CINEMA DO RECÔNCAVO INVADE OS FESTIVAIS

Por Guilherme Sarmiento

Não é a toa que no Renascimento, quando a ciência e a técnica começaram a moldar e ampliar o olhar humano sobre o mundo, uma das formas encontradas para realizar essas melhorias foi aperfeiçoar as lentes, polindo-as e conformando-as até se tornarem côncavas ou convexas. Hoje, próximo a Salvador, vive-se um renascimento do cinema e ele se dá justamente onde a Baia de Todos os Santos se curva, às margens do Paraguassú, numa pequena cidade histórica incrustada em um vale. Cachoeira faz parte de uma região que soa como se estivesse devidamente polida: o Recôncavo Baiano. Nada mais adequado para se receber uma escola de cinema. E é justamente a partir da universidade que jovens vindos de todo o país, hoje, ocupam os espectros abertos pela sétima arte, povoando as telas com imagens das mais diferentes matizes.

Com quase dez anos completados, o curso de cinema da UFRB vai se firmando como um dos mais importantes polos de produção cinematográfica do Estado da Bahia. O ano de 2017 parece indicar isso. Vários filmes realizados por alunos foram selecionados para os mais importantes festivais do país. Brasília recebe esta semana quatro curtas e um longa-metragem, Café com canela, todos filmes que direta ou indiretamente refletem a maturação de um projeto aos poucos afirmando sua importância. Aqui, nesta breve exposição, falarei um pouco dos curtas, pois tive a oportunidade de em outro momento publicar uma crítica sobre a película de Ary Rosa e Glenda Nicaccio, destaque do Festival de Brasília. As produções são muito heterogêneas, porém é possível elencar algumas inquietações presentes nessas pequenas obras, que, de certa forma, as irmanam como parte de um corpus tonificado por questões comuns.

Engajamento. Os curtas refletem novas abordagens de engajamento político exigidas pela conjuntura dos atuais refluxos de conservadorismo radical. Em maior ou menor grau, pautas políticas perpassam todos esses filmes, tornando-os emergenciais e imediatamente lincados com o seu tempo. Isso fica mais evidente na importância dos coletivos para o suporte ideológico e material dessas obras, articulando um conjunto de realizadores em torno de um discurso que almeja dar visibilidade ao negro, à mulher, ao homossexual,a comunidade LGBT, incluindo-os não como objetos do processo, mas como agentes diretos de sua autorrepresentação. O dado novo é que esse engajamento expressa-se de forma lúdica e integrada ao cotidiano, evitando de forma eficiente os tons panfletários. O som do silêncio, de David Aynan, por exemplo, realizado pelo Coletivo Tela Preta, opta por mostrar a realidade da periferia com delicadeza, a partir da relação de um pai deficiente(surdo-mudo) e de seu filho. As nuances e as filigranas existenciais se sobressaem sem, no entanto, impedir que se perceba na própria condição paterna o status de toda a comunidade afrodescendente: forçada ao silêncio, com sua fala mutilada, só resta às novas gerações reconstruírem essa ponte para que se abram novos espaços de comunicação. O mesmo se dá com o curta de Juan Rodrigues, diretor de Arco do medo. Aqui a expressão se dá de forma muito mais poética, rascante e autoral. Ele se utiliza de seu próprio corpo, de sua própria voz, para, de forma corajosa, expor a realidade de um jovem negro e homossexual, tomando para si a missão de ser dono de sua imagem. Sufocado por uma fita adesiva, Juan retira-a de seu tórax produzindo o som de um crepitar de fogo, como se queimasse até sair renovado desse doloroso processo de afirmação. Esse engajamento também se percebe nos filmes do coletivo Feito a Facão, especialmente em Fervendo, dirigido por Camila Gregório, onde a defesa do aborto é feita a partir de uma única locação: o banheiro. Com atuações espontâneas e naturais, escutamos a conversa de duas amigas através do celular, e acessamos as ansiedades e dúvidas acarretadas por uma gravidez indesejada.

Descentramento e regionalização da produção. Os curtas refletem em sua própria materialidade que o projeto de interiorização da produção é uma realidade, e de que o audiovisual brasileiro terá lidar com ela daqui por diante. A maioria dos realizadores hoje cursando na UFRB vêm do interior do nordeste e refletem sobre essas questões em seus filmes. Em Latossolo, Michel Santos mostra a realidade do município de Luís Eduardo Magalhães, cujo crescimento vertiginoso se dá às margens da monocultura de soja. A virulência do agronegócio é mostrada em todo o seu esplendor: cidades surgem sem planejamento enquanto o solo é explorado de forma ostensiva até as bordas de um deserto. Em Melhores noites de Veroni, Ulisses Arthur retorna a Maceió e conta a história de uma mulher e sua libertação, evitando dramatizar de forma excessiva os resíduos de uma sociedade machista. A abordagem política aqui é evidente e, também, a percepção de que a tonalidade do discurso deve se adequar a uma situação de normalidade cotidiana, evitando a grandiloquência de acontecimentos extremos ou a marcações muito fortes de estruturação dramática.

Hibridização. Por fim, esse conceito reflete uma visão estética que perpassa todas as obras, esse conjunto de curtas elencados aqui. É um cinema limítrofe entre a ficção e o documentário. Todos os filmes, com maior ou menor êxito, são miméticos. Quando não são completamente documentais, como Admin admin, sua linguagem aproxima-se de um cinema de fluxo, atento aos pequenos gestos e a um prevalecimento de tempos mortos e longos planos. Essa é uma tendência do cinema brasileiro contemporâneo que, mesmo gerando ótimos longas e curtas, acaba se tornando uma fórmula confortável para se perpetuar. Vivemos hoje na UFRB um belo momento, mas creio que é preciso estar atento para o novo e o novo exige também rupturas. Mantendo um ambiente de liberdade criativa e de estímulo ao experimento, o Cinema do Recôncavo aos poucos encontra seu lugar e, quem sabe um dia, lançará novas tendências narrativas para a expressão do desejo, do sonho e da utopia na Bahia e no Brasil. Descolar-se da corporalidade do presente para imaginar novos mundos, mobilizando esperanças e reconduzindo o cinema ao seu lugar de visagem, mais do que nunca, me parece algo urgente e necessário.

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