SISSAKO EM CACHOEIRA – SENSIBILIDADE E POLÍTICA

Foto: Erick Lawrence

Foto: Erick Lawrence

Por Fernanda Mathieu

A arte de Sissako esbarra e segue em paralelo com uma produção política a partir do momento em que dá voz a realidades pouco experimentadas pelo Ocidente. Entende “Cinema Político” como militância audiovisual, em suas várias possibilidades de definição. Para Deleuze, por exemplo, o cinema pode ser visto como “arma de guerra”, pois nele se viabiliza a afronta de valores ao mesmo tempo em que proporciona esteticamente uma aproximação com o espectador, sensibilizando-o.

Partindo da prerrogativa do potencial do cinema como ferramenta ativa na busca de exposições de realidades socias duras e que precisam ser modificadas, podemos então entender a força de produções como as do cineasta Abderrahmane Sissako. O diretor de cinema mais ativo da África nasceu em Kiffa, na Mauritânia, em 1961, e formou-se em cinema na Universidade VGIK, em Moscovo, na Rússia – sendo essa a fundação acadêmica de cinema mais antiga do mundo, fundada em 1919. Desde então, suas produções têm reconhecimento mundial por sua originalidade. Essa, por sua vez, consiste em uma sensibilidade impressa a partir de sua experiência no mundo real, absurdamente explicitado em seus filmes.

Sissako consegue de maneira única tratar de assuntos como repressão política e religiosa com uma estética contemplativa, que coloca seus espectadores em uma sintonia muito particular com suas personagens. Sendo então sua arte um mecanismo quase que de apelo a verdades jamais imaginadas em sua totalidade se não vividas, podemos compreender a profundidade dos valores incitados e tão explorados em sua obra.

O poder do cinema está muito além do lazer e do reconhecimento pessoal em narrativas que aumentam o ideal de coletivo ou nos dá a noção do abismo entre diferentes maneiras de viver. O Cinema carrega em sua estrutura a chance de expor ou calar realidades; de explorar e nos dar novas verdades, vindas amaciadas ou como verdadeiros tapas em nossas caras. Edward Said – intelectual e ativista palestino – visou em vários registros e estudos o que ele chama de “poder da narrativa” (as histórias que toda uma nação carrega em sua ambivalência social e política), que pode muito bem ser reconhecido em obras como Bamako (2006) e Timbuktu (2014), de Sissako.

Essas obras, como tantas outras realizadas pelo cineasta mauritano, carregam consigo as verdades vividas por várias minorias e populações adversas à costumeira realidade explicitada pelo cinema Hollywoodiano. Sissako narra com maestria e continuidade aquilo que só quem sente na pele pode entender, nos dando uma mínima abertura para dores que até sufocam com seus planos longos e amplos, como na cena em que Kidane (uma das personagens principais de Timbuktu) se dá conta do tamanho de seus atos. Quando Kidane, pai de Toya, acidentalmente assassina seu opositor, foge por toda a extensão do rio enquanto lentamente Amadou perde suas forças e cai ao tentar se levantar.

A abordagem estética de um plano extremamente aberto e longo (como recurso visual agonizante da morte de Amadou, e o desespero interminável de Kidane), ou de uma profundidade de campo curta demais quando há a necessidade de dizer que Amadou é simplesmente um objeto da narrativa, sem ser uma personagem aprofundada e explorada, mostra a destreza que esse diretor tem quando aborda as consequências de uma ocupação política e religiosa, das aversões ideológicas locais. Questiona-se então, de onde vem tamanha competência e conclui-se apenas que esta só poderia ser possível quando se faz presente a noção de empatia pela verdade do próximo.

E é exatamente isso que afirma Abderrahmane Sissako no Cine Theatro Cachoeirano, de Cachoeira-BA. Quando questionado sobre qual objetivo tinha com seus filmes, não soube responder sem antes colocar em questão o que o motivou, deixando bem explícito duas coisas: como nossas realidades nos marcam e como elas se atrelam ao que produzimos; não podendo nosso passado ser desvinculado do que fazemos e somos hoje.

Sua presença no masterclass no Cine Theatro ocorreu no dia 06 de junho, logo depois da finalização da Mostra Sissako, realizada pelos alunos da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia dentro do Cineclube Mário Gusmão, e direcionada aos moradores da cidade de Cachoeira. Seus filmes foram apresentados em vários lugares públicos e de fácil acesso, tornando possível a disseminação do que ele mesmo, em entrevista, apontou ser importante: o compartilhamento de informação e cultura.

Quando questionado sobre o porquê havia se tornado cineasta, pacientemente entre perguntas, respostas e tradução do francês para o português, Sissako disse encontrar dificuldades para responder, uma vez que tal gosto e vontade pela profissão se formaram ao longo de anos e inúmeros acontecimentos. Seu cinema carrega toda uma visão de mundo construída à base de histórias vividas sob as realidades locais, como fica claro no comentário transcrito abaixo:

“Fui criado em Maliki, mas nasci em outro lugar. Graças a isso, tive a impressão de uma mescla cultural e fui moldado diante da dupla nacionalidade. Cresci junto de quatro irmãos e vários primos, o que reforçou em mim o ideal de compartilhamento. Tendo minhas observações sociais, parte da minha construção cultural proveu de vários elementos artísticos, me fazer concluir que cultura é uma mescla de informações”.

