MOSTRA COMPETITIVA-SEGUNDO DIA
Por Fernanda Mathieu
Mais um dia posso elogiar a escolha dos filmes feita pela curadoria no segundo dia de exibição da mostra competitiva do CachoeiraDoc, 7 de setembro de 2017. A seleção dos filmes tem se mostrado de extrema qualidade quando nos vemos diante de filmes que realmente nos tocam de maneira intimista.
Na primeira sessão da mostra competitiva do dia 07 de setembro tivemos mais uma marca do que parece ser a linha a ser seguida no festival desse ano: resistência e luta. Afirmo com convicção quando mais uma vez enuncio resistência. Dos que me contemplaram na minha genuína felicidade de ter anunciado o cunho emocional da militância, posso dizer que não enxergo menos que luta e necessidade e a mínima exigência de reconhecimento da sociedade sobre esses temas. Quero me atentar a três curtas em especial: Travessia, de Safira Moreira, Deus, de trabalho de conclusão de curso de Cinema e Audiovisual de Vinicius Silva, e A gis, narrativa que ouso afirmar ser um diamante bruto encontrado, que resultou em algo em que nem ao menos o próprio diretor tem a noção da dimensão alcançada – o que particularmente, me causa o riso frouxo e cansado do acaso.
Começando por esse último, pauto as palavras do diretor que afirma ter o início do projeto inspirado por uma música de Maria Bethânia, chamada A balada de Gisberta. Trata-se de um curta frio que beira quase ao clima hospitalar como um espectador da plateia anuncia ao dar sua opinião, que conta a história de uma transexual morta brutalmente no exterior por preconceito e ignorância baixa e egoísta. A história da morte de Gisberta nos foi mostrada com uma construção investigativa de como se decorreu as violências contra sua pessoa e as renúncias do reconhecimento familiar de sua realidade.
O problema que me cabe, mais como algo triste que incômodo, sendo ativista e militante da comunidade LGBTQ+ que abraça a realidade de transexuais e travestis, é que Thiago desenvolveu uma produção tão comovente a ponto de um grande número de espectadores chorar pela comoção de uma letra concebida sem a consciência dos limites impostos aos que o governo reconhece como uma segunda classe de cidadãos. Thiago também afirma o óbvio do absurdo que é um ser humano sofrer tamanha brutalidade e não ter a defesa digna do estado, tendo se comovido com tamanha frieza e impondo tal clima ao próprio curta.
Entretanto, como afirmei logo acima e ao próprio Thiago ao agradecê-lo por falar daquelas e daqueles que a sociedade mal enxerga, fica clara a falta de conhecimento do tamanho do trabalho que esse cineasta fez. Creio que o mesmo poderia se atentar ao detalhe de valorizar não só a comoção da brutalidade incitada a um ser humano, como primeiramente à verdade de milhões de pessoas que se identificam como transexuais.
Falemos então de Travessia e de como, após os créditos serem exibidos, o número de segundos que abrangeu as palmas e assovios de reconhecimento foi grande. Sabemos todos que a invisibilidade da comunidade negra é algo que ainda precisa ser falada, discutida, lembrada para então ser superada. Quero parabenizar Safira Moreira pela capacidade genuína de captar essa verdade e dizer claramente, não em palavras, que negras e negros estiveram, estão e sempre estarão aqui. No que cabe a sua fala dedicada à resposta, é simples: “Não existe mais mulher negra sem nome”.
O curta, que de tão curto colocou em dúvida a certeza do início das palmas contínuas tanto por seu tamanho quanto pelo sentimento e emoção promovidos pelo que se viu, vem da busca da diretora por fotos de sua família como memória do passado. Como indicado em narrativa off no início do filme, negros antigamente não tinham a facilidade de um registro fotográfico pela demanda de preço, e então na ânsia de encontrar seu passado Safira acabou por querer reunir várias fotos de mulheres por ele desconhecidas como índice da ancestralidade. O que resultou em um filme recebido de forma tão acalorada foi o que eu afirmo desde a sessão das 14 horas do dia anterior: imagens de resistência. Safira resistiu à repressão e sufocação de sua verdade e de suas antepassadas. Safira marcou nosso cinema de uma maneira bela.
Quero fechar minha crítica sem muito me alongar, pois não me cabem palavras do dicionário que contemplem essas verdades presentes em Deus, que nos mostra da maneira mais intimista e verdadeira o cotidiano de quem cria seu filho sozinha.
Primeiramente acho importante dizer que Vinícius elucidou sua realidade tão compartilhada em uma sociedade em que homens que apenas carregam a terminologia de “pai” abandonam seus filhos e de maneira rasa se mostram presentes. Ao vermos a rotina das personagens, compreendemos que uma vida simples é regida por ações maçantes como acordar bem antes do necessário para adiantar trabalhos domésticos, uma dupla jornada de esforços para que não se precise ter mais nada para fazer após a jornada de trabalho.
Entramos em contato quase que direto com esse intimismo que beira ao palpável por meio de verdades experimentadas, infelizmente, por um grande número de mulheres e crianças da sociedade machista que dificulta a vida de mães excepcionais. Não tenho como mais, a partir daqui, me prolongar. Não é uma realidade que compartilho, e todos meus estudos de caso não contemplam a grande realidade que carrega dores, cansaços e pequenas felicidades diárias que compensam, no final, a relação de uma mãe com seu filho a revelia da presença masculina.
Faço questão dos elogios à curadoria, mas dedico todo meu reconhecimento aos cineastas que sei, com toda certeza, que vão resistir à mão que enforca, sufoca e machuca verdades que as pessoas preferem não ouvir. Com força nas palavras e brilho no olhar, digo que o que me foi apresentado nessa sessão me representa e também representa a muitos que estiveram presentes nesse dia.