Por Matheus Leone
Realizado pelo grupo PET Cinema do curso de Cinema e Audiovisual da UFRB, a quinta edição do festival de cinema universitário da Bahia, o Cine Virada, aconteceu este ano nos dias 26 e 27 de outubro, composto por três mostras e uma mesa de debate sobre as relações entre pai/mãe e filhos(as) no audiovisual. A atração principal do festival, a mostra competitiva de curtas-metragens universitários baianos contou com a presença de filmes da UFBA e UESB, além da própria UFRB. Foram selecionados 12 filmes, entre documentários e ficções, convencionais narrativos e experimentais, a curadoria do festival se ocupou de criar um panorama sobre, principalmente, as preocupações políticas e estéticas dos realizadores baianos em formação.
Não houve o mesmo esmero por parte da programação e o critério da exibição dos filmes foi deixado nas mãos da arbitrária ordem alfabética de seus títulos – o que resultou no feliz acidente das imagens sublimes de Varal levantarem o astral após o final niilista de Um Dia é da Vida, o Outro da Morte, mas que também fez o público esperar até que CorpoStyleDanceMachine fosse exibido, o quinto da mostra, para trazer algo além de um cinema de boas intenções e uma ideia só. O primeiro deles foi admin/admin, uma realização do coletivo Feito a Facão e vencedor do prêmio de montagem. É um documentário com imagens de telejornais e câmeras de segurança que não mudaram o login e senha de fábrica (daí o título do filme) que podem ser facilmente acessadas por qualquer um pela internet. O filme ironiza a forma como a mídia trata a questão da segurança, apontando a vigilância das câmeras como uma solução, contrastando reportagens sobre o tema com as imagens que invadem a privacidade dos usuários desses equipamentos. No entanto, nenhuma imagem das câmeras permanece tempo o suficiente em tela para que exista uma elaboração mais complexa do assunto e o filme nem sequer ensaia um autoquestionamento moral por usar filmagens do interior de residências como ferramenta para esse discurso sobre falsa sensação de segurança. Sem muita precisão na forma – o prêmio de montagem entregue pelo júri oficial parece prestar mais atenção no trabalho de escavar e escolher os vídeos do que na eficácia para uma construção narrativa – , admin/admin poderia ter um minuto, uma hora ou ser alguns poucos parágrafos do conteúdo apresentado e o impacto de seu limitado tratamento do tema seria o mesmo.
Foto: Evanize Essi/PET Cinema.
O outro filme Feito a Facão no festival, Fervendo, não sofre dos mesmos problemas. Escrito, dirigido e montado por Camila Gregório e com os outros membros do coletivo desempenhando as demais funções técnicas de fotografia, produção, som e etc., é uma ficção sobre duas amigas que se passa todo dentro do banheiro da casa da protagonista, Ticiane (Aíla Oliveira, vencedora do prêmio de melhor atriz). Fervendo teve a proeza de equilibrar as importâncias do discurso político e de sua narrativa ficcional ao mesmo tempo em que realiza ambos de forma muito esclarecida. O filme utiliza bem as tecnologias à disposição das personagens, utilizando-as como principal recurso dramático da trama que envolve, dentre outras questões mais amenas, as duas meninas contatando uma rede de apoio a pessoas que decidiram abortar. A fotografia e a mise en scène também merecem destaque por explorarem várias possibilidades dentro da restrição espacial, mantendo o filme sempre visualmente estimulante. Além do prêmio de atuação, Fervendo também ganhou como melhor filme e roteiro pelo júri oficial.
O outro grande vencedor da noite foi Não Falo com Estranhos de Klaus Hastenreiter, que levou os prêmios de melhor ator (Junior Brito), direção de arte e melhor filme pelo júri popular. O filme é uma comédia sobre um rapaz tentando resolver mentalmente qual a melhor maneira de abordar uma garota desconhecida numa sala de espera de um dentista. Não Falo com Estranhos faz humor com estereótipos de insegurança ligados a relacionamentos amorosos de natureza heterossexual a partir do ponto de vista masculino, com dedicada atenção para apontar as limitações desse recorte. O apelo político de Fervendo o torna, dentre os filmes mais bem produzidos da competição, a obra de ficção mais relevante da mostra de filmes baianos, porém a forma como Não Falo com Estranhos cativou o público através de uma história facilmente relacionável, com uma boa direção de elenco e criatividade para os recursos visuais à sua disposição, revela o potencial de Hastenreiter para a realização de um cinema comercial de qualidade, algo raro de ser ver em uma mostra universitária.