Mais adiante, na mesma pergunta, Sissako, ao discorrer sobre o quanto suas histórias de vida carregam seu estilo de cineasta, que “não é preciso quando se faz um filme buscar heróis longe de casa, mas sim olhar à própria volta”. Abderrahmane finaliza a resposta afirmando que, com sua arte, quer evidenciar a angústia da realidade vivida e tenta mostrar isso com simplicidade e capacidade de síntese, algo muito problemático de se fazer. Toda uma história carregada de dores, emoções, lições, perdas e ganhos não é algo pequeno para se resumir à narrativa de um filme.
E é sob essa perspectiva de demonstrar uma verdade, que surge o questionamento de até onde seu cinema é documental ou ficcional. Quando perguntado onde começa e acaba a linha tênue entre este dois gêneros emblemáticos, sua resposta não poderia refletir mais sua personalidade artística quando recusa a dissecação de sua obra sem incorrer em possíveis reduções:

“Especificamente, para um cineasta, é muito difícil teorizar a própria obra. É mais fácil quando outras pessoas observam a ideia, pois minha vontade de fazer cinema não é uma questão teórica”.

Ademais, Abderrahmane teve a oportunidade também de falar como foi estudar na Rússia sendo um homem negro. Sua resposta nos indica o que todos os seus filmes falam por si: a importância das trocas de experiências heterogêneas de vida como parte da formação do ser humano. Ele responde:

“É uma pergunta difícil, pois sou muito grato por ter estudado na universidade que estudei. Meu sofrimento foi grande, não como homem negro, mas sim como estrangeiro. A minha grande frustração era ter a impressão que os outros estudantes não queriam se comunicar para saber mais sobre a minha realidade. Era um complexo muito grande de superioridade por eu ter vindo da África, um lugar tido como miserável e, consequentemente, dando a entender que eu não tinha nada a oferecer. Eu não tinha como compartilhar minhas experiências culturais com os outros estudantes, pois não tive acesso a grandes pintores, por exemplo. Através do cotidiano, era preciso suportar a mediocridade do ser humano. É preciso ser muito cuidadosa ao afirmar que o preconceito era com a cor, pois faz parecer ser um preconceito limitado. É preciso conhecer os valores de uma pessoa além da sua cor. Não ignorar a questão do racismo, mas é importante se olhar acima disso para ser uma pessoa melhor. É importante ter consciência do olhar de desprezo do outro para poder superar e passar por cima. A interação seria e é, a base de tudo”.

Fica claro então, de onde vem aquele sentimento brando que todo filme de Sissako nos deixa logo após o início dos créditos. É evidente que como prerrogativa a qualquer produção realizada, o cineasta tem como máxima importância o reconhecimento do próximo. Quer-se proporcionar, a cada trabalho realizado, a oportunidade dos seus espectadores verem para além de suas vidas expressas e terem a sensibilidade de olharem suas personagens de frente. Mais do que isso, de suma importância, fica claro que a base de tudo é o cuidado e empatia com o próximo.

Quando a ele é pedido um conselho aos alunos que entram agora na carreira de cineastas, fica comprovado que a simplicidade rege o que acredita ser importante para uma sociedade melhor. Após alguns segundo sem responder, sua fala embarca em valores excepcionalmente íntegros, mas de suma importância:

“Tenho o desejo de dizer muitas coisas, por isso fiquei mudo. É preciso acreditar, ter fé. Se você não acredita, fica difícil avançar. Se você não fizer, alguém vai. É preciso ser muito corajoso. Ainda assim, não consegui chegar lá. Fazer um filme é um trabalho de equipe, onde cada profissional vai contribuir de alguma forma. Claramente, a pessoa mais visível é o diretor, mas não é só ele quem faz uma produção. Lembro do um núcleo criativo em Salvador, onde uma pessoa incrível me disse que se você não tem a capacidade de dizer “bom dia” ou “boa tarde” várias vezes no dia, você não tem capacidade para ser cineasta. É muito importante se preocupar com o próximo. Acho engraçado perguntar se ‘está tudo bem’ e as pessoas responderem que ‘sim, está’, mesmo elas não estando bem. Fazer um filme não deveria ser algo complicado; por exemplo, eu poderia gravar um filme todo só sobre o dia dessa pessoa que respondeu “Tudo”. Sobre o que é esse “Tudo” do dia a dia da pessoa”.

Mais que válido, o encontro proporcionado pelo Cineclube Mario Gusmão com o cineasta africano foi a chance do público presente escutar com mais cuidado as palavras de um grande cineasta. Palavras que regem significados já tão esquecidos, perdidos ou apenas não apreendidos, sobre convivência, proteção e acolhimento a nossos semelhantes. Não fora apenas um acontecimento para o cinema de Cachoeira ter a oportunidade de interagir com um cineasta internacional; fora a oportunidade de aprender com um ser humano disposto a olhar o próximo e dar visibilidade a ele, através de suas narrativas e produções, retiradas de suas experiências singelas ocorridas em sua infância, junto a seus irmãos.

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