ELEONORA E CHAYA

Por Guilherme Sarmiento

Eleonora e Chaya nasceram na Ucrânia. A primeira, em 29 de abril de 1917, em Kiev; a última, em 10 de dezembro de 1920, numa pequena cidade ao norte, a 300 km da capital: Chechelnyk. Ambas faziam parte da comunidade judaica num período em que se retomava a prática dos Pogroms, massacres de judeus incentivados pelo Estado. Os ânimos estavam alvoroçados. A revolução comunista avançava com o apoio de intelectuais e soldados judeus. Ao mesmo tempo, parte dos ucranianos resistiam ao exército vermelho. O prolongamento do conflito, a fome e a instabilidade econômica, insuflaram o antissemitismo latente, agora somado à resistência contrarrevolucionária. Lamed Japiro , que em 1907 saiu do país para o exílio nos EUA, deixou o testemunho de um desses ataques antissemitas através de palavras solenes e aterradoras:

“Pilares de fumaça e pilares de fogo elevaram-se para o céu da cidade inteira. Belo era o fogo no grande altar. O grito das vítimas – longos, estirados, intermináveis gritos – eram doces aos ouvidos de um deus tão eterno como o Eterno Deus. E as partes tenras, as coxas e os peitos, eram a porção do sacerdote”. (KIRSCHBAUM, 2017, P.10)

Com essas imagens de horror ao fundo, podemos imaginar os Deren e os Lispector fugindo do país, em 1922. Atravessaram o oceano: uma família foi para o hemisfério norte; outra, para o hemisfério sul. As duas meninas tornaram-se refugiadas.

Será que ao mudarem seus nomes queriam apagar o passado nebuloso para, finalmente, começarem uma nova vida? Aos 22 anos, quando realizou seu primeiro filme, Meshes of the afternoon, Eleonora Derenkowska assinou-o como Maya Deren. Maya, em sânscrito, queria dizer “ilusão”. Chaya, no mesmo ano, publicou seu romance de estreia, Perto do coração selvagem. Assinou-o como Clarice Lispector. Clarice vinha do latim e significava “luminosa”. As duas, uma nos EUA e a outra no Brasil, realizaram obras de luz e mistério, sussurros crepusculares que punham as imagens à deriva, levando-as até os limites da expressão. A matéria de uma foi o cinema; a de outra, a literatura. Porém, o universo de sonho embalava suas narrativas – talvez seja difícil entendê-las através dessa chave, pois, em muitos sentidos, recusavam-se a narrar. Acumulavam palavras, imagens, no sentido de operar uma suspensão poética do movimento. Preenchiam a matéria criativa com seus vazios. Ou com seus silêncios.

Em Perto do coração selvagem somos jogados desde o primeiro parágrafo em um lusco fusco de imagens e sons, como se os raios do sol transpassassem um prisma e espalhassem pelo cômodo fragmentos de coisas acabadas de amanhecer. Não há um sentido de descrição que situe o leitor no ambiente. Essa escolha provocava uma espécie de suspensão. A narrativa avançava atordoada por digressões sensórias, impactada pela estranheza – e pela maravilha – de se viver

“Houve um momento grande, parado, sem nada dentro. Dilatou os olhos, esperou. Nada veio. Branco. Mas de repente num estremecimento deram corda no dia e tudo recomeçou a funcionar, a máquina trotando, o cigarro do pai fumegando, o silêncio, as folhinhas, os frangos pelados, a claridade, as coisas revivendo cheias de pressa como uma chaleira a ferver”. (LISPECTOR, 1994, p. 5)

Descrever para Clarisse era, antes de qualquer coisa, situar-se dentro das personagens. Certamente, se optasse pelo cinema, a comparação com Maya Deren seria muito mais notável do que já é. Porque Meshes of the afternoon elabora estilisticamente as espacialidades de maneira muito semelhante a Perto do coração selvagem. Os espaços em Deren tendem a abstração expressionista. Mais do que descrever exaustivamente os objetos, sua câmera também conduz o olhar do espectador para o detalhe, arrancando as coisas de sua função cardeal. Elas não estão simplesmente ali: possuem uma espessura simbólica, que as deforma. Temos uma flor, uma chave, um espelho que se materializam como arquétipos. E, portanto, seu pouso está sujeito a esta instabilidade provocada por um mundo que foge às regras do ordinário. Em um de seus ensaios mais conhecidos “O uso criativo do cinema”, a cineasta afirmou:

“Na medida em que outras formas de arte não sejam constituídas da própria realidade, elas criam metáforas para a realidade. Mas a fotografia, sendo ela mesma a realidade ou seu equivalente, pode usar sua própria realidade como uma metáfora para ideias e abstrações. Na pintura, a imagem é uma abstração de seu aspecto; na fotografia, a abstração de uma ideia produz a imagem arquetípica”. (DEREN, 2012, p. 141)

Em Clarice o uso das metáforas, das metonímias, ou seja, das figuras de linguagem, tinham um objetivo mais chão. Em sua obra de estreia isso estava apenas indicado. Conforme amadurecia como escritora, o deslocamento dos objetos os conduziu a um local de silencioso e intransponível enigma, uma pura superfície jamais atingida pelas palavras. Em seu conto clássico O ovo e a galinha, escreveu: “ver o ovo é impossível: o ovo é supervisível, como há sons supersônicos. Ninguém é capaz de ver o ovo”. A contemplação obsessiva do objeto não aguardava nenhuma transcendência como resposta – existia certa ironia de fundo que impedia leituras tão apressadas. O sentimento mais próximo a que o texto de Clarice se aproximava era o estranhamento. Seria por essa via que encontraríamos sua metafísica e, através dela, enlaçaríamos mais uma vez sua verve com a de Maya, avizinhando a sensibilidade de artistas tão distantes em um mesmo campo da semiosfera. Suas almas se tocavam. Vibravam numa mesma sintonia.

