
Por Flávio Reis
Por mais que o tráfico de escravos e a escravidão no EUA tenham terminado em 1808 e 1865, respectivamente, a luta por igualdade dos milhões de afrodescendentes não terminou.
Se por um lado não havia mais direito de propriedade sobre a vida dos negros, por outro a exclusão da política, do mercado de trabalho, do sistema educacional e até dos serviços públicos era encarada como algo natural pela sociedade branca estadunidense.
Até mesmo a arte acabou refletindo os valores racistas de uma sociedade impregnada com conceitos de supremacia racial e ridicularização dos negros através de sátiras ou papéis que expressavam o conceito de subalternidade. A segregação racial não só era tolerada como tinha até um nome institucional: Lei Jim Crow.
O menestrel Thomas Dartmouth “Daddy” Rice, em 1828, adaptou a canção negra “Jump Jim Crow” numa performance musico-teatral racista que englobava desde estereótipos verbais até o uso de blackface. O sucesso da “obra” foi tamanho que criou raízes na cultura dos EUA, e, quando Abraham Lincoln assinou a abolição da escravatura, leis estaduais foram criadas para barrar a entrada de negros em locais frequentados por brancos. A segregação racial em estabelecimentos públicos e privados era chamada Lei Jim Crow.
Estando os negros proibidos de atuar, por exemplo, em peças de teatro, os estereótipos raciais e o uso de blackfaces tornaram-se práticas sistêmicas de ridicularização dos indivíduos e da cultura negra, algo comum para menestréis como Daddy Rice. Tal prática chegou até o cinema.
Um exemplo é “The Birth of a Nation” (D. W. Griffith, 1915). Uma das mais aclamadas obras cinematográficas, utilizada por acadêmicos de cinema em todo o mundo como referência e marco na montagem com narrativa e continuidade, foi um exemplo dessas práticas com o agravante de sugestionar que homens negros são perigosos e estupradores de mulheres brancas.
E para falar de estereótipo negro no cinema, a carreira de Hattie McDaniel é um ponto crucial no entendimento da segregação racial dos EUA.
Hattie McDaniel, conhecida por interpretar a ex-escrava Mammy em “Gone With The Wind” (Victor Fleming, 1939), tem no currículo outros setenta e três papéis semelhantes. A linguagem simplória e repleta de erros gramaticais, a petulância resultante da falta de educação e a subserviência aos patrões brancos foram traços em comum nos personagens vividos por Hattie MacDaniel.
Vencedora do Oscar de Melhor Atriz Coadjuvante por “Gone With The Wind”, sendo a primeira mulher negra a receber tal prêmio, Hattie quase foi impedida de entrar no local da cerimônia, que não permitia a entrada de negros. Ironicamente, essa mesma solenidade havia recebido um coral de adolescentes negros “fantasiados” de escravos, dentre os quais estava ninguém menos que o futuro líder de insurgência a segregação racial dos EUA: Martin Luther King.
Indo na contramão do racismo e a segregação racial vigente nos EUA, Maya Deren coloca em evidencia nos seus filmes uma atriz e um ator negros.
Sendo uma obra de gestualidade cênica geminada à dança contemporânea, o caminho mais fácil seria a evidência do corpo, já que Deren vivia em uma cultura impregnada por conceitos raciais estereotipados e em movimento contraditório à arte enquanto fomentadora de elevação do pensamento humano.
Era o fim da Segunda Guerra Mundial, fruto do racismo genocida de Adolf Hitler. E o país que encabeçava a reação mundial a barbárie nazista ainda tolerava a Lei Jim Crow, naturalizando a segregação racial. Mas Maya Deren procurou não sucumbir ao lugar-comum, nem ao racismo institucional estadunidense, quando convidou Talley Beatty a emprestar sua gestualidade e precisão técnica ao filme “A Study in Choreography for Camera”, de 1945.
Talley Beatty, dançarino, coreografo e ator nasceu em 1918, na Louisiana, EUA. Faleceu em 1995, em New York, EUA.
No filme, tomadas longas e curtas se misturam a uma coreografia ousada para os padrões da época. Não se vê a imagem de um negro desengonçado fazendo uma dança repleta de estereótipos e focada no divertimento fácil de plateias brancas que viam a ridicularização como comédia familiar. O filme é uma exposição da coreografia enquanto manifestação artística, capturada por câmeras e imortalizada pela atuação impecável de Talley Beatty.
Em “Ritual in Transfigured Time”, de 1946, a presença da atriz e dançarina Rita Christiani também quebrou tabus e abriu outras perspectivas de representação. Nascida em Porto da Espanha, Trindade e Tobago, no ano de 1917, Rita encarnou o alter ego de Maya Deren num filme com uma complexidade visual inegável, mas que naturaliza a presença de uma atriz negra como parte da obra e não como um espetáculo sensacionalista. A presença de Rita no filme atesta o caráter inclusivo das obras de Maya Deren e o seu respeito a arte enquanto meio de transformação social.
A sequência de Rita Christiani e Frank Westbrook executando passos de dança moderna, com elementos de rituais de dança afro e uma montagem repleta de cortes (alguns em continuidade), não objetifica o corpo feminino como instrumento do fetiche branco em relação ao corpo negro, ou de sujeição ao masculino.
A construção da cena é toda voltada para a liberdade corporal dos atores, mas não deixa de provocar questionamento quanto ao fato de que o cinema comercial se mantinha longe da luta, ou sequer da discussão, por igualdade racial e de gênero, mesmo sendo parte de uma nação multirracial.
Maya Deren é sempre lembrada por sua técnica peculiar em narrativa e montagem cinematográfica, mas sua contribuição vai muito além da captura de movimentos por câmeras.
Subversão da narrativa ao transformar seu alter ego em uma mulher negra já é uma ato revolucionário que merece muita atenção dos estudiosos em cinema. Aliás, a própria Maya Deren foi relegada ao ostracismo pelos estudiosos de cinema. Sua visão única de mise-en-scène, movimentos de câmera complexos e efeitos especiais avançados para os padrões da época não fazem parte do cânone dos estudos cinematográficos, e prova disso é quantidade ínfima de estudos sobre sua obra frente a sua relevância histórica.
O fato de Hattie McDaniel ter conquistado uma estatueta do Oscar não apagou as inúmeras humilhações que ela sofreu em vida e até após a morte (não foi permitido que seu corpo fosse enterrado no Cemitério de Hollywood). Por ter nascido em um período muito mais opressor aos negros do que os dias atuais, o gesto de Maya Deren, ao colocar nas telas de cinema uma imigrante negra como atriz principal, sem qualquer tipo de ridicularização à comunidade afrodescendente, foi um grande marco na história do cinema.
Há muito espaço a ser conquistado para que a igualdade racial e de gênero sejam naturais, e não uma exceção aberta para suprir imposições mercadológicas. Até que esse dia chegue, precisamos reverenciar o trabalho de artistas que, mesmo cientes dos seus privilégios, decidiram olhar para o lado e dar oportunidades dignas a pessoas com histórico de exclusão ainda vigentes na sociedade.
BIBLIOGRAFIA BÁSICA
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