Por Flávio Reis
Algumas obras cinematográficas ganham status de inquestionáveis.
Críticos e fãs criam uma aura semelhante à de um conceito absoluto científico (ninguém questiona que dois mais dois tem por resultado quatro).
Quando um filme, por exemplo, entra nesse grupo de obras inquestionáveis, temos o começo de um fenômeno comportamental (desenvolvido com maestria nas redes sociais) conhecido como hype.
Derivada da palavra em inglês hyperbole (em português “hipérbole”), ser hype é receber atenção promocional exagerada, ser muito falado. Quando algo ou alguém se torna membro do espírito de uma época, representando o padrão intelectual de um determinado tempo, temos um hype.
Baseado nos conceitos métricos do imediatismo das redes sociais, uma obra cinematográfica pode cair nas graças de um determinado grupo de influenciadores e ser defendida como um traço revolucionário de uma geração.
Voltando no tempo, numa época em que a internet era apenas um boato e o cinema rivalizava com a televisão, podemos ver como um fenômeno hype sobrevive e se renova.
Quando se fala em obra definitiva do cinema na década de oitenta, temos A Garota de rosa shocking (Pretty in Pink, Paramount Pictures – 1986) e Curtindo a vida adoidado (Ferris Bueller’s Day Off, Paramount Pictures – 1986) como representações de duas vertentes antagônicas que povoam o imaginário popular, e que são inquestionáveis para críticos e fãs.
Em A garota de rosa shocking, temos a representação de uma mulher num drama adolescente, que se passa nos preparativos de um baile de formatura escolar. Vivida por Molly Ringwald, Andie Wash é uma garota pobre e batalhadora, que luta para manter a casa, já que o seu pai, Jack Walsh (Harry Dean Stanton) está desempregado. Acompanhada pelo apaixonado melhor amigo Phil “Duckie” Dale, personagem de Jon Cryer, Andie é alvo de bulliyng por parte dos garotos ricos da escola, na qual ela só estuda por ter recebido uma bolsa. Poderia ser apenas mais uma clássica história de classes em que uma garota pobre é alvo de intolerância, mas temos o advento da paixão entre Andie e um dos garotos ricos da escola, Blane McDonough, personagem vivido por Andrew McCarthy. Andie ganha do pai um vestido de gosto duvidoso, comprado num brechó, e depois de reformá-lo decide ir ao baile de formatura.
O filme gira em torno da garota apaixonada que sucessivamente é desprezada, humilhada e sempre convencida de que seu interesse amoroso lutará por ela, e ambos serão recompensados com uma vida feliz. Não importa quantas vezes ela é alvo de investidas humilhantes, sempre lutará por seu amor. A boa e pura garota, acusada de ser uma alpinista social, é a representação do arquétipo feminino do western americano: a companheira que espera o marido com grande entusiasmo, não importando suas privações ou anseios.
A marca deixada por esse filme ainda é sentida. Uma fórmula usada a exaustão e que ainda sobrevive com algumas modificações sensíveis. É possível sentir as referências em alguns outros filmes de sucesso de público e crítica como: Uma linda mulher (Pretty Woman – Touchstone Picture – 1990), 10 coisas que odeio em você (10 Things I Hate About You, Touchstone Picture – 1999) e O Lado bom da vida (Silver Linings Playbook, The Weinstein Company/ Mirage Enterprises – 2012).
Mas não é só isso.
Em sites de avaliações de filmes, as notas obtidas por A garota de rosa shocking são diretamente proporcionais às críticas positivas que recebe. É considerada uma obra-prima e a voz de uma geração, um verdadeiro exemplo de zeitgeist dos anos oitenta.
E se o hype sobre os ombros de A garota de rosa shocking é grande, outro filme com um emblemático status de voz de uma geração é Curtindo a vida adoidado.
No melhor estilo playboy que consegue o que quer, sem arrependimentos, crises morais ou punição, o filme se passa na cidade de Chicago e apresenta um dia na vida de Ferris Bueller (Matthew Broderick), que decide se fingir de doente para passar um dia com sua namorada Sloane Peterson (Mia Sara) e Cameron Frye (Alan Ruck).
Com uma personalidade dominadora, Ferris não se importa em quebrar regras e se safar de todas as consequências possíveis. Ele mente, engana e até pratica crime cibernético em plena década de oitenta. Ferris é o precursor de personagens como Charlie Harper (Charlie Sheen) da série Two and a half man (Warner Bros. Television Distribution – 2003 – 2012), Barney Stinson (Neil Patrick Harris) da série How I met your mother (20th Television – 2005 – 2014) e Patrick Bateman (Christian Bale) do filme Psicopata Americano (American Psycho, Europa Filmes – 2000).
Curtindo a vida adoidado gira em torno da liberdade juvenil frente a sociedade opressora que pretende, em todas as instâncias, submeter os jovens a uma cúpula burocrática, nãos dando ouvidos aos seus desejos. Esse desejo juvenil é o mote apresentado, mesmo sendo um filme sobre um garoto com uma vida estável que se entedia com o sistema e o utiliza sem a menor cerimônia ou questionamento quanto as consequências dos seus atos.
E no meio disso, sua namorada Sloane e seu amigo Cameron apenas o seguem e o ajudam em suas tramas para fugir da escola, sem ser pego. Ferris não é um garoto irresponsável que não tem noção da vida, antes ele se prepara de todas as formas para se divertir sem ser pego ou ser responsabilizado. Até mesmo quando Cameron descobre que vai ter que enfrentar o próprio pai, Ferris o deixa sozinho e à própria sorte para chegar em casa antes dos pais e concluir seu dia perfeito.
A maior demonstração de manipulação do personagem é na antológica cena do desfile em que ele canta Twist and Shout (Beatles – 1963). Ao encerrar a apresentação, Sloane e Cameron se aproximam do carro alegórico e são impedidos por seguranças, como se fossem fás de Ferris. Mesmo cantando ao vivo para a televisão, Ferris simplesmente sai ileso.
Os dois únicos personagens imunes a Ferris são sua irmã Jeanie Bueller (Jennifer Grey) e diretor da escola Ed Rooney (Jeffrey Jones). Jeanie acaba presa , além de ser acusada de ter inveja do irmão, já o diretor tem a vida destroçada por tentar provar que Ferris está mentido ao faltar aulas.
Se a história parece batida atualmente quando o filme foi lançando, ainda havia traços de Greese (Paramount Pictures – 1978) na cultura POP americana (que é uma obra sobre uma juventude distante dos anos oitenta, já que é ambientado na década de cinquenta). Havia um hiato que foi preenchido por Ferris Bueller e seus amigos. O hype criado sobre esse filme o trata como obra definitiva do lado contestador da geração anos oitenta.
Para Rubens Ewald Filho, Curtindo a vida adoidado é o melhor filme do diretor John Hughes e “(…) um clássico do gênero comédia de (e para) adolescentes”.
Obras como Curtindo a vida adoidado, A garota de rosa shocking, ou séries como Chaves (El Chavo del Ocho, Canal 8 – 1972 – 1979) e Friends (NBC – 1994 – 2004) povoam o imaginário popular com um senso de proteção semelhante ao dos pais aos filhos, são imunes a críticas desfavoráveis e ao tempo, mas, mesmo assim, o olhar crítico deve prevalecer sobre o hype.
O absoluto nunca é a forma ideal de se enxergar uma obra: seja de forma favorável ou desfavorável, mesmo que o hype diga o contrário.