Por Matheus Leone
Enquanto os primeiros quatro filmes de James Gray operam em retomada aos filmes americanos da década de 1970, os dois últimos (Era uma vez em Nova York e este, Z – A cidade perdida) parecem se identificar melhor com a Era de Ouro de Hollywood. “Clássico” é um adjetivo comumente usado ao se comentar sobre as obras do diretor, às vezes de modo depreciativo, principalmente quando comparado a outros autores de estéticas mais marcadas que também surgiram no cinema americano da década de 1990 e cujas respectivas filmografias se importam muito com a glória de cinemas passados como Wes Anderson, Quentin Tarantino e Todd Haynes. No entanto, se o “clássico” de filmes seus como Caminho sem volta e Os donos da noite era muito mais uma questão de forma e mise-en-scène, nos filmes mais recentes ele é a própria proposta.
Em Z – A cidade perdida, Gray traz o épico de volta ao cinema americano da maneira como ele era concebido pré-Nova Hollywood, quando a preocupação com valores de produção e escala se equiparavam ao jeito meticuloso e muitas vezes burocrático que esses filmes articulavam informação, tempo e ritmo. Para o bem ou para o mal, Gray absorve essas características do Velho Cinema para a sua adaptação do livro de David Grann sobre as expedições reais do explorador britânico Percy Fawcett (Charlie Hunnam) na Amazônia no início do Século XX. O resultado disso é um filme que genuinamente apresenta uma linguagem mais parecida com algo de 50 anos atrás, ao mesmo tempo em que atualiza os valores morais para o Ocidente do Século XXI.
Não somente um experimento estético de um cineasta fascinado com o passado, Z – A cidade perdida questiona, através das idas e vindas durante as décadas em que Fawcett se divide entre a Inglaterra e a “Amazônia selvagem”, qual o objetivo de valores tão caros ao mundo europeu civilizado como legado e grandes feitos. Gray percebeu na história de Percy Fawcett um veículo para os seus temas de estimação, como as relações familiares, imigração na construção da identidade e questões do ego masculino, e estabelece uma ligação de significados complexa entre eles – Fawcett se distancia do lugar e das pessoas com o intuito de retornar a eles com a glória e aceitação que ele acha que merece, mas se perde em suas intenções ao ponto que a impossibilidade de enxergar um fim satisfatório no que deveria ser uma manobra de transição o afasta de vez de tudo aquilo que ele desejava no princípio.
De certa forma, existe muito de James Gray na versão dele para o protagonista de Z – A cidade perdida. Ambos são sujeitos muito preocupados em realizar seus trabalhos dentro de uma integridade ética autoimposta, tiveram seus feitos eclipsados por seus contemporâneos (a redescoberta de Machu Picchu pela exploração americana comandada por Hiram Bingham em 1911 fez muito mais alarde do que as viagens de Fawcett) e precisaram lutar contra a má recepção de suas realizações para seguir em frente com novos trabalhos (quase todos os filmes de Gray fracassaram em dar um retorno financeiro, assim como as expedições de Fawcett sempre falharam em alguma instância). Se na superfície Z – A cidade perdida pode parecer “quadrado” e sem tato para o que existe de demanda para os filmes de aventura atuais, talvez seja apenas Gray que “escalou” a parcela do público impaciente com a abordagem proposta para fazer as vezes do grupo que antagonizava as visões anacrônicas de Fawcett, realizando mais um paralelismo entre o filme e a sua própria biografia.
Por Guilherme Sarmiento
Lembro que meu pai era fã de Indiana Jones. Confessava isso com um forçado ar infantil, como se o seu gosto o impelisse a mostrar, em um jogo de corpo, uma expressão tacitamente permitida e que não correspondia a sua idade e austeridade profissionais. Ele também lia histórias em quadrinhos e as escondia de mim, mas eu sempre achava os exemplares dentro de sua bolsa, muitas vezes amassados, por vezes emaranhados em meio a sua farda de policial militar. Era fã de Fantasma, personagem criado por Lee Falk, cuja sanha colonialista lembrava de longe as aventuras imortalizadas por Steven Spielberg na década de 1980. Falo sobre isso porque a atitude envergonhada de meu pai diante de seu gosto “juvenil”, o contraste entre a seriedade que exigia seu papel social e, ao mesmo tempo, sua subterrânea e reprimida ludicidade, esse tensionamento entre sua natureza íntima e sua imagem pública, revela muito do lugar ocupado por James Gray diante de sua última obra, Z – a cidade perdida. O diretor americano se esforça muito pra imprimir dignidade a cada plano de seu longa-metragem, porém, a tentativa de fugir aos padrões de conduta folhetinescos, à ideologia colonialista e suas pulp fictions, só parece reforçar a falta de fôlego com que ele atravessa todas as camadas para chegar até a almejada “visão complexa” do mundo. O resultado é um filme que acaba mostrando, com tanta prova em contrário, aquilo que gostaria de esconder.
