Por Flávio reis
Para quem acha que a série Mr. Robot é uma falácia e um emaranhado complexo de teorias conspiratórias sem nexo, que servem apenas para amedronta usuários da internet, assistir ao documentário RISK (2016) – documentário / 97 minutos – Praxis Films / direção: Laura Poitras, pode mudar a visão de muita gente a respeito das liberdades individuais na internet.
O filme apresenta uma Londres iluminada e pouco chuvosa, cenários espaçosos e com uma leveza tão contrastante com a história do fundador do Wikileaks. O aspirante a famoso, que aparece ligando para Hillary Clinton, abrindo uma garrafa com a boca ou falando sobre a necessidade de uma internet livre, aos poucos contrasta com a figura obscura que o filme vai revelando.
Em alguns momentos, o filme parece se render a ficção: tomadas longas de paisagens ou a longa cena da fuga de Assenge numa bicicleta, são traços de edição e montagem que beiram ao afã de Hollywood por uma perfeição estética, relegando a narrativa central a uma figuração inócua. O grande exemplo foi o tratamento dado a também ativista do Wikileaks Sarah Harrison, que mais parece uma cuidadora de Assenge do que um personagem importante na sequência de vazamentos do Wikileaks.
Julian Assenge e o seu site/cibermovimento Wikileaks tornaram públicas as atrocidades cometidas pelo governo dos EUA durante a guerra do Afeganistão, e, de fato, tornou a si mesmo e a seus colaboradores alvos da ira de diversos países. Não é possível negar o estrago produzido pela avalanche de informações secretas colocadas num site na surface web, bem como a repercussão midiática em torno da veracidade dos documentos.
Outra figura da trama, Jacob Applebaum, é apresentado ensinando como utilizar a rede TOR (The Onion Router), um navegador que mascara a identidade do usuário, dando-lhe um certo grau de anonimato. Applebaum acredita que a segurança do tráfico de informações deve ser um direito acima de ideologias políticas, e passa boa parte do filme disseminando essa ideologia.
Todo o conceito de conspiração mundial em torno de supressão de direitos humanos básicos não condiz com a atmosfera clean do filme. A iluminação parece tender para uma tentativa de humanizar o pouco expressivo Assenge e o nada simpático Applebaum. Em dados momentos, a luz de ataque e o contra-luz tornam Assenge uma imagem messiânica, um consolador profeta de novos tempos.
Nem mesmo a participação da cantora e atriz Lady Gaga (sim, a cantora conseguiu acesso a embaixada da Venezuela em Londres como quem vai a feira comprar batatas), fazendo perguntas aquém de toda a atmosfera criada pelo filme sobre a figura de Assenge. Ao responder com rispidez a cantora, Assenge apenas confirma uma falta de sintonia entre o que prega e o que demonstra. A cena se desenrola para uma tragédia total, quando a cantora pergunta para Assenge como ele se sente, e um vitimismo disfarçado de modéstia se revela quando ele responde “eu não ligo para como eu me sinto”.
Em relação a grande controvérsia em torno do trabalho de Applebaum, no documentário, foi até que ponto o anonimato do usuário através da rede TOR não é um facilitador de crimes cibernéticos ou guarida para terroristas. A rede TOR é utilizada para acesso a deepweb. Isso justificaria a apreensão de governos do mundo quanto a utilização da internet por terroristas? Para Applebaum, assim como coisas corriqueiras como aviões e estradas são usadas por terroristas, apontar uma rede anônima como ferramenta de terrorismo é tendencioso.
As vidas de Assenge e Applebaum tiveram uma reviravolta quando, em meio a inúmeros vazamentos de documentos secretos de vários governos, foram acusados de violência sexual a várias mulheres.
Assenge teve prisão decretada pelas autoridades da Suécia, segundo ele uma forma do governo dos EUA conseguirem sua extradição e morte numa base militar para que o Wikileaks fosse encerrado.
O documentário minimiza julgamentos quanto a culpa ou inocência tanto de Assenge quanto de Applebaum. Em uma certa passagem, Assenge demonstra um total desprezo pela causa feminista e acusa as possíveis vítimas de estupro de serem donas de um bar lésbico. Sem o menor constrangimento ou remorso, Assenge desdenha ao dizer que se trata de uma “posição política feminista radical e vulgar”. Não satisfeito com o desdém, utiliza linguagem essencialmente machista ao dizer que as acusadoras “serão insultadas para sempre por um grande segmento da população global”.
Já Applebaum, durante um treinamento de ativista na Tunísia, disse que a navegação segura é “como camisinhas, podem estourar e vira um mundo de sofrimento”. As referências sexuais utilizadas durante o treinamento causou visível desconforto em alguns presentes, mas Applebaum colocou panos quentes ao dizer que “pode não ser a melhor analogia”.
Se o filme pretendia passar uma imagem de perseguição política ou impunidade, não fica muito claro, afinal, no trecho final, surge uma frase enigmática ou reveladora dita em narração extraída de um informativo: “o advogado da mulher que foi estuprada” – Laura Poitras joga essa frase segundos antes de insinuar que Assenge pediu para que ela não falasse que eles estavam brigados.
Certamente, o ponto alto do filme foi a fotografia, pois, ao contrário da narrativa bumerangue, foi impecável.