Por Lucas Bonillo
Entre os dias 16 e 20 de maio, a cidade de Cachoeira recebeu a MAR, MULHERES ATIVISMO REALIZAÇÃO. Com quatro programas de curtas-metragens – Memória: a história nunca acaba; Terra, espiritualidade e tradições; Re-existências em transito; Corpos dissidentes além de performances ao vivo, pocketshows, exposições, oficinas e mesas de conversa, a MAR reuniu diversas mulheres, com suas múltiplas e diversas vivências, em um espaço de troca extremamente poderoso. As idealizadoras, Camila Camila e Letícia Ribeiro, falaram um pouco a respeito do processo de realização da MAR com a gente.
1) De onde surgiu o nome e a identidade visual da MAR? Como se dá essa relação com a água – o fluxo de água corrente, e o mar aberto?
Sempre buscamos nos projetos que realizamos ilustradoras independentes para somar conosco, e produzir uma ilustração exclusiva para cada um deles. Na MAR estávamos buscando artistas e ilustradoras que já tivessem uma linha de trabalho feminista, que representassem mulheres, mulheres diversas. E chegamos até as artes da Layse Almada (@laysealmadaart). A Layse tem uma sensibilidade incrível, desenhos de mulheres diversas, livres, de corpos afrontosos. Viramos parceiras na MAR e fomos juntas dialogando sobre o que buscávamos enquanto ilustração, enquanto movimento, pelo entroncamento e encontro de mulheres. Enquanto diversas e o quanto o encontro dessas muitas mulheres tem uma potência, fluida, corrente. A MAR busca ser um fôlego em tempos dilacerantes, reunir mulheres próximo às águas, irmanadas às artes, ao cinema, numa força de transformação. Chegamos ao desenho final, que foi desenvolvido exclusivamente para essa edição da MAR e a partir da Ilustração, chegamos a uma programação visual geral realizada pela maravilhosa Kaula Cordier em parceria com a Cavalo Design (@cavalodesign).
2) Quais foram as suas motivações e objetivos para a elaboração da MAR? Por que escolher Cachoeira para ser esse local de realização?
A produtora Mulher de Bigode vem buscando maneiras de o cinema e as artes somarem ao levante pelo empoderamento e fortalecimento das lutas das mulheres e dos LGBTTQIA, é uma produtora direcionada a bens e produtos culturais realizados por mulheres e LGBTQIA. No ano de 2017, idealizamos dois projetos, o Cine Trans Territorial, que é um projeto itinerante de realização audiovisual junto a pessoas LGBTTQIA da Bahia, e a Letícia Ribeiro faz o resgate da ideia de uma mostra de filmes dirigidos por mulheres pensado inicialmente em 2010 pelo Coletivo Benditas Tetas.
Idealizar uma mostra de filmes realizados exclusivamente por mulheres nasce do desejo e do questionamento do espaço das mulheres no cinema, nos festivais e nos circuitos comerciais; qual a potência da perspectiva das mulheres nesses campos, e do quão se faz necessária uma revisão de representação dessas mulheres, dentro e fora das telas. As mulheres vêm em um levante forte nos últimos anos, questionando, ocupando e construindo espaços numa busca por equidade e empoderamento; na Bahia, nos últimos dois anos, mostras e sessões direcionadas a produções realizadas por mulheres vêm crescendo, a Mostra Lugar de Mulher é no Cinema e a Mostra ELAS são idealizados e produzidos por mulheres. A MAR surge somando a esses movimentos, no entanto pensando também na interiorização dessas lutas, na democratização e descentralização do cinema, do cinema realizado por mulheres.
Descentralização. A potência que é insistentemente inviabilizada por falta de fomento e atenção aos mais diversos seguimentos de cultura e arte nos interiores da Bahia e do Brasil é delicada. O recôncavo a exemplo, e especialmente Cachoeira, carregam uma forte ligação com a sétima arte, fazendo parte da história do cinema baiano e nacional, tanto pelas narrativas que compõem sua história e a de seu povo, quanto por ser cenário para tantas e diversas outras narrativas. Parece distante geograficamente do circuito comercial do mercado cinematográfico; entretanto é parte fundamental da rota dos circuitos de festivais, através do trabalho incrível realizado pelo CachoeiraDOC e pelas Realizadoras e Realizadores de cinema do Recôncavo.
Acreditamos que Cachoeira e o Recôncavo são atualmente um dos protagonistas em termos de realização independente e circulação de obras cinematográficas da Bahia nos últimos anos. Potências vibram aqui, e deslocar um pouco o olhar dos grandes circuitos, das grandes capitais, se faz a muito fundamental se pensarmos em uma efetiva democratização do cinema e das artes, é preciso buscarmos politicas públicas que atentem a essas questões, repensar a distribuição de fundos para projetos no interior do estado, idealizados e produzidos pelo interior.
3) E como se deu o processo de curadoria dos filmes?