Além de admin/admin, a mostra contou com mais três documentários. Os mais frágeis deles, Alternância, sobre as mulheres da Escola Família Agrícola de Jaboticaba, e Colar de Pérolas, sobre o cotidiano de uma senhora idosa, falham em estabelecer um contexto mais resolvido antes de apresentar seus assuntos. Alternância lida com uma variedade maior de discursos e narrativas e consegue articular um posicionamento ideológico pela conexão dos depoimentos, por outro lado a causa das mulheres agricultoras do semiárido baiano é retratada tão mecanicamente pela estrutura tradicional do filme que até mesmo suas falas sobre suas vivências são editadas a parecerem discursos prontos, desprovidos de personalidade. Tamanha impessoalidade deixa Alternância mais próximo à sensibilidade de uma reportagem do que um filme de cinema. Impessoalidade não é o caso com CorpoStyleDanceMachine, um documentário sobre Tikal, figura local que o filme toma como um símbolo de resistência antinormatividade. O filme é uma conversa entre o diretor Ulisses Arthur e Tikal, na qual o último se recorda de sua juventude nas boates de Salvador e comenta episódios de sua cotidiana resistência LGBT negra desde aquela época. CorpoStyleDanceMachine, vencedor dos prêmios de direção e fotografia, é inventivo formalmente ao criar com música, luzes coloridas, fumaça e texto na tela de tudo o que é falado uma atmosfera muito próxima aos lyric vídeos no YouTube de artistas famosos. A estratégia do texto na tela foi comentada pelo produtor, Marvin Pereira, que estava representando o documentário no festival juntamente com a sua ficção Banana, como uma forma de facilitar o acesso do público à fala de Tikal, mas acabou se tornando também uma forma de elevar o sujeito-assunto do filme, colocando-o no mesmo lugar de importância de artistas famosos, ao mesmo tempo condicionando a maneira como o público deve enxergar Tikal e criando uma espécie de afrontamento através da forma.
Existe também Latossolo que apesar do disclaimer sobre não ser um filme de ficção é tão não ficção quanto Fargo é baseado numa história real, mas que talvez seja documentário no sentido que todo filme é um documentário de sua realização. Com imagens das paisagens rural e urbana de Luís Eduardo Magalhães, antigo Mimoso do Oeste, Latossolo (vencedor do prêmio de som) às vezes se encontra a uma narração poética de distância dos filmes mais recentes de Terrence Malick. O filme, pela sua montagem expressiva, esboça uma discussão sobre as desigualdades sociais da cidade. Latossolo encerra com corpos na lama, mas o real grande impacto do filme está em seu primeiro plano, um drone sobrevoando uma imensa plantação, um poderoso feito que empalidece todas as imagens subsequentes. Entardecer, uma co-direção de Carla Caroline, a mesma diretora de Varal, e Felipe Borges, sobre um breve momento na vida de duas pessoas que conversam enquanto apreciam a paisagem é um dos filmes menos ambiciosos em competição (estrelado pelos próprios realizadores e produzido para uma das matérias do curso de Cinema e Audiovisual da UFRB, como foi explicado na pós-sessão, quando os diretores tiveram um momento para responder as perguntas do público). No entanto, dentro dos seus cinco minutos de duração, o filme entrega pelo menos três grandiosos planos, o inicial e os dois últimos, que exploram céu, luz e sombra, tudo isso contrastando com os planos mais modestos dos personagens falando sobre as coisas ao redor. Entardecer consegue ser mais despretensioso que o menor filme da mostra competitiva – Moisés, de um minuto e meio, que o catálogo do festival acusa ser sobre a luta de um menino para conseguir água; trama essa que passou por mim completamente despercebida – e, mesmo assim, tem mais a oferecer com suas imagens do macro e do micro do que muitos outros de produção mais dedicada.
Para finalizar a cobertura, seguindo a ordem dos assuntos que me ocorrem, dois filmes com as características que eu acho mais representativas do cinema universitário, filmes que compensam uma má administração de suas intenções com uma honesta vontade de se lançar para além de suas possibilidades. É o caso de Banana, inspirado na introdução do livro Travesti: Prostituição, Sexo, Gênero e Cultura no Brasil do antropólogo Don Kulick. O filme dramatiza uma conversa entre Don e a travesti Banana, enquanto esta se monta para a noite. Existe uma clara admiração do realizador pelo texto original, mas toda a situação construída parece se perder pelo estranho comportamento da câmera que passeia pelo quarto de Banana como um olhar perdido, imprimindo muito pouco a sensação de atenção para os detalhes de alguém que iria escrever sobre o encontro mais tarde teria. Um Dia é da Vida, o Outro da Morte, uma espécie de giallo baiano situado quase inteiramente no campus de Ondina da UFBA, é o outro exemplo desse cinema admirável por suas intenções, mas com algumas peças fora do lugar. O realizador Calebe Lopes põe na tela, às vezes literalmente, todas as suas referências nesse seu exercício de gênero policial. Apesar das boas sacadas do roteiro ao brincar com os clichês do gênero (o personagem com um passado trágico, o policial que só fala em bordões, personagens que se comportam como se tivessem saído de Twin Peaks e etc.), a atmosfera calculadamente soturna se leva a sério demais, de forma que a conclusão lynchiana para a trama soaria menos como um grito desesperado de não saber fechar a história caso ela se assumisse melhor como uma paródia das obras que ela homenageia. Não existe nada mais genuinamente Cinema Universitário do que estender suas ambições de forma, estilo e experimentação ao ponto delas se voltarem contra você e o seu filme. Como estudante de cinema que já precisou, mais vezes sim do que não, de um grito desesperado para fechar suas tramas revoltosas, eu sei do que estou falando.