ENTREVISTA COM KARIM AÏNOUZ

Entrevistar Karim Aïnouz não foi fácil. Não por conta de uma personalidade reclusa e avessa a perguntas indiscretas – muito pelo contrário. Desde que entramos em contato com ele através de sua produtora Joanna Fatorelli Karim se mostrou generoso com nossa proposta de homenageá-lo em um pequeno dossiê. Porém, a agenda do diretor e a diferença do fuso horário entre Berlim e Brasil fizeram com que adiássemos inumeráveis vezes nosso papo, até que o fato se tornou uma piada interna, quase um mote beckttiano entre nós. A espera, entretanto, valeu muito a pena. Aqui vemos brotar de sua voz todas as questões pessoais e artísticas que tornam sua obra tão peculiar: a relação com o pai viajante, o inconformismo de uma geração e a aposta em personagens fortes e empáticos. Durante mais de uma hora de conversa via Skype nada passou em brancas nuvens. É bom lembrar que a entrevista agora disponibilizada foi fruto de uma mostra realizada pela revista Cinecachoeira no primeiro semestre de 2017, onde alunos do curso de cinema tiveram a oportunidade de assistir aos principais longas e curtas do diretor cearense e, depois dessa imersão, produzir as questões aqui apresentadas. Agradecido a todos os envolvidos! E Boa leitura!

Transcrição Lucas Bonillo

Cinecachoeira: A primeira pergunta que eu faço pra você tem a ver com tema do deslocamento, algo que torna sua obra bem representativa do cinema contemporâneo. Seus personagens são seres deslocados, tanto no sentido geográfico, estão sempre em outro lugar, como no sentido de uma identidade fluída, que não encontra uma ancoragem que a reduza a um objeto classificável. De que maneira sua formação familiar, artística, foi importante para que essa abordagem se impusesse como horizonte criativo possível?

Karim Aïnouz: É muito engraçado, porque, na verdade, meu processo artístico, meu processo como diretor, não foi nada calculado; eu nunca pensei em fazer cinema quando pequeno. Minha mãe era professora universitária, e fazer cinema era caro, financeiramente impossível. Então nunca fui daqueles caras que tinham uma câmera super 8. Mas havia algo muito instigante na minha casa. Eu já nasci todo torto, quer dizer, numa família que não tinha a figura paterna, eram somente mulheres: minha mãe, minha avó e cinco tias. Eu sou filho de um estrangeiro que nunca apareceu. Meu pai casou com minha mãe, eu nasci, e ele sumiu no mundo. Isto me fez crescer em um ambiente familiar muito atípico para uma família classe média no Ceará, com menos hierarquia, um lugar muito mais vertical do que horizontal. E eu ainda tinha esse nome difícil das pessoas entenderem: Karim, Carlinhos, Clarinho, Crarinho, Kadinho, uma loucuraFora a questão da identidade sexual que já me colocava em outro lugar. Então, eu me lembro que eu sempre queria ir embora, porque ali pra mim estava complicado, o negócio não tava fácil. E, aliás, ter um pai que não era brasileiro gerava essa curiosidade de descobrir o mundo, os lugares que não eram os meus lugares, os lugares que talvez meu pai vivesse. Eu nunca sabia o seu paradeiro: ele me escrevia de Hong Kong, me escrevia de Genebra, me escrevia da China. Trabalhava como engenheiro. Participou do primeiro governo revolucionário na Argélia, sempre transitando pelos países comunistas, construindo em seu entorno uma aura de mistério. Então eu acho que o deslocamento está quase no meu DNA, literalmente falando.

Com relação as personagens de meus filmes, eles estão sempre no lugar de desconforto, mas não por isso no lugar de vítimas. Porque na minha família eu tinha exemplos de mulheres fortes que resistiram ao abandono, à solidão, à violência, à traição dos seus maridos. Então, esse deslocamento nunca era a condição do desempoderado. Os filmes foram vindo muito intuitivamente, sempre sobre personagens com os quais eu tinha alguma relação de afinidade biográfica: uma mãe que foi embora e deixou o filho, ou um personagem como o do Madame Satã, sua raiva, uma emoção que eu sempre sentia muito, mas que no Brasil eu não podia dar vazão por causa do mito da cordialidade, da negociação. Então, Madame satã é o fruto dos anos em que eu vivi em Nova York, e dos amigos que eu fiz lá, que eram portorriquenhos, negros, pessoas, assim, “dont fuck with me, otherwise i’m gonna fuck you”, entendeu? Algo raivoso típico dos americanos. Meus personagens estão em movimento, mas não em um movimento necessariamente geográfico. Tem algo a ver com uma procura, que também parte de uma experiência íntima e pessoal.

