Por Guilherme Sarmiento
Se existe um cineasta brasileiro que sintetiza e, de certa forma, anuncia, aquilo que hoje os críticos entendem por cinema brasileiro contemporâneo, ele é Karim Aïnouz. De Leonardo Mouramateus a Gabriel Mascaro, toda uma geração que hoje desponta no cenário cinematográfico brasileiro partiu de um conjunto de ações já encaminhadas por ele, desde o seu primeiro longa-metragem. A pertinência deste gesto imprimiu-se, a partir dessa continuidade, como um patrimônio simbólico, imaterial, linguageiro das inquietações próprias da contemporaneidade. Os impasses da figuração da masculinidade, as possibilidades sensórias de uma imagem insatisfeita com sua superfície e a vertigem ocasionada por uma identidade desterritorializada são alguns dos elementos que participam dessas palpitações. Eles dão a ver, através de uma dramaturgia muito coesa, certo torpor produzido no momento em que a matéria se contrai ou se expande quando atingida por um choque térmico. Esta contração ou expansão provocada pela mudança brusca de temperatura desloca as criaturas ficcionais de seus nichos; elas experimentam – e fazem o público experimentar – certo vazio ocasionado pela energia dispensada no processo de reconfiguração de seus corpos. Com essas sobras ou faltas, ficam momentaneamente à deriva. Na verdade, Aïnouz – e aí reside toda a sua atualidade – registra justamente um trânsito. Os corpos sabem de si, ainda são compactos, circunspectos, porém perderam toda a referência territorial e existencial. Já não se circunscrevem em uma identidade fixa.
Essas bruscas mudanças de temperatura podem ser sentidas quando, por exemplo, comparamos duas obras localizadas nos extremos de sua filmografia. Parecem plantadas em dois hemisférios. Quando observadas uma ao lado da outra podemos perceber de forma bastante ilustrativa como estas dilatações e contrações são sentidas não somente quando ilhamos sua dramaturgia – analisaremos individualmente algumas obras, mais adiante. Elas se presentificam em uma temporalidade continuada, produzindo pulsações na justaposição de topografias extemporâneas e singulares. Enquanto em Madame satã, seu primeiro longa-metragem, enquadramentos epidérmicos desfiguram o entorno, em Praia do futuro, seu último trabalho, realizado mais de dez anos depois, os ambientes abertos proporcionam o respiro do horizonte ou o vazamento de generosas porções de espacialidade. A representação do espaço se contrai ou se expande, conforme passamos de uma obra a outra, resultando, dentro de um percurso de afirmações estilísticas, em batimentos de um organismo ainda em vias de se recompor, após o início da viagem. Além da têmpera promovida pelo antagonismo extremo dos enquadramentos, as palhetas de cores presentes nos dois filmes provocam sensações térmicas diversas, gerando uma constante descompressão na passagem do quente para o frio. A opção fotográfica de Walter Carvalho tem algo de um úmido mormaço enquanto que a secura gélida impressa por Ali Okay Gozkaia à paisagem berlinense envolve o enlace dos amantes e, por vezes, deixa-se afastar pelo contato afetuoso da pele, como se a ambientação interna ao filme reduzisse esses choques a própria microdinâmica de sua fabulação.
Esses “choques térmicos” notados ao comparar estas duas obras distantes entre si, considerando uma carreira fílmica já sedimentada, portanto, constitui a base mesma de construção da dramaturgia de Karin Aïnouz. São percursos possíveis dentro de sua geografia criativa. Isoladamente, Madame satã, por exemplo, já poderia sugerir com suas ondas intercaladas de brutalidade e languidez belos gráficos coloridos, indicativos de um design narrativo onde pequenas e significativas explosões avermelham e elevam traçados, para depois mergulhar sua alma em um azulado de lantejoulas. Lázaro Ramos constrói com quantidades de recursos um personagem cuja violência transborda a fixidez do quadro, porém, o retraimento para o aconchego permite sua permanência como o centro das atenções. Na verdade, os rompantes de Satã serviram para que as inquietações do cineasta tomassem forma e indicassem um perfil criativo disposto a exprimir angústias bem contemporâneas. As polarizações indicadas em seus filmes de nada servem para converter as personagens a um dos extremos ou sequer referendam uma imagem ambígua, ou mesmo opaca, de alguém que se perde entre um polo e outro ou simplesmente se deixa conduzir sem motivação alguma. Aqui há uma recusa expressa e bem calculada de não cumular o ente ficcional com questões dialéticas, de figurar uma síntese como resolução de um embate. Os personagens se mantém íntegros em seu transporte. Sua condição de passageiros permite que suspendam momentaneamente sua identidade e, deslocados, vivam plenamente esta experiência desestabilizadora.
