Por Matheus Leone
Entre os vinte anos que separam os lançamentos de Cinzas no paraíso e o seu filme seguinte, Além da linha vermelha, Terrence Malick desenvolveu um gosto pelos Grandes Temas. Após explorar guerra (Além da linha vermelha), colonização (O novo mundo) e a própria vida (A árvore da vida), Malick se transforma mais uma vez e descobre um novo interesse, talvez mais artisticamente ambicioso: a depuração de um cinema que parece querer condensar os ideais da filosofia transcendental (a verdade, a bondade e a beleza) em um estilo. Uma articulação natural dos interesses estéticos de A árvore da vida, mas sem o peso que foi tentar entender a humanidade reduzindo-a a subjetividade de um núcleo familiar do sul dos Estados Unidos em meados do Século XX. Os filmes que seguiram – Amor pleno e Cavaleiro de copas – , foram histórias de relacionamentos românticos que paradoxalmente desafiam (por individualizar as experiências dos personagens em monólogos internos) e reforçam (pela construção imagética dos símbolos) as concepções de amor romântico registradas no código do cinema narrativo tradicional.
De A árvore da vida a Cavaleiro de copas, houve uma progressão no abandono dessas narrativas tradicionais a caminho de uma sensibilidade em que os contextos nos quais se dão as situações ou a caracterização dos personagens importam menos do que a atenção para as formas dos sujeitos e objetos em quadro e como eles se transformam ao interagirem. A combinação entre a grande-angular flutuante de Emmanuel Lubezki (fotógrafo fiel do diretor desde O novo mundo e peça-chave na concepção estética deste “novo Malick”), os planos curtos determinados por Malick e pelo batalhão de montadores que escavam o extenso material bruto e as atuações ancoradas no improviso propõem uma regressão do naturalismo narrativo rumo às suas representações mais elementares.
Com isso em vista, De canção em canção, seu mais recente filme, apresenta o primeiro movimento contrário à onda que se formou em A árvore da vida ou talvez o primeiro experimento dentro dessa nova forma. Isso porque alia os mesmos padrões estilísticos com um decisivo retorno à dramaturgia, ou seja, o poder que a fórmula imprimia nas imagens quase abstratas em serviço de intenções interiores à história, em vez de parecer uma simbologia para outras coisas. Desta vez direcionando seu olhar para o cenário musical de Austin, a trama se orienta pela personagem de Rooney Mara, o centro de um triângulo amoroso que se completa com Michael Fassbender e Ryan Gosling.
A construção dos personagens é o principal fator que faz com que De canção em canção destoe do bando pós-A árvore da vida. Em Amor pleno os personagens eram até bem definidos, porque também eram poucos, porém qualquer caracterização a partir da evolução das cenas era uma preocupação secundária aos movimentos contidos nas cenas enquanto unidades e às meditações dos monólogos em voice over em fluxo de consciência. Isso é ainda mais acentuado em Cavaleiro de Copas, que dispensa totalmente as caracterizações em uma narrativa tão convoluta que apresenta pouco mais do que um interminável desfile de situações amorosas envolvendo o seu protagonista, talvez tentando representar (não tão sutilmente quanto o efeito que as imagens rodopiantes da câmera de Lubezki quer alcançar) a falta de solidez do cotidiano de Los Angeles, o cenário do filme. Até existe esse caráter abstrato nas atuações em De canção em canção, mas, desta vez, Malick não fecha tanto o filme dentro dos monólogos e mesmo eles soam mais como reflexões que completam o momento do que elucubrações existências, como aconteciam nos seus dois filmes anteriores. Basta comparar como Malick trabalha as personagens de Natalie Portman, atriz coadjuvante tanto em Cavaleiro de Copas quanto em De canção em canção, nos dois filmes: no primeiro ela nada é além de um espécime humano, um recipiente vazio para que o personagem do protagonista (Christian Bale) deposite significado; enquanto que no último, ela tem espaço para atuar de forma que se perceba o seu trabalho na construção de um personagem.
No entanto, essa regressão à narrativa vem acompanhada de uma história mais tradicional do que as duas últimas também: a personagem de Mara precisa decidir entre Fassbender, um empresário do mundo da música, e Gosling, um artista como ela, e, consequentemente, o tipo de vida que a influência desses homens representa. A simplicidade da dicotomia pode parecer não casar tão bem com a grandiosidade do estilo das imagens que se comportam como o absoluto divino, mas na prática funciona melhor do que os modelos que levam Cinema de Fluxo ao pé da letra de Amor pleno e Cavaleiro de Copas. O conteúdo da narrativa simplificada trabalha junto com a complexidade da forma, em vez de batalharem uma com a outra como aconteciam nos filmes anteriores. Para quem acompanhou as transformações que levaram Malick até De canção a canção, esse rompimento com o hermetismo que impregnava o seu novo cinema vem como um muito aguardado convite de boas-vindas.