Por Brunna Arrais
O quarto dia de programação do XIV Panorama Internacional Coisa de Cinema apresentou uma surpresa interessante e singular, sua primeira sessão às 14 horas exibiu narrativas tão potentes e marcantes que acreditei ser impossível manter esse mesmo sentimento nas exibições seguintes, infelizmente, minha previsão demonstrou estar correta. Afirmo ter sido curioso por observar a prática recorrente em festivais encaixar longas de geralmente maior impacto no último horário, ocasião onde se há maior adesão de expectadores, consequentemente a Mostra Panorama, com seus dois fantásticos filmes, não teve o reconhecimento que merecia em termos de lotação de público, o que é uma pena.
La Flaca dos diretores Thiago Zanato e Adriana Barbosa, produção brasileira e mexicana, conta uma história, no mínimo, inusitada. Arely Vazquez, mulher transgênero, é uma das líderes de um culto a Santa Muerte, a quem é fervorosamente devotada e diz ser a santa daqueles que estão à margem, como homossexuais, prostitutas e bandidos. A protagonista põe em questão o conflito que sentia enquanto devota fervorosa da igreja católica, que via sua condição enquanto algo maléfico que deveria ser resolvido, diferente da compreensão e bênçãos que encontrou na sua nova fé. Com suas cores fortes e figurinos extravagantes, o curta se nega a entregar uma história de luto, pois nele a morte não deve ser tratada com pesar e sim com celebração e respeito.
Com uma abordagem completamente distinta no que diz respeito a passagem da vida para outro plano desconhecido, Los Silencios da diretora Beatriz Seigner – longa que vem circulando por festivais tanto nacionais quanto internacionais – entrega um dos trabalhos mais sensíveis que já tive o prazer de assistir e facilmente foi a estrela do dia em relação a todas as sessões. O filme se passa na fronteira do Brasil, Colômbia e Peru, na Ilha da Fantasia, local onde imigrantes se refugiam dos combates envolvendo as guerrilhas, a maioria dos moradores tendo algum parente assassinado nos conflitos.
Acompanhamos a jornada de Amparo (Marleyda Soto), uma mulher que luta para criar seus filhos pequenos enquanto tem que lidar com os fantasmas do seu marido (Enrique Diaz) e filha desaparecidos. Impossibilitada de receber uma indenização, pois os corpos não foram encontrados, executa trabalhos como carregar pesadas sacas de peixe e alguns bicos para sobreviver. Essa mulher, abalada emocionalmente a todo instante, ainda que fazendo de tudo para esconder sua dor de seu filho menor, respira sufocada com as presenças fantasmas dos mortos.
A câmera do longa não parece existir, em diversos momentos me esqueci que estava assistindo a um filme, visto que as histórias individuais de cada personagem não pareciam de nenhuma forma uma ficção. Aquelas pessoas são tão reais quanto o público que as assistia, não parece haver qualquer tipo de atuação, as tristes vidas expostas na tela são críveis e doloridas, assim como imaginamos que sejam a vida daqueles expatriados de sua terra devido as guerras armadas da região.
O silêncio, constante em toda a obra, diz muito sobre como a família lida com a perda dos seus entes queridos. A garota, sempre quieta, seguindo sua mãe como uma sombra, o menino, tomado pela dor e raiva, aparenta falar apenas quando deseja expressar sua indignação a Amparo, esta que pouco diz sobre o assunto, provavelmente pelos sentimentos borbulhando em seu coração. Segundo filme da diretora, Los Silencios impressiona pelo seu esmero técnico e sensibilidade artística ímpar e não será surpresa ver sua voz ecoar por muitos anos.
Ainda impactada com a sessão anterior, assisti aos curtas da Competitiva Cachoeira com um olhar que ansiava por repetir as sensações que tanto me emocionaram, nesse momento a minha cabeça era, agora mais do que nunca, extremamente exigente. Dek Tamarit, do diretor baiano Marcus Barbosa, possuí um tom marcado pelo humor e uma linguagem inesperada quando nos conta do estudante timorense nos seus percalços por Salvador, onde enfrenta barreiras tanto culturais quando idiomáticas. Destaco a sequência onde o estudante protagoniza uma cena de luta coreografada no estilo dos filmes de ação asiáticos, como os do Jackie Chan, pelo qual o diretor já expressou intensa admiração.