C. Você pega, por exemplo, o Abismo prateado, onde a protagonista se desloca pela cidade do Rio, numa espécie de limbo existencial e afetivo…

K. É um pouco daquela coisa da ficção científica, você não viaja só no espaço, mas também pode viajar no tempo. Então são deslocamentos que tem a ver com isso também. Eu acho que o próprio Madame Satã é como se fosse um personagem descolado do seu tempo. Para que ele coubesse no tempo dele tinha que sair quebrando porta, arrebentando coisas. Deslocamento aqui no sentido de não pertencer, do que está à margem, do que está fora, do que não está no centro.

C. Queria falar um pouco sobre sua obra documental. Ela possui sempre uma narrativa em off, dando grande ênfase ao texto literário. Isso é interessante quando a gente percebe que em suas ficções os diálogos são bem fluidos e naturais, quase antiliterários. Essa é uma forma de questionar os limites impostos pelos gêneros cinematográficos? Como você vê essa divisão entre ficção e documentário?

K. Eu acho que os documentários que fiz não podem ser considerados documentários puros, duros, no sentido da captura. Não acredito muito nessa coisa de registro do real, o cinema é muito mediado. Como eu disse, eu não fui um cara treinado para fazer cinema, então o ato de filmar sempre foi algo muito intuitivo. Se eu aprender a fazer, os filmes vão ficar chatos, pois pra mim a filmagem implica sempre um princípio de descoberta. Então, por exemplo, quando eu me lembro do meu primeiro filme, Seams(1993), eu o vejo mais como um trabalho de pesquisa, como um álbum de família. Havia uma vontade de falar sobre questões que me incomodavam naquele momento, de eu me colocar hereditariamente. Ele já misturava documentário e ficção, mas sem se dar conta disso. Quando Viajo porque preciso, volto porque te amo(2009) entrou em Veneza, discutiram sobre se era documentário ou ficção, gerou um debate muito grande em torno dessa questão, que para mim não gera nada de produtivo. O cinema tem que capturar, ou a alma humana, ou algo que te surpreenda. Ou ele tem que te transformar, ou ele tem que te assombrar, entendeu? Prefiro pensar em contaminação do real pela ficção e vice e versa.

Quando eu estou fazendo o elenco, um casting de um filme, eu não me interesso muito pelos atores neutros, com uma latitude de interpretação gigante. Uma das atrizes americanas que eu mais acho sem graça é a Meryl Streep, porque ela pode fazer tudo, uma personagem rica, pobre, chique, porém interpreta todos elas com certa neutralidade. Ela tenta o tempo inteiro apagar o que ela é. Eu estou falando isso pra voltar para a questão do documentário, porque quando eu escolho um ator, eu estou escolhendo também uma pessoa. Não pretendo apagar sua individualidade, mas ressaltar o que o ser humano é e sequestrar o que ele tem pro personagem. E o mesmo procedimento me interessa com o documentário, e dessa forma as coisas se misturam sem que se note essa mútua contaminação de forma frontal em meus filmes.

C. Ao acompanharmos as suas obras em ordem cronológica, percebemos a constância temática das narrativas, filmes com transições abordando o masculino, o desamparo, o feminismo e o machismo. Mas também uma clara mudança nos interesses formais e temáticos. Seus primeiros longas tinham uma intenção maior em centralizar os protagonistas tangíveis, já os seus dois últimos, o Abismo Prateado e o Praia, parecem mais focados no mundo interno dos protagonistas. Como você entende essa mudança no seu cinema?

K. Cara, eu tendo a concordar mais ou menos com isso. Madame Satã(2002) é um gesto selvagem, porque eu estudei tanto o filme, eu fazia tanta ideia de quais eram os planos, de quais eram as lentes que eu ia usar, mas quando comecei a filmar joguei tudo numa fogueira e parti para uma direção que se aproximasse mais da sensação do personagem. Tinha uma urgência que precisava ser colocada em primeiro plano. O céu de Suely(2006) foi diferente, porque tinha uma delicadeza, aproximar-se da pele daquela menina com muito mais suavidade.