Abrimos inscrições para filmes em curta metragem de todo o Brasil, qualquer gênero, desde que realizados exclusivamente por mulheres entre os anos de 2016 a 2018. Recebemos, em quase 1 mês de inscrições abertas, uma média de 350 filmes, para nós foi uma surpresa e uma alegria enorme, visto ser a primeira edição do festival, no interior do Recôncavo, com filmes dirigidos exclusivamente por mulheres, sem co-direção; receber mais de 300 filmes é animador. As mulheres produzem, e produzem muito! Destas inscrições, fizemos uma análise de dados e levantamos percentuais de regionalização, socioeconômico, raciais e de sexualidade das diretoras desses filmes; assim que encerramos as inscrições disponibilizamos esses dados ao público através de nossas redes sociais, para que tenhamos também uma percepção de onde e quais o perfil e a realidade das mulheres que estão produzindo, para que possamos também pensar e dialogar ações que de fato sejam efetivas e democráticas para as diversas mulheres e realidades.
A Curadoria dos curtas inscritos foi realizada pelas maravilhosas Cíntia Tâmara (pesquisadora, feminista negra), Daniela Galdino (Poeta, performer e pesquisadora), Laís Lima (Cineasta e pesquisadora) e Luara De. (cineasta, militante, pesquisadora), com consultoria da Amaranta César, cineasta, idealizadora do CacheiraDOC, professora da UFRB, pesquisadora, enfim, uma mulher de força e generosidade inspiradoras. Mulheres incríveis, realizaram um trabalho difícil de seleção, cada uma com sua voz e perspectiva; diversas em suas narrativas e trajetórias, contudo ligadas pelas lutas feministas e sociais, trouxeram um olhar assertivo e cuidadoso na seleção das obras. Os programas trazem uma perspectiva belíssima e muito forte acerca das narrativas realizadas por mulheres no Brasil nos últimos anos, com temas caros, urgentes, necessários. Com a presença de diretoras indígenas, negras, lésbicas, com vozes ecoantes e resistentes em tempos tão sombrios, construindo narrativas vibrantes acerta da terra, das reações de sexualidade, gênero, genocídio, solidão, em luta, em movimento.
A curadoria dos longas foi realizada pelas idealizadoras da Mostra, eu a Camila e a Letícia Ribeiro, que traz uma perspectiva e experiência incríveis e generosas para nós e para a MAR. O filme da abertura tem um escolha muito urgente, diante dos atentados e desmontes sofridos por todas nós desde o golpe de 2016. Projetar em Cachoeira em Praça Pública, terra de resistência, histórica por sua participação nas lutas pela liberdade e emancipação do povo, é de certa forma perceber o cinema também como potência frente à desastrosa conjuntura política e social que estamos sujeitos. “O Processo” da Maria Augusta Ramos, traz os bastidores do impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff, um filme dirigido por uma mulher acerca do impedimento político midiático sofrido pela primeira mulher eleita presidente deste país, através de um processo orquestrado por homens para a implementação de uma política liderada apenas por também homens, brancos, de históricos políticos deploráveis e criminosos. Há questões em tudo isso, as estamos vivenciando, e os tempos andam difíceis. A escolha de abrir a MAR com esse filme é também de posicionar-se frente a este momento histórico, somar ao debate acerca desta conjuntura, com as mulheres.
4) O evento não se atentou só para o cinema, como também para os diversos tipos de arte, como a performance a música. A que se deve essa escolha?
A MAR nasce como uma mostra audiovisual de realizadoras, durante o processo de pré produção, fomos dialogando e criando parcerias com muitas mulheres, buscando aprender e pensar junto ações que partilhasse interesses e desejo de mulheres em múltiplas perspectivas. Desses diálogos chegamos ao tema da edição, MULHERES, ATIVISMO E REALIZAÇÃO, e junto ao tema o desejo de ultrapassar a tela também através de outras linguagens artísticas. Buscamos parceiras e lançamos um chamamento para um intercâmbio artístico para artistas baianas dos mais diversos seguimentos da cultura e da arte. Deslocamos artistas de vários lugares do estado, cantoras, compositoras, performer, poetisas, artistas visuais; um Mar de realizadoras, vivenciando experiências nas mais diversas linguagens. Somos múltiplas, com narrativas e perspectivas ecoam através das mais diversas linguagens, a MAR busca somar-se a todas elas e a construir-se a partir desses encontros.
5) Qual a importância de reunir um grupo com mulheres para a realização do evento?
Nossa equipe foi composta integralmente por mulheres, todas as atividades propostas e filmes exibidos foram realizados exclusivamente por mulheres. É incrível a força proporcionada por esse coletivo. Entre equipe e realizadoras, o trabalho generoso realizado por todas, tem uma potência em tudo isso, um fortalecimento. São vozes muito potentes, que não mais suportam silenciamentos, subalternizações, violências. Tivemos cinco dias com uma programação extensa com obras e atividades formativas, incríveis, de mulheres dos mais diversos territórios, atuando em todas as áreas, curadoria, produção, projeção, programação, vídeo, som, montagem; fortalecendo a perspectiva de que podemos ocupar e estar no espaço e função que desejarmos, com competência.