XIII PANORAMA INTERNACIONAL COISA DE CINEMA – DIA 2

Por Matheus Leone

Os filmes da Competitiva Nacional do segundo dia do XIII Panorama Internacional Coisa de Cinema em Cachoeira parecem terem sido agrupados por suas capacidades em dar espaço às dissidências sexuais e de gênero, à relutância em se conformalizar a uma narrativa transparente e à manifestação de corpos livres (“livres” não apenas pela nudez, mas também por abranger esse elemento). Ambientado no litoral do Rio de Janeiro, Inocentes, de Douglas Soares, passa boa parte de seus 19 minutos observando homens sarados de sunga na praia. Uma narração acusmática revela mais para frente que se trata da visão objetiva de um fotógrafo que tomou para si o hábito de registrar os corpos masculinos na praia a partir de seu apartamento na orla. Soares povoa essa seção do seu filme exclusivamente com homens de beleza padrão e os filma com um preto e branco acinzentado, fazendo com que eles brilhem sob o sol como estátuas prateadas. Em seu desfecho, Inocentes revela a figura por trás do olhar, o fotógrafo fluminense Alair Gomes (1921 – 1992), uma presença física distinta aos corpos que o personagem observava.

Soares realiza um excelente filme ao submergir nos trabalhos de Alair Gomes, criando essa espécie de cinebiografia a partir da estética do artista. No entanto, essas informações não são explicitadas na narrativa, nem na programação do festival – a sinopse de Inocentes é apenas um trecho de “Inocentes do Leblon” de Carlos Drummond de Andrade, sem qualquer menção ao fotógrafo – , o filme está mais preocupado em, de certa forma, reproduzir a experiência que se tem com as fotografias de Alair Gomes do que contar uma história em um contexto evidente. Todas essas questões de proposta e intenção me vieram depois, o que Inocentes me fez pensar durante a projeção é como que a estética do filme trabalha para impedir a vulgarização dessa objetificação masculina. Se a noção de que o olhar fetichizado sobre o corpo masculino por outro homem é inerentemente respeitoso por estar se tratando de entidades “semelhantes”, João Pedro Rodrigues a teria destruído em O Corpo do Rei. No entanto, Inocentes opera mais no extremo de ser uma ode a um certo padrão de corpo masculino de forma tão exaltada que se torna um exercício falocêntrico ingênuo e tímido, principalmente quando mostra uma masturbação em primeiro plano em seus tons de cinza de muito bom gosto.

Vando vulgo Vedita, exibido em seguida, destoa da forma elegante do primeiro. Sem nenhuma preocupação em não parecer vulgar, a começar pelo título com referência a Dragon Ball Z, o filme de Andréia Pires e Leonardo Mouramateus acompanha um grupo enquanto eles descolorem o cabelo e vão à praia. O tal Vando é apenas mencionado pelos personagens que, de maneira descentralizada, vão se revelando generosamente para a câmera, às vezes em depoimentos diretos a ela. Através desse recorte, da juventude dissidente de Fortaleza, Pires e Mouramateus fazem mais do que passear junto ao grupo, como também comentam sobre a violência urbana que pessoas como eles sofrem. A forma do filme convida o público a participar dos momentos do grupo, mas se recusa a decifrá-los.

Também cifrado, só que menos interessante, foi o último filme exibido na mostra Competitiva Nacional, o longa-metragem Música para quando as luzes se apagam. Dirigido por Ismael Caneppele, corroteirista de Os famosos e os duendes da morte, o filme adapta livremente o livro homônimo de autoria do próprio Caneppele. O diretor fragmenta a narrativa ao ponto da abstração ou, simplesmente, irrelevância. No centro do filme estão uma atriz (interpretada por Júlia Lemmertz) e uma pessoa mais nova (Emelyn Fischer). Existem menções a uma possível dissidência de gênero do personagem de Emelyn, mas a questão está pulverizada dentro da montagem. O filme se preocupa em estabelecer um discurso estético de rompimento com as formas “clássicas” e consegue, mas filmes menos esquecíveis já fizeram isso e o aparente desinteresse de Música para quando as luzes se apagam em costurar algo com os seus fragmentos acaba limitando o filme a essa cosmética de Filme de Festival.

O filme mais esperado do segundo dia do Panorama em Cachoeira deve ter sido Era uma vez Brasília, de Adirley Queirós, da mostra Panorama Brasil, mas, como foi avisado pela produção no Facebook, a exibição do longa foi substituída por Antes do Fim. A mudança provocou pelo menos uma desistência de um desavisado, pelo que eu pude perceber, que foi ao lanterninha com a programação impressa em mãos e nunca mais voltou pro seu assento. O filme é o mais narrativamente “clássico” dentre os exibidos no dia, sobre um bailarino que decide cometer suicídio por se recusar a se entregar à velhice e a sua companheira, uma atriz. O bailarino é Jean-Claude Bernardet (cineasta franco-belga e um dos maiores nomes da crítica cinematográfica brasileira) e a atriz é Helena Ignez. O diretor Cristiano Burlan homenageia seus atores em um filme sobre as implicações do tempo na condição humana. É um filme de belas imagens em preto e branco, como foi o caso de Inocentes, mas todo o falatório monotemático (às vezes empostado e com referências a Camus, às vezes prosaico) sobre a eminência da morte o deixa com ares de um rascunho condensado de Vocês ainda não viram nada! e Amar, beber e cantar, os últimos filmes de Alain Resnais, que lidam melhor com o tema e com a absorção de elementos teatrais para o cinema.

Ontem o festival abriu aqui com Abaixo a gravidade de Edgard Navarro, protagonizado por um senhor impotente, enquanto que Salvador abria com o filme brasileiro mais comentado do ano no circuito de festivais de dois autores “do momento”, As boas maneiras, de Juliana Rojas e Marco Dutra. Hoje, outro filme “do momento” não foi exibido em Cachoeira, entrando no seu lugar outro que põe a velha guarda em primeiro plano. Definitivamente existe um padrão, mas pela sala que foi se esvaziando ao longo deste segundo dia do Panorama, não existe um grande interesse do público por ele.

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