Logo em seguida, temos A Caixa de 4 Cômodos, com direção assinada por Ana do Carmo, um filme de fácil identificação com o público feminino, uma vez que trabalha com a premissa dos incômodos aos quais uma mulher está sujeita numa sociedade marcada por instituições patriarcais. A protagonista, com sua câmera, faz um movimento que soa como uma denúncia dos assédios e abusos de diferentes níveis que enfrenta. Ao apontar sua lente para a plateia, quebrando a quarta parede, ela nos convida a agir de forma não tão passiva, seu olhar queimando em nossa direção.
Alice, com direção de Állan Maia, brinca com as nossas expectativas, nos jogando de maneira bruta em meio ao roteiro. Sua atriz, perdida em meio a trama em que se envolve, acaba por nos arrastar na mesma torrente de desespero e confusão que se encontra. O flerte com a série de ficção científica Black Mirror me soa gritante, principalmente nas cenas onde a personagem é confrontada por sua própria figura em vídeos com instruções de como proceder, além de, claro, os bilhetes espalhados por toda a casa. E, apesar do curta causar certa desorientação, por vezes exacerbada, a atuação entregue por Jamille Cazumbá consegue elevar a tensão ao ponto de nos fazer relevar essa característica.
Encerrando a rodada de curtas, Luan Jave nos apresenta seu trabalho em De Novo Não!, que se destaca em meio aos outros filmes da sessão pelo seu tom futurístico. Nele, vemos o jovem Samuel enfrentar seus monstros interiores ao mesmo tempo em que tomamos conhecimento dos suicídios que vem ocorrendo com frequência naquela estação. Tomado pela depressão, mantém uma gilete em seu quarto e se recusa a sair para socializar na festa em que seus amigos tanto insistem sua presença, mas ao final é convencido pelos mesmos. Com um visual interessante por suas cores e maquiagens exóticas, somos lançados na estranheza daquela pequena confraternização regada a bebidas, sem imaginar o que poderia acontecer naquele momento. Parabenizo o diretor pela tentativa de trazer um tema tão urgente para as telas e a coragem que seu personagem demonstra na conclusão da trama.
À noite, sessão das 19 horas, temos filmes com um caráter documental e íntimo, todos eles a sua própria maneira. Guaxuma, animação da diretora Nara Normande, numa co-produção Brasil-França, é um deleite para os olhos, seus traços encantam e gritam o amor e saudade da sua melhor amiga de infância, Tayra. Numa praia do nordeste, as duas garotas cresceram juntas e eram inseparáveis, as imagens do mar remetem a essas lembranças felizes, num tom saudoso.
Dando prosseguimento a esses sentimentos de tanto afeto e rememoração, Taís Amordivino entrega seu belíssimo documentário Motriz sobre sua mãe Bete, mulher que nos cativa de imediato com seu sorriso largo. Fui tocada rapidamente pelas imagens e me fraguei sentindo uma saudade absurda daquela que me gerou, desejando viajar para minha cidade e encontrá-la. O amor, mesmo com a distância, permanece forte e claramente move a diretora em direção a um cinema muito especial, aquele que nos desperta toda sorte de emoções.
Longa paulistano, Fabiana, de Brunna Laboissiére, nos leva no banco de carona da mulher trans motorista de caminhão que dá nome ao filme. Com mais de três décadas nesse trabalho, ela realiza sua última viagem antes de sua aposentadoria, contando sobre as aventuras que viveu nas estradas. Acredito que a duração foi excessiva, sendo um pouco maçante depois de determinado momento, além do problema que enfrentei para decifrar o que Fabiana nos dizia em diversos momentos, depois das outras exibições a que tive o prazer de assistir no Panorama, esta foi um tanto difícil de digerir.