As duas flertavam com o fantástico. Em Maya isso saltava aos olhos. Sua obra dialogava com o repertório que tornara o gênero reconhecível, especialmente na literatura. No início de Meshes of the afternoon, a sombra apresentava-se antes da personagem e, conforme o primoroso trabalho de direção, parecia se descolar diabolicamente de seu corpo. O tema do homem que perdia sua sombra, de raízes muito antigas, adquiriu fortuna com o romance A história Maravilhosa de Peter Schlemihl, de Adelbert Von Chamisso. Otto Rank considerou o tema como uma variação do duplo, outra das imagens recorrentes na obra da cineasta, sempre desdobrando a si mesma através de espelhos ou de suas montagens alucinatórias. Apontar as fontes de seu estilo na vanguarda europeia, especialmente no movimento surrealista, se não desvenda completamente o caso em suas filigranas, define a tradição na qual sua obra se inscrevia. Jean Cocteau, em suas memórias, ao falar dos sonhos, deixou no ar um pouco dessa atmosfera produzida ao se assistir os curtas da cineasta ucranoamericana:

“A prontidão do sonho é tal que seus cenários povoam-se de objetos, que nos são desconhecidos quando estamos despertos e cujos mínimos detalhes nós conhecemos de imediato. O que me surpreende é que, de um segundo a outro, o nosso eu do sonho se encontra projetado em um mundo novo, sem sentir o espanto que esse mundo lhe provocaria em estado de vigília, enquanto continua a ser ele mesmo e não participa dessa transfiguração”. (COCTEAU, 2015, p.78.)

Aqui temos artistas que fugiam às regras do realismo clássico. Cada uma dentro de sua área foi abrindo as margens de sua expressão para o refluxo do imaginário. Uma narrativa fluida e ao mesmo tempo com seus redemoinhos. Este aspecto da obra de ambas – a imersão em suas subjetividades – também envolvia imagens e palavras em um constante looping referencial. Clarice mergulhava nela mesma para de lá compor o seu mundo. Sua prosa especializou-se em se deixar tocar pelas texturas ofertadas na pura presença, sensibilizada na ancoragem de um corpo-personagem atuando e flertando diretamente com a escritura. Maya envolvia-se nesse mesmo processo de autorreferencialidade. Em suas obras mais significativas, foi sempre a protagonista de seus filmes. Para produzir essa sensação de fluxo sobre um fundo de inércia, serviu-se da repetição possibilitada pela montagem e soergueu os blocos de ação em suas recorrências cotidianas. Ajudou a formalizá-las seu engajamento artístico com a dança moderna. Subir as escadas, colocar seu peso em uma das pernas, depois sobre a outra, abrir uma porta – as coreografias mínimas realçadas pelo corte –, realocavam o gesto em um outro patamar. Rebelar-se contra o musical americano e suas convenções espetaculosas, para Deren, seria devolver ao cinema sua pulsação secreta. Em vez de canções e músicas, corpos a dançar embalados pelo flamejar dos projetores. O entremeio de um vazio a configurar uma mulher flutuante, negando-se à gravidade, tornando-se, portanto, rebelde.

Ah, a rebeldia! Duas mulheres rebeldes em uma época ingrata. Porque Clarice também se rebelou. Aos 22 anos, em seu primeiro romance, mudou os rumos da literatura do país em que foi adotada, deixando perplexa a crítica literária ao “deslocar o centro de gravitação”, segundo Jorge de Lima, do romance nacional. A jovem romancista desestruturou as bases de identificação de toda uma literatura ao publicar Perto do coração selvagem. Maya e Chaya rebelaram-se contra os padrões de representação artísticos do seu tempo, livrando-se do caráter local para, através de uma linguagem apátrida, medirem as fronteiras com outras espacialidades. E nessa abertura para uma outra geografia, elas puderam se encontrar: Maya e Chaya, almas gêmeas de uma geração perdida, aves migratórias de um tempo sombrio.

BIBLIOGRAFIA BÁSICA

COCTEAU, Jean. A dificuldade de ser. Belo Horizonte: Autêntica, 2015.

DEREN, Maya. Cinema: o uso criativo da realidade. Revista Devires. Belo Horizonte, v. 9, N.1, janeiro de 2012

LISPECTOR, Clarice. Perto do coração selvagem. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1994.

__________________Todos os contos. Rio de Janeiro: Rocco, 2016.

KISCHBAUM, Saul. A Revolução Russa e a Emancipação dos Judeus: reflexos na literatura Arquivo Maaravi: Revista Digital de Estudos Judaicos da UFMG. Belo Horizonte, v. 11, n. 21, nov. 2017. ISSN: 1982-3053.

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