Cada filme é um documento do seu tempo. Pra mim o Madame Satã é um filme que foi concebido em 94 e filmado em 2001. Veio ao mundo cheio de raiva: a raiva do personagem, a raiva de eu estar num país aonde eu jamais me via fazendo cinema, tanto que eu fui embora do Brasil porque não tinha nenhum cineasta que não era de família rica, eu e talvez mais dois que não tinham grana ali. O ceu de Suely representa o começo da Era Lula, e aí me interessava muito falar daqueles nordestinos que foram pra São Paulo e retornaram depois. Eu acho que o Brasil em que eu filmei Madame satã e O céu de Suely era muito diferente do Brasil do Praia do futuro(2014) e do Abismo prateado(2011), que é muito diferente do Brasil de agora.

C. Você tocou num assunto muito importante, que tem a ver com a pergunta seguinte. Que é a relação do cinema com a política. Seus filmes possuem um aspecto politico muito forte, ao colocar em primeiro plano personagens a margem da sociedade, mas sua abordagem parece apontar para questões mais individuais e apostar no afeto como forma de aglutinar as pessoas. Como reconciliar a política com as pautas coletivas? Você acredita na arte como motriz de uma ruptura revolucionária com o passado?

K. Acredito demais, caso contrário eu não estava vivo, acredito muito. Minha tese de mestrado foi intitulada Poethycs and Politics, poética e política, não por outro motivo. E eu me lembro que na época estava fascinado por um coletivo na Inglaterra chamado Black Audio Film Collective, e tinha um outro também, Sankofa Film and Video Collective, composto por cineastas filhos de imigrantes vindos do Caribe, da África, da Índia. Esses dois coletivos mudaram minha vida, pois aliavam coletividade e prática política. Realizavam filmes muito impressionantes: pela primeira vez os negros tinham voz no cinema inglês. Então, tinha a coisa do grito, mas também uma coisa muito específica do jeito como eles falavam, a linguagem das ruas, que me atraiu. A minha monografia de mestrado abordava um documentário meio ficção chamado Handsworth songs(1986), de um diretor incrível chamado John Akomfrah, cujos pais eram de Gana, mas foi criado na Inglaterra, e eu comparava muito Handsworth songs com o filme do Alberto Cavalcanti, alguma coisa em torno do sistema de entrega de cartas, filmado de forma simples e poética.

Para mim, o motor da história é o personagem, sempre apostei nisso como uma arma politica. Apostei sempre na potência do personagem como uma força transformadora. Pra mim nada foi fácil: quando você é viado, por exemplo, não tem essa, você está sempre com a guarda fechada, pode levar um coió, você está na guerra todo dia desde o momento em que acorda. Então quando eu falo que viver é um ato político, é no sentido de que o tempo todo você será desafiado pelas situações cotidianas. O cinema pra mim é uma maneira de enfrentamento. Quando fiz O céu de Suely, diretoras mulheres eram uma meia dúzia, e filmes com personagens femininos eram quase nenhum. Quando você coloca na tela um personagem sub-representado, dá uma voz, dá uma vida, dá um cheiro, força, músculo, desejo, vontade, isso é um ato politico, porque torna visível o que normalmente é invisível. Então sempre que eu faço qualquer filme, que eu conto qualquer história, eu penso sobretudo no personagem. Me vem sempre na cabeça a necessidade de falar desse cara – é necessário contar essa história? Eu até brinco dizendo que ecologicamente o cinema é um desastre. É dinheiro, é petróleo, é voo, é câmera, é mecânica, é química, então pra se começar a filmar tem que ser algo que valha muito a pena ser filmado.

