COBERTURA CACHOEIRA DOC OITAVA EDIÇÃO

PRIMEIRO DIA – MOSTRA COMPETITIVA

Por Hanna Vasconcelos

Não foi o cinema que levou ou construiu a comunidade e a resistência de Izidora, nem colocou os Guarani-Kaiowá dentro de seu Tekoha. Em ambos os filmes, mesmo se tratando de culturas e contextos distintos, pois a luta pela terra é a luta por um modo de viver, o cinema é testemunho de um processo de confrontos. São contestadas, através do território e da forma que essas comunidades se articulam e se organizam, as noções de propriedade e individualidade impostas e ensinadas pelo sistema que vivemos. As frentes de resistência de Minas Gerais foram nessa sessão representadas pelo povo do território Guaruvi, os Guarani-Kaiowá, e pelo movimento dos trabalhadores sem teto na comunidade de Izidora. Eles buscam construir ou retomar um modo de vida digno a partir da terra, convergindo famílias e uma comunidade na linha de frente, na ação direta de retomada, resistência, ocupação e marcha por direitos.

Em Ava ivy vera o avanço nas terras do Tekoha se dá no embate direto com os jagunços dos latifundiários, dos karaí (brancos). O embate das pessoas indígenas e dos karaí é mostrado no filme principalmente pela ausência e pelo medo. Primeiramente, o filme apresenta, através de narração em primeira pessoa, a árvore usada para fazer ligações por conta do sinal de celular, na beira de uma estrada envolta em plantação de soja. A ameaça dos karaí é marcada pela dominação desse território de coisas que são próprias dos brancos: as estradas e as monoculturas. A ausência de qualquer pessoa nesse quadro ao longo da narração intensifica a sensação de perigo, de espreita. O povo Guarani viveu anos na beira de estradas, ao lado das monoculturas, o que dá a essa imagem outra, que seja memória do lugar de onde se parte numa jornada para sua origem. A ameaça dos karaí é colocada diretamente durante os primeiros dias de retomada, no acampamento dos jovens índios, quando eles são encontrados pelos jagunços e perseguidos a tiros. A correria e o momento que eles se escondem em silêncio na mata diz muito. A floresta os acolhe com naturalidade, uma vez que esses espaços são de fato deles, da juventude Guarani.

Na fala de Genito Gomes, realizador do filme, presente na sessão, a ideia é que eles ensinem aos mais novos e aos mais velhos operem a câmera para que futuramente façam imagens desse tipo de conflito, uma vez que os jovens adultos, muitas vezes, têm que lutar e garantir a segurança da comunidade. O movimento de retomada das terras do povo Guarani-Kaiowá também se dá com a retomada de seu culto tradicional, a instalação das casas de reza voltadas para a floresta e o ensino das tradições, danças e orações para as crianças. A importância da retomada se revela na fala dos mais velhos quando dizem que seu Tekoha é o coração do mundo, o pilar que sustenta toda a Terra. Voltar para esse território, retomar seu modo de viver e fazer dos filmes algo além das imagens e das palavras, algo que marque a história de resistência como exemplo para os mais novos, os que virão.

Na reza dos Guarani-Kaiowá, as primeiras coisas vêm do raio, que é a palavra de Ñaderu. A retomada de sua vida e do seu modo de viver, também passa pela retomada de seu valor enquanto povo e de sua crença espiritual coletiva. A força das crianças, a luta dos adultos e a sabedoria dos mais velhos se articulam e se alimentam no filme, inundam o conteúdo e forma fílmicas, e percebe-se que o processo de realização é um reflexo do modo como eles se relacionam e não uma simples simulação.

Em Na missão, com Kadu acompanhamos a história da comunidade de Izidora à luz da militância de Kadu, liderança política diante da instauração de um dos maiores conflitos fundiários urbanos da América Latina. O filme se constrói primeiramente jogando um olhar de intimidade sobre o lugar, na sala de uma senhora da comunidade, que juntamente com Kadu relembra o dia da passeata por moradia em que foram brutalmente oprimidos e violentados pela polícia militar a mando do Estado. A construção da memória é dada num tom otimista: aprendemos. Os depoimentos se unem nessa máxima, o aprendizado para a luta, as possibilidades de continuar resistindo. Posteriormente, a sessão de cinema, com os vídeos filmados durante a passeata, a mesma mensagem: aprender com os dias de luta, se fortalecendo enquanto comunidade. É notável o desejo de construir também uma outra maneira de viver, baseado na realidade de quem luta e na construção coletiva do dia a dia da resistência.

Durante o debate, Fábio Rodrigues levanta a questão trabalhada pelo cineclube Mário Gusmão na mostra Resistências “o que pode o cinema diante das urgências do mundo?” a resposta do realizador |Pedro Maia muito diz sobre a forma de fazer cinema dos dois filmes: o cinema não pode nada. Ele é parte de uma articulação complexa de eventos, relações, coletivos e momentos históricos. O cinema é registro, processo e construção que parte do encontro, principalmente, que fortalece discursos e afirma identidades, territórios, que demarca locais de fala e espaços de luta no tempo. Não pode nada sem o encontro, sem a construção concreta e uma ação de luta, uma ação direta e transformadora, mas pode ser parte desta.

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