
Por Matheus Leone
Havia rumores. Havia histórias. Tudo era não mencionado, mas nada não imaginado. Este flerte místico com a ideia de “pecado” – esta sensação de que era possível ir “longe demais” e que muitas pessoas estavam indo – estava muito conosco em Los Angeles em 1968 e 1969. Uma tensão de vórtice demente e sedutora estava se formando na comunidade. Os nervos estavam se estabelecendo. Lembro-me de uma época em que os cães latiam todas as noites e a lua estava sempre cheia. Em 9 de agosto, 1969, eu estava sentada na parte rasa da piscina de minha cunhada em Beverly Hills quando ela recebeu um telefonema de um amigo que acabara de ouvir falar dos assassinatos na casa de Sharon Tate Polanski em Cielo Drive. O telefone tocou muitas vezes durante a próxima hora. Estes primeiros relatos eram distorcidos e contraditórios. Uma pessoa dizia capuzes, o próximo dizia correntes. Foram vinte mortos, não, doze, dez, dezoito. Sombras pretas foram imaginadas e bad trips culpadas. Lembro-me de toda a desinformação do dia com muita clareza, e também me lembro disso, e eu gostaria que não: eu lembro que ninguém ficou surpreso.
– Joan Didion, 1979.
O Caso Tate-LaBianca ser tomado como um marco simbólico para o fim dos anos 1960 para o início dos anos 1970, na cultura norte-americana como um todo, pormenoriza alguns fatores muito importantes que informam essa transição. A contracultura, por exemplo, apesar de amplamente publicizada pela curiosidade e influência sobre a mídia, não era um movimento político tão forte, em números, quanto a onda reacionária que elegeu Richard Nixon em 1968. A valorização do estilo de vida dos hippies e a convivência com eles eram experiências, salvo poucas exceções, dos grandes centros culturais costeiros dos Estados Unidos daquela época. Portanto, assassinato de uma starlet em uma mansão em Beverly Hills – luxuosa cidade californiana, circundada por Los Angeles, onde fica o maior polo da indústria cinematográfica do país, e West Hollywood – por figuras análogas ao que o senso comum lia como “hippie” representa um trauma e uma chave para uma mudança de perspectiva bem maiores para essa privilegiada elite cultural enamorada da contracultura, o Flower Power, o amor livre e as drogas lisérgicas, do que para o americano médio.
Sharon Tate, a starlet em questão, estar grávida de oito meses, fruto do relacionamento com o diretor da quarta maior bilheteria americana do ano anterior (O bebê de Rosemary), adiciona ao pavor e a cause célèbre que alimentam a mitificação de uma tragédia tão bem posicionada no fim da década que é irresistível torná-la um ponto de virada em um período tão marcado por segmentos distintos quanto o Século XX. Principalmente quando o cinema é o meio pelo qual essa história é narrada. É nesse cenário, na verdade seis meses antes, em fevereiro de 1969, que Quentin Tarantino retorna para revisitar acontecimentos que impactaram a América, após o seu detour pelos faroestes.
Ao contrário do obstinado Bastardos Inglórios – primeira parada em sua viagem revisionista pela História, na qual ele revisita um evento tão examinado pelo cinema que se tornou (para a abjeção de muitos) praticamente um subgênero, em Era uma vez em Hollywood Tarantino não tem pressa em chegar ao assunto. O filme espalha seus interesses nas figuras de três personagens centrais e os deixa perambulando pela minuciosa recriação da Los Angeles da infância do diretor. Rick Dalton (Leonardo DiCaprio) é um astro de séries policiais de TV com poucos e inexpressivos papéis no cinema que atingiu um ponto crítico da sua carreira: precisa decidir se continua em Hollywood como um character actor interpretando vilões ou se arrisca em estrelar “Nebraska Jim”, um filme de Sergio Corbucci, “o segundo maior diretor de western spaghetti” de acordo com o seu agente. Cliff Booth (Brad Pitt) é um ex-militar que conheceu Rick sendo seu dublê e continuou trabalhando assim à sombra do ator, se tornando inclusive uma espécie de funcionário dele. Sharon Tate (Margot Robbie) vai a festas, compra um exemplar de Tess dos D’ubervilles para presentear Polanski (que o adaptará para o cinema dez anos depois), assiste a ela mesma na comédia de ação Arma secreta contra Matt Helm, passeia pela cidade…
Com as cenas protagonizadas por Tate, a única do trio de protagonistas que realmente existiu, o filme que já tem um clima laissez-faire se desprende total da intenção de criar um arco narrativo clássico para a personagem. É a partir dela que Era uma vez em Hollywood mais explora sua ambientação de época, alguns pequenos prazeres e também indulgências de uma vida analógica, esta última facilmente associada ao gosto pessoal do diretor. A partir de Dalton, Tarantino observa esse tempo de reajuste entre o studio system da Era de Ouro de Hollywood que insistia em ostentar seu glamour decadente frente as mudanças da década de 1960 e a emancipação da autoralidade de uma juventude da Nova Hollywood da década de 1970. Há uma tranquilidade na maneira como Tarantino filma Tate, semelhante ao olhar encantado pelo lugar, as superfícies e o agora que Jacques Demy empregou ao filmar a Los Angeles daquela época em O segredo íntimo de Lola (1968). Em oposição a essa leveza estão as intromissões do cinema moderno dos anos sessenta que descontinuam o fluxo clássico dos planos do filme e reafirmam as inadequações de Rick Dalton.
O que o filme alcança com Cliff, no entanto, é algo que transcende o comentário histórico. Há um exercício de julgamento de caráter que tensiona uma discussão ética do que está por trás e geralmente é ignorado em algumas ações legitimadas como heroicas. Se Tarantino já tinha tratado de desvelar o espetáculo da violência em seu filme anterior, Os oito odiados, ao fazer o público passar quase três horas com um indigesto grupo de maus-caracteres, neste ele o faz de uma forma muito mais econômica (mas não menos elaborada: em um flashback dentro de um flashback) e complexa (adicionando o fator “carisma” que muito faltou aos personagens de Os oito odiados).
Quando Era uma vez em Hollywood finalmente chega ao “assunto”, o faz bem consciente da expectativa que criou e subverteu ao fazer seus personagens passarem horas andando de carro sem grandes propósitos além de olhar a paisagem e o que ela tem a oferecer. Uma televisão é vista anunciando algo no sentido de “…e agora, a atração que todos estávamos esperando”. Até certo ponto, toda a sucessão de eventos é narrada como um programa sensacionalista dedicado à reconstituição de crimes. Quando a coisa acontece, não foge muito do que se espera de Um Filme de Quentin Tarantino.
O desfecho… é diferente. Parecido talvez com a conclusão de Jackie Brown, seu filme menos verborrágico e que mais tenta desviar do assunto. Ambos invocam uma felicidade melancólica, uma sensação de que estacionamos em um ponto de virada de sorte na trajetória de pessoas com vidas complicadas e que o caminho pela frente é incerto. Segundo o próprio autor, este será seu penúltimo filme. Como a época que ele idolatra, seu tempo já passou. Suas produções estão se tornando uma irresponsabilidade fiscal maior do que outra para o modelo industrial vigente em Hollywood. Não é pouco milagre cada vez que obtêm retorno financeiro, e ele sabe que não vai ter mais tanto vigor para equilibrar todos esses pratos no ar por muito tempo. Ele quer parar enquanto ainda tem controle sobre a situação, deixando no ar uma sensação de que algo ali foi conquistado, como ele fez acontecer para Jackie e Dalton.