PRIMEIRO DIA-MOSTRA COMPETITIVA
Por Flávio Reis
Em Cidadão Kane, Orson Welles cunhou um termo que perseguiu a história do começo ao fim. O personagem principal, em seu leito de morte, disse momentos antes de morrer a palavra “Rosebud”. Fernando Weller montou seu filme Em nome da América com uma estrutura similar.
Tudo começa com alguns americanos que se reúnem para relembrar histórias vividas no interior de Pernambuco, onde voluntariamente foram residir e trabalhar no Corpo de Paz. Esse grupo de voluntários, que se autodefinia como “apartidários”, eram jovens universitários recém-formados e com ideais humanistas que os impediam de ir ao Vietnam lutar. Achavam que se voluntariando para combater a miséria em países pobres era sua grande contribuição ao mundo. Mas, chegando no Brasil, a realidade encontrada foi muito pior que qualquer expectativa.
Entre aulas de culinária com fichas de papel no lugar de comida, cozinha imaginária, vacinação em crianças desnutridas e construções de creches, esses americanos eram e ainda são vistos como missionários americanos.
Do outro lado da moeda, o governo americano passou a investir no fortalecimento dos sindicados rurais e cooperativas da região, enviando para o Brasil agentes que treinavam agricultores para liderança e até uma possível guerra no campo. Algumas vezes enviavam agricultores para estudar nos EUA.
Se a política externa dos EUA causa desconfiança em seu discurso paternalista de defesa dos interesses dos países mais pobres, imagina durante a década de 60, na efervescência dos golpes militares na América Latina e o desembarque de milhares de jovens com ideias humanitários? Ver a visita do presidente João Goulart, enquanto seu mandato é ameaçado por forças apoiadas pelos EUA, causou algo entre incômodo e indignação na assistência.
Mas não foi bem essa a ideia original do filme. Segundo o próprio Fernando Weller, com mediação de Vinicius Andrade, ele foi investigar um boato antigo em Pernambuco que em sua fuga para se alistar na guerra do Vietnam, ninguém menos que Steven Spielberg desceu em terras pernambucanas, tendo tido até uma filha com uma moradora local.
Com o decorrer da pesquisa, Fernando Weller descobriu que naquela região houve uma assentamento de voluntários americanos. Um grupo chamado Corpo de Paz e o desenvolvimento de equipes específicas para montagem de cooperativas e sindicatos rurais, sendo que o governo dos EUA financiou a compra de uma sede sindical em Pernambuco.
Bom Jardim e Orobó ainda são cidades pequenas, padecem da violência que assola o país e não possuem grandes atrativos minerais para ter chamado a atenção do governo dos EUA. Durante todo o filme, essa estranheza fica evidente na fala dos antigos membros do Corpo de Paz e de alguns moradores da região.
Para dona Irene, que conheceu o Corpo de Paz quando ainda era jovem, o “menor” continua sendo a parte mais prejudicada de qualquer tipo de ingerência, pois, ao contrato dos ricos e poderosos da região, os pobres precisam apenas calar a boca e viver seu dia a dia. Na pequena participação que fez no filme, Dona Irene relevou a existência de um grupo de extermínio que matou centenas de jovens na região, e que ela tinha medo de falar sobre o assunto, já que quando todo o aparato fílmico fosse embora daquela região, ela estaria sozinha e sem apoio, podendo ser vítima de algum poderoso que ficasse insatisfeito com suas declarações.
Nesse ponto do filme, o Corpo de Paz começa ficar menos relevante na trama do documentário.
Vários e vários personagens começam a relembrar uma figura misteriosa, um homem cuja a história é pouco conhecida, mas que sempre foi visto como um espião da CIA. O Rosebud do Pernambuco chegou à região anos antes do Corpo de Paz. Ele foi responsável pelo desenvolvimento e treinamento de membros dos sindicatos rurais da região. Seu nome era conhecido por todos, e todos que o citaram desconfiavam de sua possível ligação com o serviço secreto americano, e até mesmo com a engrenagem que financiava os golpes em todo o continente.
Este homem, conhecido como Tim Hoger, recebeu a equipe de filmagem em sua casa, mas não parecia muito disposto a passar informações pessoais, sequer relembrar o Brasil. Em sua primeira aparição no filme, Tim Hoger pede que a equipe adiante logo as filmagens, pois o ritmo dos brasileiros era muito lento e nos EUA as coisas funcionavam mais rápido. O tom ríspido e desdenhoso dele só foi quebrado quando o diretor apontou para algumas fotos na parede, fotos estas tiradas no tempo em que ele viveu no Pernambuco.
Entre fotos e uma escultura de barro com o seu nome segurando uma faca (escultura essa lhe entregue ao som de “espião”), Tim acessou suas memórias afetivas em relação ao Brasil e começou a conversar num tom menos defensivo, mesmo quando negou ter sido um agente secreto.
Mesmo não assumindo diretamente, Tim Hoger ainda acompanha os noticiários daqui. Ele citou um antigo ditado brasileiro: “O Brasil faz progresso a noite, enquanto o governo dorme”. E segundo ele, tudo ainda continua na mesma desde que partiu.
Por dois meses, Fernando Weller viajou pelos EUA pesquisando em arquivos a ligação entre o Corpo de Paz e a CIA, não tendo encontrado qualquer documento que possa comprovar tal ligação. Respondendo a uma pergunta da plateia, ele disse que tem uma habilidade natural em manusear arquivos, mas que todo o filme só foi possível graças a um edital para desenvolvimento de roteiro que ele venceu, e assim pagou todas as pesquisas para produzir a obra.
Foi nesse momento que uma polêmica pergunta foi feita ao diretor. Um membro da plateia questionou o porquê produzir um filme brasileiro em que os americanos tem voz ativa e os brasileiros meros figurantes da própria história. Fernando respondeu que:
“(…) a intenção era fazer um filme sobre os americanos, e os brasileiros estavam ali intervindo para apresentar a opressão nua e crua por eles vivida, apontando os resultados da tal política humanitária dos EUA. As vozes são contundentes e apresentam os conflitos dos brasileiros, mas que só a história pode confrontar eles (os americanos que vieram para o Brasil montar as cooperativas, sindicatos e o Corpo de Paz). Seria muito prepotente da minha parte entrar na casa de uma pessoa e dizer que ela estava errada em vir ajudar os pobres nos Brasil.”
De fato, o filme causa uma sensação estranha de que havia algo errado no interesse dos EUA no sertão de Pernambuco, na criação de cooper
ativas e sindicatos rurais, dos cerca de 6.000 voluntários que vieram para países da América Latina com seus ideais humanitários.
Todo o emaranhado de Em nome da América, que tem uma excelente montagem, constrói a figura do “Rosebud” Tim Hoger antes de nos apresentá-lo. E no final, com o olhar dele para a câmera, ficamos com mais perguntas que respostas, sendo a principal: a invasão dos EUA ao Brasil foi uma realidade ou apenas teoria da conspiração?