Então, quando Karin Ainouz dispõe dois eixos para com eles fazer oscilar o temperamento (temperaturas) de suas criaturas ficcionais, não intenciona definir ou apontar propriamente uma crise, mas eliminar os contornos de uma identidade ao localizá-la em um trânsito qualquer. E quando falamos em “identidade” falamos tanto de um corpo forjado em um território (nacionalidade, regionalidade), como também captado por um aparato (imagem) como definido por seu sentido biológico (sexo). Nos filmes do diretor cearense, todas essas identidades restam suspensas em algum grau. Elas não chegam a se manifestar como ruínas, porém, o fato de não estarem destroçadas pouco serve para as livrar de um sentido de melancolia própria ao transitório.
Peguemos Donato, protagonista de Praia do futuro. Nele se conjugam dois trânsitos que definem sua personalidade passageira. O primeiro deles tem relação com o deslocamento territorial que o jogou em um lugar intermediário entre o Brasil (calor) e Berlim (frio). Sua paixão vivida plenamente em terras alemãs não conseguiu apagar as lembranças e os vínculos com o passado, especialmente os laços afetivos com seu irmão mais novo, e, por isso, sua passagem ainda não fora concluída. Nesse sentido, Donato ainda suporta em si o peso de uma travessia. Algo parecido ocorre com o narrador em off de Viajo porque preciso, volto porque te amo. Suas andanças pelo sertão, a princípio, objetivam mapear a construção das obras de transposição do rio São Francisco. Mas o que seria uma viajem de trabalho aos poucos se perde nas elucubrações de ordem existencial e o protagonista, então, deixa-se levar por uma andança cujo resultado o tornará um pária. Já não tem pra onde voltar. A opção de nunca mostrá-lo fisicamente denota um sentido fantasmático e ajuda a impregnar as imagens dessa melancolia própria do efêmero, do transitório. Sem atravessar fronteiras entre países, Abismo prateado e Céu de Suely também deflagram com a errância as potências de um ser descentralizado. As duas protagonistas, após serem abandonadas pelos maridos, transformam a cidade onde residem/visitam – Rio de Janeiro/Iguatu – nesse espaço fantasmagórico, nesse lugar intermediário, ao qual suas identidades se conjugam para com eles se desterritorializarem. Nada mais expressivo desta desterritorialização do que um aeroporto vazio ou uma cidade sertaneja, de beira de estrada, ambas imagens paradigmáticas das duas obras.
Vale a pena voltar agora a Donato e observar, a partir dele, outro artifício dramatúrgico que põe em cheque a fixação de uma identidade. Como eu disse alguns parágrafos atrás, o personagem conjuga em si algumas qualidades que o tornam representativo de vários trânsitos. Além de ser um imigrante, o herói de Praia do futuro não se encaixa nos padrões de afetividade heteronormativos. Esta afetividade, entretanto, não influencia sua conduta nem a autoimagem masculina de si. Os territórios simbólicos entre os quais ele se desloca não o reduzem a uma corporalidade híbrida, ou indefinida, pois nos filmes de Aïnouz a narrativa da crise ocupa um espaço muito pequeno ou quase nenhum. Temos aqui um personagem satisfeito com seu corpo. O mesmo ocorre com Madame Satã: o fato de ser considerado um malandro, figuração máxima da masculinidade carioca, convive de forma integral com o seu desejo homoerótico. Essa integridade no trânsito permite não somente a elaboração de personagens potentes, vai além disso, pois torna a desfiguração identitária como parte da condição humana contemporânea e não simplesmente um percurso crítico ou de natureza psicológica.
Por fim, para finalizar esta análise, gostaria de fazer um pequeno apontamento com relação a outro deslocamento – talvez o menos perceptível e mais significativo– que caracteriza a obra de Aïnouz. Pois o cineasta se revela em uma época a partir da qual a superfície da imagem, seus limites expressivos, frustram os espectadores e anunciam possibilidades de uma expansão em suas qualidades sensórias ainda em vias de se concluir. Sem abrir mão de um artesanato ainda devedor do aparato cinematográfico do século XX, Karin Aïnouz, através de seu olhar, mostra enquadramentos íntegros no qual a motricidade e a sensorialidade afetam frontalmente o público. Ou seja, as próprias imagens captadas por ele encontram-se em trânsito, almejam uma tridimensionalidade sugerida por uma estilística cuja pulsação é fruto de uma passagem. É exatamente essa brusca mudança de temperatura sentida em seus filmes que nos permite acompanhar os deslocamentos dos personagens. Do calor das praias cearenses ao inverno de Berlim, deslocar-se é, antes de mais nada, ser surpreendido pelo clima. Não por acaso que um dos elementos mais constantes em sua filmografia seja a água. Envolvendo os corpos, pode ser cálida ou gélida, delicada ou turbulenta. E, como conteúdo simbólico, representa as transformações constantes, íntimas, garantidas pelo fluxo contínuo da natureza.
Guilherme Sarmiento é Professor, diretor e roteirista de cinema. Roteirizou os filmes Sudoeste (2011) e Tropykaos(2015), e dirigiu Diário da Greve. Edita a Revista Cinecachoeira.