Não que Z – a cidade perdida seja desagradável e enfadonho. As idas e vindas de Percy Falcett, militar e explorador inglês, entre dois mundos – a arrogante e imperialista Inglaterra do início do século XX e a inexplorada e inebriante região amazônica latinoamericana – tem um grande apelo emocional por ser um tema já testado com sucesso tanto na literatura quanto no cinema. A arquetípica viajem exploratória do homem ocidental a lugares “exóticos” e a consequente entrada em uma espiral de insanidade selvagem encontrou sua expressão trágica no clássico livro No coração das trevas, de Joseph Conrad, que em maior ou menor medida inspirou filmes marcantes na história do cinema como Apocalypse Now, Fitzcarraldo e o Homem que queria ser rei. James Gray tenta alçar sua iniciativa a esse panteão. Aliás, encontramos dentro do próprio filme citações explícitas a seus antecessores. Porém, a fotografia bem trabalhada, o cuidado da direção de arte e toda a solenidade de uma narrativa épica acabam servindo para mascarar, sem êxito, os defeitos que mais delimitam a distância da iniciativa das obras fontes do que propriamente estreita os laços com sua herança virtuosa.
Por outro lado, a interpretação algo distante de Charles Hunnam não ajuda a compor uma personalidade apaixonada conforme se exigiria aqui. Comparado a Marlon Brando e a Kraus Kinski, o ator britânico acaba sendo um exemplar anêmico e inexpressivo. Porém, o que torna Z – a cidade perdida um filme mediano tem a ver com o modo como representa, de forma muito plana, o universo de interseção entre as culturas. Não se pode dizer que No coração das trevas foi um avanço na representação do indígena; indiscutivelmente, o universo de Conrad não escapa a arrogância com que os ingleses contemporâneos a ele se portavam diante dos povos periféricos. Apocalypse Now também pouco contribuiu para avançar nesse sentido. Mas ambas as obras, se não dignificaram e humanizaram as comunidades autóctones, também não preservaram os ocidentais de suas zonas de sombra. E Z – em sua ambição de ser “complexo” – não consegue ampliar de forma significativa a visão em nenhuma dessas direções.
Por tudo isso, seria mais honesto que Z – a cidade perdida simplesmente deixasse de se forçar a uma complexidade artificiosa e assumisse sua verdadeira feição: um filme de aventuras despretensioso. Mas, se isso agora já não é possível, porque o filme já está feito, resta a nós, espectadores, assisti-lo como tal para não cair em falsas expectativas. A citação de Indiana Jones, neste caso, lhe cairia muito melhor.
Por Lucas Bonillo
Com inspiração no livro homônimo de não ficção de David Grann, nasce “Z – A Cidade Perdida” (2016), nova produção de James Gray. Seguindo a linha temática de seus filmes anteriores, como “A Imigrante” (2013) e “Amantes” (2008), a trama trata da busca de um protagonista em torno de um objetivo quase impalpável, que vê sua realização dificultada pela própria sociedade em que está inserida.
Percy Fawcett (Charlie Hunnam), explorador britânico, é destinado a uma expedição para demarcar as fronteiras entre Brasil e Bolívia. Em troca, prometem limpar a má fama da família, herdada dos problemas de álcool e jogatina do pai. Sempre acompanhado pelo parceiro de expedição Henry Costlin (Robert Pattinson), o protagonista, aos poucos, encontra resquícios de uma cidade perdida dentro da Amazônia, o que se torna sua nova obsessão. Percy, o incompreendido, de espírito nobre e aventureiro, e Costlin, o fiel e desastrado amigo, a uma estrutura quixotesca, prostram-se, então, a lutar contra seus próprios moinhos de vento – uma sociedade eurocêntrica representativa desse período ante e pós Primeira Guerra Mundial, do início do século XX. Como ele próprio coloca, é a sua “reputação enquanto homem” que está em jogo. A mensagem do filme entra em contradição dentro de sua própria estrutura. O homem branco colonizador, sob suas próprias convicções e visões de mundo, é quem nos conduzirá, e a narrativa e todos os outros personagens que a compreendem, à Cidade Perdida de Z.
