Por Brunna Arrais
A Mostra Estruturas do Medo, realização de Felipe Borges a partir de um programa de exibições do Cineclube Mário Gusmão, aconteceu no Auditório do Centro de Artes, Humanidades e Letras (CAHL), no dia 31 de outubro. Sua premissa de exploração entre os gêneros de terror e horror, e em como eles podem ser trabalhados numa tentativa de evidenciar estruturas de opressão, foi alcançada a partir da exibição de três curtas, todos eles apresentando sensações de estranheza, desconforto e sufocamento ao público.
Com direção de Felipe Fernandes, em sua estreia, O delírio é a redenção dos aflitos (21min, 2016), abre a sessão e de imediato nos transporta à entediante vida de Raquel (Nash Laila), moradora de um prédio condenado, sua família sendo a última a residir no local. Com uma filha pequena e um marido aparentemente desinteressado em resolver a mudança o quanto antes e dar fim a angústia que corrói sua esposa, a protagonista se afunda em um processo de obsessão que cresce no decorrer de toda a trama. Nada na vida da personagem parece ser capaz de lhe trazer alívio, seu trabalho em um supermercado não destoa da sua vida marcada pelo tédio e incompreensão.
Neste curta pernambucano, temos a certeza de que não é necessário um roteiro permeado por tramas fantásticas e complexas para criar uma boa história de horror, o diretor consegue transmitir toda a agonia necessária para que simpatizemos com Raquel através de mecanismos simples, como um zoom inesperado, por exemplo. Nessa história, a quebra do vidro de uma loja simboliza o ápice do desespero, mas também a solução de um problema, é o espaço seguro onde a protagonista pode dormir em paz.
Dando prosseguimento, Menino aranha (13min, 2008) de Mariana Lacerda, outro curta de Pernambuco, se difere bastante do filme exibido anteriormente pelo seu tom documental. Ambientado na cidade de Recife, o curta nos conta uma história que aconteceu no final da década de 1990, a lenda do menino Tiago João, conhecido por escalar prédios de alturas fantásticas para realizar pequenos furtos de dinheiro e objetos menores, como joias. A grande sacada aqui, acredito eu, são as diversas imagens de edifícios exibidas de diferentes perspectivas, permitindo que o público seja livre para imaginar o garoto os escalando.
A cena inicial, com a câmera que parece sobrevoar a cidade e suas enormes construções de concreto e que, de repente, se detém e inicia uma descida gradual pelas paredes brancas e azuis, com uma toalha que balança ao vento em um dos apartamentos, me causou uma profunda sensação de vertigem e desnorteamento, intensificada com as constantes mudanças de eixo. Parece impossível, sobrenatural, a possibilidade de que um ser humano comum possa realizar tais feitos de escalada. Ser confrontada com essas imagens que remetem ao impossível combinadas a narração em off com depoimentos sobre o menino-aranha, nos diz sobre a insegurança em que vivemos até em nossas próprias casas, ambiente que supostamente deveria nos trazer conforto. A diretora, entretanto, se recusa a permitir que sua audiência se sinta confortável, a trilha sonora, com três notas de piano que sempre se repetem, contribui ainda mais para a sensação de medo. Sabemos que Tiago João não está mais no mundo dos vivos, porém isso dificilmente nos alivia, ao contrário, intensifica o pavor.
Estado itinerante (25min, 2016), filme mineiro da diretora Ana Carolina Soares, foi a escolha perfeita para fechar a exibição. Destaco esse ponto em específico por já ter assistido o curta em outra ocasião e ele não ter causado tanto impacto quanto causou dessa vez justamente pela crescente de sensações trabalhada anteriormente com os outros dois curtas, parabenizo a feliz decisão do responsável pela escolha não só dos filmes, mas também da ordem em que os mesmos foram apresentados.
Nesta história, acompanhamos a vida da cobradora de ônibus Vivi, interpretada de forma magistral por Lira Ribas, aparentemente temerosa com a possibilidade de ter que retornar a sua casa no final de seu turno de trabalho. Acompanhamos a rotina da protagonista e, a partir dela, entendemos o seu desejo de fuga, não é necessário em momento algum que se mostre o marido abusivo de quem a personagem quer se afastar, o público é perfeitamente capaz de entender as entrelinhas do roteiro.
Vivi, na presença de outras mulheres, parece ganhar coragem e vivacidade para executar seu plano de escape, ao lado delas, escapar da costumeira vida desgastante e abusiva soa não só como um distante desejo e sim como uma possibilidade real e concreta. A escalada de sentimentos da personagem atinge seu ponto de culminância na maravilhosa sequência do bar, onde observamos a dança ao som de ‘’Don’t Cry’’ da banda de rock estadunidense Guns N’ Roses, extremamente simbólica para o momento.
Se o objetivo da mostra Estruturas do Medo era confrontar a plateia com sensações fortes e marcantes, passeando por histórias que causassem um profundo incômodo e agonia, o atingiu brilhantemente. Acredito que aqueles que estiveram presentes na sala de exibição, assim como eu, só conseguiriam respirar aliviados e recuperar o fôlego após o término da sessão.