Matheus Leone
Em seu primeiro filme, o documentário curta-metragem Seams, de 1992, Karim Aïnouz escreve uma carta de intenções para o cinema. Um híbrido de entrevistas com as matriarcas da sua família (sua avó e as quatro irmãs dela) com imagens de arquivo da década de 1930 e uma encenação de uma mulher abandonada pelo marido realizada numa instalação em Nova York – o título, “costuras”, em português, uma alusão tanto a profissão da avó quanto a montagem. Através da história de sua família, Aïnouz discursa sobre o machismo na sociedade brasileira, principalmente a nordestina, região onde nasceu, e a ausência das figuras masculinas, a de seu pai e a do próprio Karim que, na época, morava nos Estados Unidos e se comunicava remotamente com as personagens principais de seu filme. Pelo que reúne em si, é possível dizer que Seams é a obra mais importante na construção de Karim Aïnouz como autor e que tudo realizado posteriormente em seus longas é um desdobramento de algum fragmento desse seu primeiro curta.
Um desses fragmentos, talvez o mais expressivo em sua filmografia, é a temática do abandono. Com a exceção de Madame Satã, as histórias dos filmes de Aïnouz envolvem um processo de deslocamento espacial em função de algum tipo de busca pessoal, geralmente motivada pela súbita partida de alguém muito caro ao personagem em questão, acionando nela ou nele um estado de inquietação que parece agir como a única forma que essas pessoas têm de lidar com o abandono – a busca por algo novo.
Em O Céu de Suely, seu segundo longa, o realizador resgata pela primeira vez a questão do abandono patriarcal visto em Seams. Nele, Hermila (Hermila Guedes) volta a Iguatu, interior do Ceará, cidade onde nasceu, após morar em São Paulo, onde conheceu Mateus e teve um filho com ele que atende pelo nome do pai. A migração começa em tom de esperança, tal como indicam as imagens felizes de Hermila em super-8 na abertura do filme, enquanto Mateus ainda sustentava os planos de também ir para o Ceará constituir um lar com Hermila e o filho. Quando se revela que Mateus não mais deseja viver com Hermila, se é que ele realmente teve essa intenção, as coisas radicalmente mudam de perspectiva para ela: como mãe solteira e desempregada, a outrora esperançosa Hermila passa a viver em condições menos que ideais para uma mulher numa cidade do interior do Nordeste. O deslocamento emocional que Hermila sente em estar presa à realidade de Iguatu em desamparo é o agente da mudança em sua vida e, a partir disso, sob o pseudônimo “Suely”, ela decide rifar o seu corpo para pagar uma passagem de ônibus para bem longe daquele lugar.
Karim Aïnouz carrega de seu primeiro longa, Madame Satã para O Céu de Suely, a qualidade de centralizar um pária social dentro de um contexto espacial muito bem desenvolvido. Essa façanha se dá pela quantidade de vida interna que é percebida nos personagens ao redor de Hermila, ainda que ela seja o assunto principal de todas as cenas. A fotografia de Walter Carvalho, muito referente aos trabalhos de Agnès Godard com a realizadora Claire Denis, se interessa mais em acompanhar de perto a dinâmica corporal dos atores do que em observar os espaços, portanto, é através da atuação do elenco de apoio que enxergamos a Iguatu de O Céu de Suely – o mundo externo que se opõe ao interior de Hermila. Karim Aïnouz apresenta os personagens da tia, da avó, do namorado da adolescência, entre outros, como células que compõem o tecido da cidade, ao mesmo tempo que complexos o suficiente para que não sejam apenas a manifestação corpórea das dificuldades que a protagonista enfrenta em sua cidade natal.
A relação entre a presença do ser e o espaço que ele ocupa em O Céu de Suely – onde o que é externalizado pelos personagens traduz a ideia de lugar – se dá de forma naturalista; mas quando Aïnouz resolve contar mais uma vez a história de uma mulher subitamente abandonada por seu parceiro, ele o faz radicalmente diferente. O Abismo prateado (2011) é o quarto longa do realizador e inaugura uma espécie de segunda fase dentro da filmografia dele. Neste filme (e em Praia do futuro, de três anos depois), Aïnouz opera com as noções de vazio e como isso pode ser impresso nas imagens como forma de traduzir o sentimento de abandono. O que havia de concreto em O Céu de Suely, aqui existe como abstrato – a riqueza em contexto substituída pela busca de um.
O Abismo prateado traz Karim Aïnouz de volta ao Rio de Janeiro, também cenário de seu primeiro filme, mas com um olhar e intenções perceptivelmente diferentes para o lugar. A câmera continua seguindo a protagonista bem de perto, mas dessa vez o que se vê ao redor parecem mais manifestações do estado emocional dela do que acontecimentos de natureza independente, como em O Céu de Suely. A personagem em questão é Violeta (Alessandra Negrini), uma dentista casada com Djalma (Otto Jr.), com quem tem um filho adolescente. De maneira semelhante a O Céu de Suely, Violeta fica sabendo que foi abandonada pelo marido numa ligação de telefone, mas diferente da história de Hermila O Abismo prateado não é sobre o que vem depois e sim sobre estar perdida no agora.
Esse estado se expressa nos vazios deixados pelas ausências de uma motivação clara de Djalma ter ido embora e de interações genuínas entre Violeta e qualquer outra pessoa desde a partida do marido até quase o fim do filme. Uma vez que diálogos não são possíveis devido ao esvaziamento em torno de Violeta, a construção da imagem é potencializada, assim como a importância da atuação de Alessandra Negrini, que sustenta olhares em longos planos e interações consigo mesma no espelho. Trata-se de uma abordagem mais difícil de se penetrar do que a estratégia que Karim Aïnouz apresentou em seus dois primeiros longas – o belíssimo experimento formal neorrealista Viajo porque preciso, volto porque te amo, codirigido com Marcelo Gomes, representaria aqui uma espécie de período de transição para outras narrativas não tradicionais –, vivendo ou morrendo na intenção de capturar a empatia do interlocutor mesmo sem garantir explicações sobre como fomos parar ali.