O filme começa com uma metafórica caçada a um veado, onde Percy demonstra um espírito generoso, visionário e bom, alcançando o alvo por um caminho pouco convencional, em que “não há passagem”. O caminho certo. Esta dualidade ficará impressa, na forma de arquétipos, em todos os personagens, manipulados apenas em função do sucesso do protagonista. Esta escolha narrativa faz com que, tanto os personagens que o auxiliam, como Costim, Nina Fawcett (Sienna Miller), sua esposa, e Jack Fawcett (Tom Holland), o filho mais velho, quanto os que se mostram impedimento, os homens brancos ricos da alta classe, funcionem apenas como pilares da narrativa, sem qualquer profundidade. Nina, apesar de mostrar-se forte e independente, falha em emancipar-se do sistema em que o próprio filme a aprisiona. Ainda que tenha sido fundamental para o financiamento da segunda expedição do marido, com sua apurada pesquisa, ocupa na história apenas o papel de mãe e compreensiva esposa. Na dissolução de suas aspirações, acaba cuidando sozinha dos três filhos (estas expedições duravam anos, como o próprio personagem enfatiza). No mesmo passo, os homens eurocêntricos e maus, desviam sempre do padrão de beleza tradicional – o homem que o contesta na conferência do Instituto Britânico de Geografia, é um exemplo claro, assim como James Murray (Angus Macfadyen), o financiador de sua segunda expedição. Apesar de ser “amigo” e lutar contra “a escravidão e morte” dos povos indígenas, a preocupação de Percy é apenas em alcançar seus objetivos como explorador, ainda que todos os recursos do filme nos direcionem a apoiá-lo, custe o que custar. Quando o próprio conflito familiar com Jack é resolvido por meio de agressão física, custa acreditar na visão romântica que James Gray tenta imprimir para seu protagonista.
Assim como os personagens, a direção de arte e fotografia mostram-se prisioneiros da interpretação literal da narrativa, limitando-se, predominantemente, ao campo do estético. Os grandes cenários bastante detalhados, de uma Inglaterra que perpassa a Primeira Guerra Mundial, empenham-se em reconstruir os espaços desse período de maneira impecável. São salas de reunião, salões de bailes, campos de guerra, onde se sobressaem tonalidades de cores pastel e neutras, típicas de seu trabalho, junto a pequenos detalhes em vermelho, enfatizado em todas as obras do diretor. A presença marcante do vermelho contrasta com a correção de cor esverdeada do filme. A cor amarela, também merece destaque, evidenciando a invenção e disseminação da iluminação elétrica nesse período, muito presente também em “A Imigrante”. A direção de fotografia também não apresenta grande potencial criativo. Os movimentos de câmera contidos, entrelaçando planos próximos e gerais de acordo com a necessidade da narrativa, assim como planos e contra planos, com maior trepidação da câmera em momentos de tensão, marcam uma estética típica de um cinema mais clássico narrativo. Porém, diferente da força expressiva deste, preocupa-se apenas em fechar as pontas do roteiro, reafirmando informações que os diálogos extensos e denotativos já expõem. O filme parece não confiar no poder que as suas imagens podem produzir por si só para o espectador.
Para finalizar, uma decepção restrita ao desempenho da direção de fotografia de Darius Khondji, que também trabalhou em “A imigrante”. A fotografia não se empenha em ocupar espaço no espaço que limita. Diferente dos filmes anteriores, em que os planos abertos se transformam com maestria em planos subjetivos, e os enquadramentos, e sobreenquadramentos, destilam novas informações para a narrativa, esse filme aproveita pouco desta fonte. Não há como comparar o sonho de Ewa Cybulski (Marion Cotillard), a protagonista de “A Imigrante”, perdendo a irmã de vista em um extenso campo de trigo, sem poder alcançá-la, com o sonho de Percy revendo o filho, distante e estático no campo. Muito menos, o uso do enquadramento, como nos espaços entre colunas, no terraço do edifício em “Amantes”, que enclausura Leonard Kraditor (Joaquin Phoenix) e Michelle Rausch (Gwyneth Paltrow) em um processo de conquista e aproximação dos dois personagens, o que é raramente aproveitado neste filme. No geral, há pouco aproveitamento do espaço. Há também pouca expressividade nos planos gerais de coletivos humanos, que, nos outros filmes, restringiam as grandes massas de gente, representando o mar incontornável e restritivo que os protagonistas se inserem, que é a própria cultura. Esta falta de preocupação fica impressa na película.
Pouco a pouco o filme torna-se óbvio. Um obstáculo interpõe-se e é solucionado pelo protagonista. E assim ad infinitum. Longos diálogos didáticos e enquadramentos previsíveis ligados por elipses temporais marcam o protagonista como colonizador da própria história que habita.