Por Fábio Rodrigues Filho
Uma imagem de arquivo inicia o curta Travessia. Para melhor dizer, partes dessa imagem nos aparecem como uma tentativa de desvelar um quebra-cabeça. Os pés com sandália de dedo, o vestido até o joelho, as mãos negras segurando uma criança branca, o rosto de uma mulher negra, o olho e o olhar… O poema Vozes-mulheres, de Conceição Evaristo, atravessa os intervalos das partes e dá a elas novas camadas. O poema nem revela, nem desvela: ele incendeia o véu1. Não se trata mais só de entender a lógica que completa o quebra-cabeça, mas sim propor uma nova organização para as imagens e para a história. Propor e poder, inclusive, criar novas imagens e outras histórias. Estamos no ontem, no hoje, no agora e na ressonância do amanhã. Olhamos a mulher do retrato, ela olha a câmera, a câmera do filme transvê o todo da imagem: ver e rever é a nossa condição até então diante (ou seria dentro?) dos ecos. Gerações de mulheres habitam e ecoam na voz de Inaê Moreira, que recita como quem incorpora o poema. Vemos o todo do retrato, sua frente e seu verso: a violência que habita cada linha, cada letra e cada entrelinha que circunscreve a foto num tempo que persiste e aspira nos encobertar, senão fosse o gesto do filme que interroga a imagem e a proscreve num encontro com as outras vozes de mais mulheres negras a se libertarem juntas das correntes imagéticas.
Quem é esta mulher que vemos? A babá do Tarcizinho (apelidado no diminutivo como uma defesa do poderio hereditário que o acomoda)? A bisavó de Safira? Ela tem nome, sobrenome? Elvira? Maria? Esse retrato que funda o filme é o espelho que reflete a diretora, espelho quebrado pelo gesto corajoso e coletivo de reclamar (e declamar) a vida-liberdade através e com as imagens. As imagens não podem pouco e devo lembrar isso para perceber o quanto elas agem no mundo e o quanto, na maioria das vezes, trabalham na manutenção de lugares e de tempos. Para além disso, as imagens estão sempre envolvidas por intencionalidades, escolhas, negações, desejos, histórias, construções de mundo e interpretações que as envolvem antes, durante e depois de serem criadas e exibidas. Em síntese, elas são sempre montagens e ações. Safira Moreira é também fotógrafa e parece nos indagar em cada plano e em cada corte sobre o poder das imagens na construção de si e de nós, a intrínseca relação de imagem e identidade / imagem e libertação. A mulher do retrato olha a câmera e seus olhos ecoam, Safira nos conta que encontra essa foto no seu “garimpo” por imagens de famílias negras.
O fato da diretora quase não ter registros em foto ou vídeo da sua família dispara o encontro e funda a travessia fílmica. Isto que funda o filme mobiliza toda a história da diretora, da sua família e da coletividade que a atravessa. Se o filme usa a violenta imagem (com sua inscrição) de arquivo, não o faz para reiterar lugares e nem perspectivas essencialistas, mas sim para operar um jogo temporal que faz essa imagem não só sobreviver, mas ser questionada, realocada, posta numa outra legibilidade histórica e precipitada a uma reexistência, empenhando assim uma subjetivação da mulher negra “retratada” através do agenciamento das vozes, corpos, fotos, dores e histórias das diferentes gerações de mulheres da sua família que fazem e costuram o filme. Molhar é amar após²: as águas das mulheres se enfraseiam na abertura do retrato. Retrato que o filme mesmo abriu e o libertou ao fluxo. Não se aquietando nisso, a travessia orienta seu fluxo para algo que virá a acontecer: se as famílias posam de frente à câmera, e não vemos a foto mas o ato de sair na foto, é antes para provocar uma potência e depois para constituir um registrar dessas famílias. Não só em imagem congelada (a fotografia), mas, sobretudo, a imagem quente do ardor do movimento de tempos e do agenciamento da vida-liberdade que une as coisas no filme e desemboca como uma força no mar revolto da existência.
A mãe da diretora fotógrafa, Joana Angélica Moreira, nos diz ao falar da raridade que era ser fotografada ou ter fotos de si e da sua família: “tinha mais ou menos uma foto, a foto da vida toda. Não tinha esse registro fotográfico não…”. Ouvimos a mãe e vemos uma mulher (seria a filha?) a nos mostrar uma por uma as imagens fotográficas que tem da sua história. Sete fotos e nada mais, mas sete fotos mostradas como numa chamada em que se diz (e se mostra): Presente! A imagem mais uma vez é atravessada por uma voz que conflui de várias vozes-mulheres, o grito “Presente” não nos diz só que essas mulheres, em vida e em vida-imagem, estão no agora, mas também elas estão reescrevendo a história e repropondo o futuro. Presença! O que eu chamo de chamada, corta para o chamado e a travessia (e o libertar-se) se faz Presente no nosso corpo e na nossa história; o filme faz do alcance o seu dizer. Uma outra voz ecoa, desta vez é Mayra Andrade, cantora caboverdiana que em seu canto diz a Joana que ela também pode falar, clamando a essa mulher: “te abre um pouquinho comigo, reúne tua coragem e resiste”. O que o filme faz é reunir as coragens e resistir. Mas não se basta nisso, é tempo ainda do filme acionar o corte como uma prospectiva. Não mais a imagem da vida toda, como uma essência salvaguardada em que a imagem mais aprisiona que dialeticamente reflete, mas a imagem transformada e transformadora, aberta ao tempo e engajada na libertação e na construção de si.
Safira Moreira nos diz uma outra coisa como sintoma da mobilização e do prolongamento do filme: “é tudo muito ligado a mim, eu ainda não me desprendi”. Como quem se implica, da ideia à reunião de vozes, o primeiro filme da diretora interroga a imagem para reentender a memória e reorientar a história. Em ecos e atravessamentos, os quatro minutos de Travessia se prolongam pelas ruas e no imaginário que nos constitui, sendo impossível sair ilesa ou ileso das águas que o filme conduz e dele transborda. Nisso o filme ecoa, não só se escuta o que se fala (e o que se mostra). Em Travessia, na repetição e no prolongamento das vozes-mulheres, o mundo responde ao atravessar a distância entre as ondas, o que parece ser a repetição, na verdade, adensa, aprofunda e prolonga o grito que precisa ser escutado e visto.
NOTAS
[1] DIDI-HUBERMAN, Georges. Quando as imagens tocam o real. In: Revista Pós. Escola de Belas Artes. Universidade Federal de Minas Gerais. Vol 2, ed. nr. 4, 2012.
[2] Tiganá Santana. “Reverência”: https://www.youtube.com/watch?v=Xuz3HeqXDpk
* Quando me refiro aos dizeres de Safira Moreira, estou citando suas falas durante o debate sobre o seu filme, no dia 07 de setembro durante a mostra competitiva do Cachoeira Doc. (link do debate)