PRIMEIRA SESSÃO DA MOSTRA COMPETITIVA-CURTAS
Por Fernanda Mathieu
A Curadoria da oitava edição do Cachoeira Doc fez um ótimo trabalho de curadoria ao evocar uma coerência e diálogo entre a sessão de abertura, representada por “Quilombo Rio dos Macacos”, de Josias Pires, e, até então, os filmes do primeiro dia das competitivas apresentados em 06 de setembro de 2017.
Primeiramente é preciso compreender o trabalho por trás da construção do que chamamos de visibilidade proveniente do registro de verdades: a resistência. Não apenas viver diante de tantas situações conflitantes e limitantes impostas pelos brancos – definição usada pelos próprios indígenas dos curtas – como também não ceder uma rica e singular cultura às problemáticas das sociedades urbanizadas e deflagradas por um sistema preocupado mais com o dinheiro do que com o bem estar ou a relação com o próximo.
Sinto que posso pesar minha mão quando digo resistência contra branco, pois não é preciso aulas longas de história para saber que minorias como as tribos indígenas ou quaisquer outras que sofrem por preconceitos e opressões se diferem da supremacia cultural, política, religiosa e social prevalecente. Basta olhar para o lado e vermos as maiorias das caras que ocupam cargos importantes no mercado de trabalho ou modelos de beleza e sucesso. Basta lembrarmos que quem colonizou nossa terra e propagou o genocídio cultural da maior parte da população de 500 anos atrás tinha cor, e não era a da terra.
Estamos diante não apenas de um cinema todo de militância, como dispostos às mais diversas verdades culturais e valores morais nessa primeira sessão das 14 horas. Posso apontar com toda certeza que os índios e pescadores dos quatro curtas, ao terem a oportunidade de produzirem seus filmes e serem registrados respectivamente, resistiram como nunca ao que estamos acostumados no nosso dia a dia.
Extremamente válido é esse contato proveniente do trabalho de representantes indígenas e pescadores, pois como na própria fala de um deles quando questionado sobre o que tudo aquilo significava para o seu povo ouvimos a simples e objetiva fala: “Se a gente mostrar nossa verdade, ninguém vai poder falar que é mentira”. Nada para além daqui vale mais como o motivo máximo do por que se produzirem filmes como Yuxiã, de Nawa Siã e Siã Inubake, Ava marangatu, o peixe, de Jonathas de Andrade e Pescadores da maré, de Josinaldo Medeiros.
Nos dois primeiros curtas entramos de maneira crua e fiel ao que é importante para as tribos e o tamanho respeito para com a mesma: natureza. Dela provém a subsistência; é o que carrega determinado poder espiritual – uma vez que em Yuxiã fica clara a diferença entre a medicina indígena e a medicina branca; é a casa de ancestrais e a base das vidas que compõem as tribos e suas terras. Tão válido quanto o que rege a narrativa, vale ressaltar que os diretores destes dois primeiros curtas foram os próprios representantes das tribos apresentadas.
Importante também pautar que tão ausentes da influência da cultura branca estão esses índios riquíssimos em cultura, que o respeito para com o que eles não se identificam fica explícito na licença que pede o diretor de “Yuxiã”, Nawa Siã, em usar o português nosso e tomar a propriedade dos nossos materiais para concluir o curta. E não só a licença é pedida para nós, herdeiros daqueles que representam o início da briga cultural e social-econômica para fazer importante o registro audiovisual, como também às entidades e índios hierarquicamente acima desse diretor para que se possa retratar os costumes e rotinas em vídeo.
Já os filmes O Peixe e Pescadores da Maré estão tão em comunicação com esses dois curtas da primeira competitiva e da sessão de abertura que vemos, no primeiro, que o diálogo entre os pescadores e a natureza é retratado de maneira potente apenas com o visual, onde os pescadores exercem o ritual de abraçarem e acalmarem os peixes que pescam com movimentos que beiram uma ternura para nós estranha quando destinada ao que comumente vemos apenas como alimento. Particularmente, provinda de uma crítica pessoal, afirmo que fica clara a intenção, porém de uma maneira um tanto quanto não estimulante e que prende a atenção do espectador.
Em Pescadores da Maré vemos mais uma vez a resistência, desta vez no Rio de Janeiro, de pescadores que sofrem pela supremacia política advinda de militares da marinha. Pescadores que deixam claro que não gostariam que seus filhos passassem por isso, pois o risco e precariedades do emprego digno são absurdos. Vemos claramente a problemática maior da poluição da natureza que gera esse sustento – provinda da estadia e construção de bases militares da marinha e fábricas – quando os próprios pescadores ao pegarem suas redes com frutos do mar e lixo, devolvem os resíduos ao mar.
No amplo espectro do que se trata a organização deste oitavo CachoeiraDoc, fica claro nesse segundo dia a que veio a seleção dos filmes. Como já citado acima, visibilidade não existe sem resistência, e todo esse cinema apresentado até então não falha em nenhuma das duas evocações do que é ser minoria “não branca” no Brasil.