Por Flávio Reis
Há sempre uma grande expectativa quanto a filmes de longas metragens produzidos na Bahia.
Durante a mostra de abertura do Festival, Cachoeira foi presenteada com mais uma obra que apresenta uma Bahia sem os tantos clichês que cercam os produzidos aqui. Pra começar, em vez de focar na religiosidade negra de Salvador, como pano de fundo para algum romance com ares eurocêntricos, Abaixo a gravidade, de Edgard Navarro, foca num senhor de idade que vive e convive com o sincretismo baiano. Isso seria algo muito normal, se o filme não começasse na Chapada Diamantina e abordasse temas como uma inevitável morte por uma doença terminal.
Um dos grandes feitos do filme envolve direção de arte e fotografia: um amarelo que remete solidão, uma plantação e templo budista que causam claustrofobia, e todo um trabalho de interligar as sutilezas presentes no roteiro em situações simples, como abrir a janela de um apartamento luxuoso e dar de cara com as discrepâncias sociais da capital baiana – sim, em um dado momento, o filme atravessa do centro do estado até Salvador.
O filme foi mais além do que as cores do Pelourinho e Cidade Baixa! Ao colocar situações dramáticas em um tom sutil tão ameno, o público presente na sessão não teve problemas em rir de um morador de rua que, aos gritos e palavrões, sofria com a morte de alguns companheiros assassinados… As gargalhadas do público…
Em uma situação real poderia ter sido diferente, mas, naquele contexto, rir de um homem desdentado, que morava na rua e acabara de sofrer mais perda de amigos vítimas de assassinos passou despercebido. Foi percebido como um alívio cômico.
A construção da personagem de um homem doente, que ainda assim encontra motivação para ajudar pessoas a sua volta, que se concentra em ser alguém cada dia melhor, e que vê no próximo uma extensão de si, não se focou em um tom didático, pelo contrário: a personalidade do Seu Bené (vivido por Everaldo Pontes) deixou várias brechas para a interpretação, como, por exemplo, por que um homem tão dedicado à elevação espiritual não se comunicava com a filha?
Plantando, tratando da possessão de uma senhora ou segurando a mão de Letícia (vivida por Rita Carelli), cenas que desenvolvem do enredo e a necessidade do personagem sair da pequena Coração de Maria em direção a metrópole soteropolitana.
Abaixo a gravidade é um título no imperativo, que desdenha da lei da gravitação universal de Newton. O filme faz referência ao mitológico Ícaro, mas, no lugar das asas de cera, vemos um morador de rua tentando construir suas “asas bumerangue” que o farão voar de volta a nave espacial que o abduzira anos. O desfecho desse personagem foi uma referência do diretor a um fato ocorrido com seu irmão.
Mesmo com a inclusão de uma realidade superfantástica, na qual um asteroide desafia a lei da gravitação universal de Newton, para em frente à Terra, observa alguns acontecimentos em Salvador, e retorna a sua órbita, tal qual um viajante espacial, o filme mantém um incondicional compromisso com as sutilezas da vida, ou na clara referência ao filme Beleza americana (1999).
Ironias com a percepção das pessoas quanto ao Papai Noel e a distribuição de doces na festa de São Cosme e Damião, a sofredora classe média presente nos dramas absurdos do personagem Eugênio (vivido por Bertrand Duarte), que recebeu o apelido de My Self (não myself o termo em inglês e sim um trocadilho. O My Self representa o homem, uma classe dominante que tenta de todas as formas registrar suas dores e conquistas como legitimação frente a decadência da nossa civilização).
Entre o amarelo–solidão tão presente no filme, quebras da quarta parede e ironias com o imaginário popular quanto a exames de próstata, Abaixo a gravidade é aquele tipo de filme que dá saudade quando termina. Os 110 minutos de idas e vindas do quarto de Bené às ruas de Salvador, ou seus conflitos existenciais, são experiências gratificantes tanto em sentido estético quanto de entretenimento.
A grande crítica negativa ao filme foram as oscilações no som: em alguns momentos não dava pra entender o que o Seu Bené falava, ou complicava a dicção não muito clara do morador de rua Galego (vivido pelo saudoso ator Ramon Vane), mas nada que faça dessa obra algo menos que grandiosa.