André Luiz Oliveira, o filme segue Lula Bom Cabelo (Antônio Luiz Martins), estudante universitário de Salvador, enquanto ele assedia mulheres no transporte público, recebe conselhos tortos de um produtor de cinema interesseiro, vai ao cinema ver um filme do Tarzan, fuma maconha com os amigos e outras atividades mais incomuns. Isso tudo, porém, é história, e, por mais que a fábula de Meteorango Kid seja interessante, principalmente por seu humor nonsense, o que realmente marca o filme corre livre com o próprio realizar cinematográfico.

Esse aspecto do filme foi destacado por Walter da Silveira na cobertura da edição do Festival de Brasília de 1969, em que Meteorango Kid foi exibido pela primeira vez. Escreve o crítico:

com suas várias imperfeições de técnica e de estética, com sequências inúteis ou mal acabadas, mais longo do que deveria e poderia ser como estória e continuidade, (…), é um filme extremamente a se considerar pelo que representa como explosão de talento selvagem, como instinto para a criação cinematográfica, como manifestação de um testemunho crítico sobre o existir atual”.

Além de marcas estilísticas, o modo ligeiro e a distinta despreocupação de Meteorango Kid com os aspectos formais pré-estabelecidos também levam à condição semiautobiográfica, não exatamente no que diz respeito às loucuras da narrativa, mas no que contorna a atmosfera do projeto por inteiro. Isso porque André Luiz tinha apenas 21 anos na época do lançamento de seu primeiro longa, produzido por seu pai, e havia recém-formado da primeira turma do Curso Livre de Cinema, do Grupo Experimental de Cinema, capitaneado por Walter da Silveira e Guido Araújo, na Universidade Federal da Bahia (que também serviu de locação para Meteorango), que representou seu primeiro contato formal com a realização de cinema.

Existe, portanto, uma relação íntima entre Lula e André Luiz, estabelecida através da maneira muito entregue que o realizador expõe sua realidade particular no filme. No entanto, por mais alienado que possa parecer o protagonista de Meteorango Kid, a mensagem em texto de uma das cartelas que versa sobre a importância de não perder o senso de humor mostra que as intenções do realizador não são tão vagas como um paralelo inflexível entre ele e a sua contraparte ficcional possa sugerir.

O diretor encontrou nessa liberdade possibilitada pela fuga das regras de estrutura a tradução perfeita para uma época de transição na história feita através de um recorte de gênero, classe e raça que, apesar de possuir uma relação menos que ideal no retrato de qualquer outro grupo que fuja das características essencialistas de Lula e aqueles que o rondam, o faz de modo tão franco que é impossível condená-lo e desprezá-lo completamente por suas falhas – citando mais uma vez o crítico Walter da Silveira, que, aliás, foi professor de André Luiz na ocasião do Curso Livre, em 1968: “chego, neste ponto, a pensar que o filme de André Luiz Oliveira está certo quando está imperfeito. Não seria tão autêntico se em técnica e linguagem fosse mais equilibrado e coeso. Daria ideia de fabricação de usinagem”.

Usando as palavras de Hanna Horvath, personagem principal da série americana Girls, criada e interpretada por Lena Dunham (outra cineasta que também se expõe de modo honesto em suas obras e gera polêmica por, ao ser verdadeira com a sua realidade, negligenciar toda uma realidade alheia a ela), André Luiz Oliveira conseguiu com seu primeiro filme ser “a voz de [sua] geração” ou, pelo menos, uma das vozes. Uma realização incontornável dentro da filmografia brasileira.

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