Por Matheus Leone
O Panorama de 2018 veio com algumas mudanças. O festival em Salvador terá início no dia 15/11, quando a edição de Cachoeira já estará no seu quarto dia. Mais importante do que essa antecipação, a versão cachoeirana deste ano ampliou o recorte do que geralmente nos é destinado em relação à versão soteropolitana. Além do tradicional Panorama Brasil, um composto das mostras Competitiva Nacional e Competitiva Baiana foi criado na forma da Competitiva Cachoeira, com curadoria e júri próprios. Como aconteceu ano passado, um pedaço da retrospectiva da figura homenageada da vez também veio pra cá e o filme mais famoso de Spike Lee – um dos poucos artistas incontornáveis do cinema contemporâneo, com uma carreira que transiciona e transaciona entre o independente e o cinemão, conservando o seu estilo -, Faça a coisa certa, será exibido dublado no dia seguinte à abertura.
A retrospectiva completa de Lee vai ficar apenas nas salas de Salvador, mas um de seus principais interesses temáticos – as comunidades e instituições de manifestação artística negra – estava nas ruas de Cachoeira com a exibição de dois documentários, um curta e um longa-metragem, na praça da Aclamação. O primeiro deles, o curta Sarau da Onça de Vinicius Elizário, leva no título o nome do evento que retrata: um sarau de poesia que acontece na Sussuarana, em Salvador. Ele surge como uma iniciativa de um grupo para combater e questionar as estatísticas de violência do bairro. Assim como o projeto do evento, o filme se dedica a contemplar as vivências daquele espaço que estão muito além da representação monolítica que os moradores negros de bairros periféricos de Salvador costumam ter nas manchetes de jornais. Nos depoimentos, é transmitido o impacto do sarau como um instrumento de união daquelas pessoas através da arte. Se mesmo antes havia o entendimento que muitos ali passavam por situações semelhantes, foi a poesia o catalisador de uma aproximação mais afetiva entre os indivíduos. Essa ligação propulsiona reivindicações pela dignidade, empoderamento sobre o potencial artístico do público e um espaço para se envolver nas poéticas daquele lugar.
Bando, Um filme de também fala de um grupo de artistas de Salvador, neste caso o Bando de Teatro Olodum, criado há 28 anos, mais conhecido pelo filme Ó paí, ó (2007) que adaptou um dos seus espetáculos e tem a participação de seus atores. Um desses atores é Lázaro Ramos que assina a direção do documentário junto com Thiago Gomes. Assim como Sarau da Onça, o filme cria uma história oral do Bando filmando os depoimentos dos envolvidos. Diferente do curta, Bando, Um filme de foi uma sessão menos tranquila para o público. Seja porque o arquivo disponível estava mal mixado, ou a mixagem da trilha de áudio tenha sido feita para mais canais de som do que a produção do festival tinha à disposição para a exibição na praça ou algum outro motivo, resultou em alguns sons do background sobreporem algumas falas e no estouro das músicas utilizadas nas transições que também invadiam o início de algumas falas.
Por precisar me reajustar toda vez que sofrido o ataque do som, ficou difícil absorver o conteúdo de todos os depoimentos, mas algumas coisas registraram, como a luta do grupo pelo projeto, assim como a luta individual dos artistas e as frustrações com o racismo e o elitismo enfrentado no meio artístico e na própria vida, também sobre como a iniciativa do filme e da série de TV de Ó paí, ó veio ao mesmo tempo como uma celebração e crise para o Bando enquanto grupo de teatro. Questões de autoria e autoralidade são consideradas em um dos depoimentos de Lázaro Ramos, justificando o peculiar título e afirmando a coletividade presente na organização interna do grupo e como isso se reflete nas produções, apontado na fala de outros membros também.
Se foi difícil, às vezes, entender sobre o que o filme estava falando – um dos assuntos mais pertinentes foi a discussão sobre a presença de um diretor branco em um grupo dedicado a propor manifestações e intervenções (como a campanha “declare-se negro e ganhe meia-entrada”) artísticas que tangenciam ou explicitamente dialogam com identidade negra, mas por conta das inconstâncias do som, não sei dizer ao certo se o filme apenas registra e lida com a presença dele como o fato que é ou também aborda como que ele chegou e sustentou esse posto –, os problemas explicitaram algumas escolhas formais. Por exemplo, a projecionista ter conseguido, ao longo da sessão, antecipar alguns momentos onde haveria um estouro do som revelou o ritmo da montagem. Em outro momento, enquanto se falava sobre o falecimento de uma das atrizes, a trilha sonora instrumental solene sobrepôs a fala dos depoimentos, mas foi diminuindo até que um dos membros do grupo não conteve o choro e a música como mecanismo de expressar o sentimento seria apenas redundante.
Lembro de terem sido dois choros nos depoimentos sobre a morte da atriz, mas não lembro como se comportou a música em relação a eles. Tenho a impressão de que a trilha instrumental começava após o choro de uma membro (a atriz Valdinéia Soriano) e se estendia até antes do choro de outro, mas não sei com certeza. Se aconteceu assim, foi uma delicada forma de expressar o sentimento coletivo que une esses indivíduos, a emoção da música completando o sentido do arco do discurso que compreende dois talking heads distintos.