Este texto contém revelações sobre os filmes “Oldboy” (2003) e “A Criada” (2016).
O cinema sul-coreano conquistou seu espaço dentro do circuito de festivais europeus durante o fim da década de 1990 e início dos anos 2000. Esse período, apelidado de “Korean new wave”, serviu para estabelecer autores que cresceram nos primeiros anos de uma democrática Coréia do Sul e hoje não encontram muitas dificuldades em exportar seus trabalhos, possuindo público cativo em diversos pontos do globo. O mais conhecido dentre eles, com certeza, é Park Chan-wook, diretor do filme responsável por catapultar a “Korean new wave” para fora das salas de arte (ou pelo menos um segmento dela, mais voltado para o cinema de gênero) e que se tornou a principal referência para o ocidente de sequência de ação precisamente coreografada e sem cortes: Oldboy, a segunda parte de uma trilogia de filmes de histórias independentes entre si, conectadas apenas por um tema em comum – a vingança.
Enquanto o mundo entrava em êxtase com o formalismo extravagante e a história cheia de reviravoltas e mistérios do filme de Park, ele mesmo estava mais preocupado com o efeito gerado com a resolução do seu roteiro e, a partir desse incômodo, tomou a atitude que moldou toda uma segunda fase dentro de sua filmografia. Isso porque em Oldboy a personagem feminina mais importante do filme termina a história privada de uma verdade crucial sobre a sua identidade. A partir do seu filme seguinte, Lady Vingança, Park muda seu foco para protagonistas femininas que possuem pleno controle (ou ativamente buscam por esse controle) de suas próprias narrativas. Essa mudança, e o embate óbvio que ela promove por lutar contra o olhar masculino do próprio Park sobre suas personagens, nunca foram tão bem explorados quanto no seu mais recente, A Criada.
Inspirando-se no romance Na Ponta dos Dedos, de Sarah Waters, Park transporta a trama da Inglaterra Vitoriana para o período de dominação japonesa sobre a Coréia. Tudo começa quando um trapaceiro autointitulado Conde Fujiwara (Ha Jung-woo) contrata Sook-Hee (Kim Tae-ri), órfã criada pela família da tia que também vive de trapaças, para trabalhar como criada na mansão de seu parceiro de negócios, Kouzuki (Jo Jin-woong). Kouzuki é coreano, mas usa o nome da família de sua falecida esposa japonesa por fetichizar a cultura estrangeira, principalmente a japonesa e a inglesa, e desprezar a coreana. Na mansão também mora a reclusa – não por opção – Srta. Hideko (Kim Min-hee), sobrinha da esposa japonesa de Kouzuki e herdeira dos títulos da família, vivendo submissa ao tio que planeja um dia se casar com ela para assim continuar com o controle de toda fortuna da família. Sabendo de tudo isso, o falso Conde (que também não é japonês, mas fingiu ser para conquistar a confiança de Kouzuki) bola o plano de infiltrar uma criada na mansão para que ela o ajude a desposar Hideko antes que seu tio o faça, só para que ele fuja com a sua fortuna e prenda a senhorita em um sanatório. Ele só não contava que da relação entre Sook-Hee e Hideko surgiria um inesperado romance que poderia frustrar as intenções de todos os envolvidos.
Park, no geral, emprega em A Criada uma sobriedade há muito dispensada de suas obras – infelizmente, também a partir de Lady Vingança, alguns de seus filmes parecem se pendurar demais em artifícios visuais histriônicos e cansativos – , criando uma atmosfera que, pela maneira contundente que o roteiro prioriza o desenvolvimento da relação entre as personagens, remete mais ao filme que o tornou um grande nome dentro da Coreia do Sul, o drama de guerra Zona de Risco, de 2000, do que aos seus mais famosos internacionalmente. Entretanto, isso não significa que o Park das tendências estéticas exageradas sumiu completamente, mas sim que essas tendências agora sustentam algo maior do que o puro efeito estético. Elas aparecem com muita força em qualquer cena que precisa passar o sentimento da presença do olhar masculino sobre os corpos femininos. Em comparação com Hideko e Sook-Hee, os dois personagens masculinos de maior destaque são apenas duas figuras patéticas e escravas de seus desejos sexuais e capitais. Eles são ameaçadores enquanto o foco está nas protagonistas, pois é assim que são percebidos por elas, mas toda vez que a presença masculina é o elemento dominante em cena – e A Criada se afasta completamente das mulheres em pelo menos dois momentos mais explicativos da história – o tom do filme muda para algo mais caricatural, pela própria maneira que esses personagens foram construídos.
É como se o diretor olhasse para trás, para os seus “filmes masculinos” e para as suas primeiras tentativas de criar protagonistas femininas complexas, e finalmente enxergasse que muito daquilo era meio ridículo. Isso não o torna isento a críticas de como ele escolheu retratar de maneira extremamente gráfica essas obsessões masculinas (incluindo as dele próprio) sobre mulheres, mas é justo afirmar que, pelo menos, desta vez ele o fez de maneira mais desperta.