
Por Bruna Arrais
Em Chamas (Beoning), produção sul-coreana do cineasta Lee Chang-dong, também responsável por obras como Poesia (Shi) e Peppermint Candy (Bakha Satang), é um longa essencialmente trabalhado através de metáforas, sejam elas apresentadas visualmente durante as quase duas horas e meia de duração ou por meio de diálogos sobre pantominas e a fome de um significado para a vida em si.
De início, somos apresentados ao entregador recém-formado em Escrita Criativa Jong-soo (Yoo Ah-In), que reencontra uma antiga colega de infância, a extrovertida Hae-mi (Jeon Jong-Seo). Nos primeiros dez minutos do longa, já é possível notar a gritante diferença de personalidade dos dois jovens, esse jogo de contraste se evidencia conforme a passagem da trama. É importante salientar uma cena específica: durante um jantar, Hae-mi discorre sobre um conceito muito interessante advindo dos povos bosquímanos na África, nele se afirma existir dois tipos de pessoas famintas, o primeiro tipo se caracteriza enquanto ‘’Pequeno Faminto’’, ou seja, aquele que sente a fome fisicamente, e o segundo tipo possuí a fome de entender o significado da vida, o ‘’Grande Faminto’’.
Essa fome é explorada no roteiro de uma forma particular. É evidente que a fome que uma das protagonistas tenta matar através de idas constantes a restaurantes não será sanada, uma vez que a mesma busca saciar uma falta muito mais profunda. O mesmo podemos dizer do aspirante a escritor, frequentemente demonstrando não saber como seguir sua vida em meio a problemas familiares que remetem diretamente a traumas de sua infância, representados em tela com a imagem do fogo ardente.
O terceiro personagem que completa um estranho triângulo amoroso é Ben (Steven Yeun). Ele aparenta ser um coreano bem abastado, apesar de em nenhum momento ser esclarecido de onde provém sua riqueza. Com a sua entrada inesperada no roteiro – o mesmo conhece Hae-Mi em uma viagem a África – vemos dois mundos extremamente opostos se chocarem.
A relação entre os três se constrói de forma desconfortável, os planos longos e lentos propositalmente apontam que algo não está devidamente correto e os diálogos subjetivos e carregados de mensagens ocultas só aumentam a estranheza em tela. Num plano sequência belíssimo, Hae-Mi executa a dança do Grande Faminto enquanto ao fundo escutamos uma música de Miles Davis, os dois homens a observam e conversam sobre uma espécie de hobby criminoso de Ben, quando ele confessa ter o hábito de queimar estufas em intervalos curtos de tempo. Essas estufas abandonadas e esquecidas, além da importância zero que a polícia coreana aparenta ter em relação a esse tipo de delito, informação salientada por esse Grande Gatsby asiático, curiosamente parece dizer algo não sobre essas caixas de calor, mas sim sobre um dos elos do triângulo, aquela que não tem amigos e muito menos contato com a própria família, portanto dificilmente atrairia alguma atenção.
Após Ben afirmar que já estava na hora de queimar mais uma estufa e que ela estava muito próxima, Jong-soo encontra uma nova obsessão e todos os dias checa as que se encontram perto do local indicado, embora encontre todas intactas. A partir desse momento, Hae-mi parece sumir como fumaça das vidas dos dois e a desconfiança em relação ao misterioso bon vivant apenas se intensifica em níveis catastróficos.
A beleza do não dito é a grande sacada do filme e, a partir desse momento, ele se eleva ao ponto máximo de fervura. É difícil afirmar se a paranoia do protagonista é apenas a culminância de seus anseios e a paixão desenfreada pela figura desaparecida da mulher que lhe tira o sono ou a constatação de uma terrível verdade sobre os atos de Ben.
Livremente inspirado no conto Queimar Celeiros, do consagrado autor japonês Haruki Murakami, Em Chamas flerta com a literatura durante toda a sua duração, porém o trabalho do seu diretor é magistral em traduzir em imagens toda a habilidade única de Murakami em brincar com as palavras. A obra se apresenta como um clássico imediato, digno de ser revisitado várias vezes e passível de novos significados e interpretações conforme se matura no tempo.