
Por Flávio Reis
No distante ano de 2006, Porto Alegre era uma cidade em efervescência, e parecia não querer dormir.
A cidade inteira estava envolta naquele tipo de nuvem que faz brotar grandes movimentos culturais! Cheia de vida nos bares e casas noturnas, espetáculos a céu aberto no Parque Farroupilha e na “Esquina Democrática” salas de cinema que apresentavam ora um festival cult ora blockbusters de gosto duvidoso. A vida na cidade era a tradução da jovialidade brasileira na segunda metade dos anos 2000.
Mas, a mesma Porto Alegre que pode facilmente ser confundida com uma eterna comédia romântica adolescente, ostenta um título sombrio: a capital brasileira de suicídios.
Quem morou em Porto Alegre, e teve tempo suficiente para ir a Cidade Baixa, ao Parcão, Redenção, Marinha ou na Padre Chagas, já deve ter ouvido histórias horripilantes de jovens que cometeram suicídio em algum ponto da cidade. Algumas histórias são tão absurdas que invadiram o imaginário popular e parecem ter saído das páginas de um livro.
No final da tarde de 26 de julho de 2006, um assunto viralizou em todas as partes da cidade: a morte de um jovem no banheiro de casa por asfixia.
Vinicius Gageiro Marques, de 16 anos, morador do bairro São Geraldo, Zona Norte da cidade, cometeu suicídio com ajuda de pessoas em um fórum na internet.
Com roteiro e direção assinados por Hique Montanari, a cinebiografia Yoñlu (1h27min – Container Filmes e Prana Filmes), pseudônimo adotado por Vinícius Gageiro, chegou aos cinemas brasileiros com uma grande interrogação na cabeça das pessoas que conheciam a história do adolescente morto em 2006, ou já sofreram um trauma relacionado ao tema: haverá romantização do suicídio?
Seja na Bíblia, com Judas Iscariotes, ou no romance entre Romeu e Julieta, o suicídio sempre foi visto como um evento com grande poder catártico, seja pela expiação de um grave pecado ou de um amor impossível.
Entre o plano geral de Porto Alegre vista de cima do morro até o corte fazendo um tour pelo cenário do quarto, o tom solitário do filme é quebrado no exato momento que Yonlu (Thalles Cabral) entra em cena tocando violão e cantando em inglês.
O filme transforma, aos poucos, a densidade claustrofóbica em uma câmera de reality show.
Quando Yoñlu diz: “Eu não sei lidar com as pessoas, mas pela internet eu já aprendi a conversar um pouco”, o processo de composição das músicas de Yoñlu se transforma em um personagem com o qual ele irá dialogar. Neste ponto, o roteiro e a montagem abandonam a narrativa convencional, e as passagens de tempo parecem não comportar a febril produção artística criada no quarto de Vinícius.
A direção de arte deve ter tido alguns problemas com objetos da época, já que nas externas aparecem alguns automóveis contemporâneos. São atuais, também, os fones de ouvido usados pelo personagem, o computador e interface dos programas de edição de áudio – nada que torne a história inverossímil.
O diretor vai criando a mudança no que o quarto significava para o adolescente. De quarto para fortaleza, até se transformar por completo num andor, seu local sagrado de criação e fuga do mundo, já que em um trecho Yonlu sugere se sentir feio e que isso não é algo que ele desejasse como embalagem para o mundo.
Há poucas cenas externas e todas foram gravadas na região central da cidade. Longos períodos em que a música substitui falas e uma atmosfera imersiva na vida do personagem, tornando ainda mais doloroso saber que o final dele será trágico.
Alguns recursos visuais criaram ruído na narrativa. As cenas com fotografia supersaturada e o cenário “live-action” do fórum da internet, por exemplo, desconectam o espectador do estado imersivo proposto pelo filme. Somos trazidos à realidade abruptamente por uma decisão estética que não dialoga com o resto da obra, e causa algo entre frustração e ira.
Apesar desses deslizes da pós-produção, o filme vai envolvendo o espectador a ponto de você pensar no que poderia ter feito para ajudar Vinicius em sua jornada solitária. Como há pouquíssima interação entre Yonlu e outras pessoas, a melancolia do personagem vai criando um ar realidade superfantástica ou de uma ficção científica. Yonlu parece ser o sobrevivente de um mundo habitado apenas por ele, seu violão, desenhos, poesias e músicas.
Quase aos 55 minutos há, enfim, diálogo entre Yonlu e os pais Luis Marques (Leonardo Machado, morto em 2018) e Ana Maria Gageiro (Liane Venturella). A falta de profundidade na comunicação da família é absoluta. Na verdade, essa cena é a intersecção de toda a história contada no filme. A partir dela, o seu desenvolvimento e a montagem se tornam lineares e a tensão em torno do suicídio de Yonlu vai ficando cada vez maior.
Primeiro longa-metragem do diretor Hique Montanari, o filme não é uma ode ao suicídio. Aliás, nas cenas em que o terapeuta (Nelson Diniz) é entrevistado por uma repórter (Mirna Spritzer), o discurso conservador em torno do ato praticado pelo jovem causa muito desconforto já que adota uma lastimável superficialidade. Havia uma abertura que poderia ser transformada em aprofundamento em torno das motivações do ato, além da responsabilidade pela morte do adolescente. Mas foi preterida pelo discurso vazio que sustentou como únicos culpados os membros do fórum da internet.
Apesar do spoiler do filme, de que no final Yoñlu morrerá, há sempre uma sensação de que ele esteja na Redenção, no Parcão ou em algum ponto de Porto Alegre compondo suas músicas com melodia leve e letras complexamente melancólicas.