Quando eu fiz o Madame Satã uma das coisas que eu queria muito era que as pessoas sentissem o cheiro do personagem. Eu achava que era importante se criar um mito em torno dele, já que o cinema é uma maravilhosa fábrica de mitos, por ser o lugar do mistério, do assombramento, do que é maior do que a vida. Eu acho que na hora que você consegue de alguma maneira criar empatia, uma aproximação, com quem, a princípio, não tem nenhuma relação com você, isso se torna um ato politico muito forte. E é claro que a palavra afeto aqui tem muito a ver com empatia. Como uma mulher de classe média, dona de casa, vai empatizar com aquele preto, homossexual e marginal? A ponte para esse mecanismo funcionar chama-se afeto. Claro que você tem estranhamento, choque, trauma dentro desses mecanismos de identificação com os personagens. Mas é muito impressionante o que o cinema pode fazer. É uma arena muito fudida, que precisa ser ocupada com muita violência, com muita potência e com muito amor. Mas ao mesmo tempo abre-se para que se imagine coisas que não existem e, consequentemente, se aproxima também de um exercício utópico.

C. Como foi sua participação no primeiro longa do Todd Haynes e de que maneira o cinema denominado new queer foi definidor para sua obra posterior?

K. Fundamental, vou te contar essa história, foi foda. Na verdade é mais do que isso. Como eu morei em Nova York, eu vi muito cinema experimental e fui contagiado por ele. Fazia parte de um coletivo que chamava Millenium, quando eu vi um filme do Todd, que é o primeiro filme dele, Superstar – the Karen Carpenter History(1987), todo feito com bonecas Barbies. Era sobre anorexia, porque a Karem Karpenter morreu de uma anorexia nervosa, por causa de uma competição com o irmão e tal. É um filme superfeminista, sobre uma cantora pop por quem ninguém dava nada, apesar de ser deslumbrante. Eu sai tremendo do cinema, pensei “velho também posso, se esse cara fez esse negócio com uma boneca eu posso também”, porque pra mim a dificuldade toda de se fazer cinema estava na falta de dinheiro. Tomei coragem e fui bater na porta do diretor, quando Todd produzia seu primeiro longa, Poison (1991). Eu me ofereci para trabalhar, sem escolher função, e aí, evidentemente, ele mandou eu limpar o lixo do escritório. Na primeira semana eu limpei o lixo muito bem, melhor do que ninguém jamais limpou. Na segunda semana eu já fazia assistência de direção. Estar em Nova York naquele momento foi muito foda de bom, porque, na verdade, bastava bater na porta de alguém que ela se abria, e eu tive muita sorte de bater na porta certa. A época também foi efervescente pelas razões erradas, pois em 1989 as pessoas morriam de AIDS, era uma merda, um negócio desesperador. Isso tudo produzia uma raiva, uma vontade de se manter vivo, entendeu?, um ajudando o outro. Eu trabalhei com Todd durante três anos. Depois eu segui com a produtora dele, Christine Vachon, e pra minha formação foi fundamental porque não tinha grana pra fazer escola de cinema. Jamais teria feito cinema se tivesse ficado Brasil.

C. Só pra terminar… É o seguinte, queria que você falasse mais da cena do cinema contemporâneo brasileira, se você acompanha. Qual é a sua relação com os cineastas de sua geração.

K. Eu prefiro falar talvez de um folego geracional, assim, partindo de 2002, quando Ana Muylaerte, Claudio Assis, e outros diretores brasileiros contemporâneos surgem espalhados pelo Brasil. Eu acho que a nossa geração foi a que queimou a floresta e depois de alguns anos possibilitou uma reflorestagem com uma terra melhor. A gente tava gritando sem saber gritar, ao mesmo tempo com necessidade de gritar. Você tem um paulista, um pernambucano, um cearense… Porque o Rio de Janeiro sempre produziu em mim um ódio, não é que eu não goste, o Rio de Janeiro pra mim é o que os americanos são pro Brasil. Eu cresci no Ceará falando carioca, eu tinha que saber onde é que a pessoa comprava por causa da porra da novela. Então, naquele momento, o cinema brasileiro era carioca, e aquilo foi me dando um arrepio… A gente existe, a gente pode fazer cinema, você não precisava ser Joaquim Pedro de Andrade, com todo respeito, você não precisava ser do Rio, da zona sul… Essa abertura foi uma conquista da minha geração. Nós não éramos cineastas argentinos, onde todo mundo foi no cinema, estudou na escola, aprendeu a contar as histórias, tínhamos um lado meio desbravador, selvagem nesse momento do cinema brasileiro. O que a gente chama de retomada, era uma reconquista, uma explosão assim que veio, que foi muito animadora.

 

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