Por Felipe Bragança
Karim, meu amigo
Nunca acreditei muito no cinema. Era um encantamento sem carne, desses que se admira mas que tem pouco peso, pouco sangue, mais beleza do que verdade. Eu acreditava mais nas pessoas, na literatura, na música e no silêncio. Foi no encontro com alguns filmes e com alguns cineastas que isso começou a mudar. O que era encantamento para fora começou a se tornar encantamento desde dentro. Parar de pensar no cinema como um objeto externo mas como um pedaço do corpo criativo humano. Tinha lá meus 23 anos.
Com você, com seu cinema, com suas pulsões criativas, naquele sertão onde inventamos O CÉU DE SUELY comecei a acreditar que o cinema podia atravessar isso tudo e ter como centro não a câmera, mas as pessoas, os personagens, o perigo, a vontade de vida. E que isto não era negar a máquina, não era negar o estilo da narrativa e todo o circo maquinal do cinema, não era fazer um cinema sem cinema, mas era querer um cinema cujo eixo de construção de sentido fosse o peito de nossos personagens, esse território cinematográfico gigantesco. Um cinema onde a máquina estivesse curvada ao coração.
Quando caminhávamos por Iguatu, a pequena cidade onde filmamos no interior do Ceará, lembro de você falando que era preciso encontrar ao mesmo tempo um estilo oxigenado para se filmar aquele sertão, mas também que estivesse muito conectado com o jeito, o tempo, o ritmo e o lugar de imaginação daquelas pessoas. Era preciso encontrar a perfeição e a imperfeição de tudo. A perfeição e a imperfeição de cada personagem.
O cinema me parecia um pouco isto pela primeira vez: esse amálgama inexplicável de uma engrenagem perfeita com personagens perfeitos. Uma dança onde os diálogos soariam como música. Foi ali no interior do Ceará que percebi que eu gostava, e ainda gosto, de escrever e pensar os diálogos como música. Não por que seja uma fórmula para melhores ou piores diálogos, mas porque quando os diálogos são música, eu acredito neles. E se as palavras são música, são sons, e vem pelas vibrações do ar e da terra, era preciso em cada lugar encontrar então a forma daquele lugar vibrar. Aquele sertão do Ceará. A forma dele vibrar e a forma dele estar cansado.
Perto de você eu vi o cinema como essa harmonia entre vibrações e cansaços, entre engrenagem e doença, entre o céu imenso e o menor dos gestos. Depois em ALICE e PRAIA DO FUTURO, continuamos esse mergulho no mistério desses imensos paradoxos imanentes das cidades e pessoas.
São Paulo, Fortaleza, Berlin. Alice, Donato, Ayrton. Territórios intermináveis de gestos, segredos e pulsões que o cinema faz atualizar na tela incessantemente, procurando sombras e luzes dessa incompletude que é abraçar o gesto humano e suas imaginações. Em tempos onde cada vez mais a truculência é dona das verdades dos jornais, onde a truculência é rainha das discussões e argumentações, onde as pessoas são compartimentadas em identidades ferramentadas pelo capitalismo tardio, e onde até o cinema flerta com estratégias didáticas de compartimentação das identidades e do sentido do que é político e humano; nesses tempos de medos e ameaças, um cinema que acredita no mistério, no afeto, no encantamento absoluto diante de seus personagens, perfeitos, infinitos e com doenças maravilhosas, é um cinema de sol e alívio.
Segue então, meu amigo, o teu cinema combativo mas cheio de mistérios, ideologicamente libertário mas cheio de contradições, lógico em suas ideias mas mergulhado na loucura do coração humano. Um cinema que não nos resolve o mundo, mas nos convida a fazer parte dele, deste mundo, errado e torto, onde vivemos e do qual o cinema é só uma faísca de encontros e rupturas maravilhosos.
Nada mais. Nada menos. Deixo um beijo,
Felipe
Felipe Bragança é diretor e roteirista de cinema. Roteirizou O Céu de Suely, Praia do Futuro e também a série Alice, dirigidos por Karin Aïnouz. Também foi assistente de direção de O céu de Suely.