ANÁLISE SEMÍÓTICA DO TEXTO JORNALÍSTICO: EM “A SOMBRA DO PAI”, A BUSCA PELA MÃE

Este estudo tem apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Rio Grande do Sul(FAPERGS)

Por Larissa Rodrigues Bruno e Gilmar Hermes

Introdução

Este artigo faz parte de uma linha geral de pesquisa que estuda semioticamente os textos jornalísticos do jornalista e crítico cinematográfico Luiz Carlos Merten sobre filmes brasileiros em exibição nas salas de cinema, durante o período entre 2018 e 2019, no jornal O Estado de S. Paulo. A pesquisa está sendo desenvolvida pelo Grupo de Estudos de Jornalismo Cultural da Universidade Federal de Pelotas.

A análise apresentada a seguir integra também uma pesquisa paralela que está sendo desenvolvida com foco na cobertura jornalística dos filmes de horror brasileiro. Esse estudo correlacionado está tendo início com a análise dos textos que Merten escreveu sobre os filmes do gênero, entre os anos de 2018 e 2020.

No estudo semiótico, observa-se os signos que constituem o texto jornalístico e a identificação estabelecida por Merten com o público leitor através do contexto social, político e econômico vivenciado no País, refletido em certos aspectos também do longa-metragem. O filme é representativo da produção cinematográfica brasileira mais recente no gênero horror.

Segundo Laura Cánepa (uma destacada pesquisadora do horror cinematográfico brasileiro), o primeiro filme no País definido publicitariamente como de terror foi À meia-noite levarei sua alma (1964), que marcou a estreia do personagem Zé do Caixão. A pesquisadora afirma: “se é possível falar em uma época ‘de ouro’ do cinema de horror nacional, ela se concentra entre 1963 e 1983” (CÁNEPA, 2008, p.116).

O período mencionado inclui os filmes mais importantes de José Mojica Martins (cineasta e ator que interpretou o personagem Zé do Caixão). Conforme a autora, essa produção faz parte de uma extensa e variada cinematografia em que propostas marcadamente de autor como as de Zé do Caixão coexistiram com “os filmes eróticos explorados à exaustão por produtores paulistas e cariocas” (CÁNEPA, 2008, p.116). A abordagem do gênero também leva a considerar alguns filmes de cineastas como Walter Hugo Khouri (1929-2003) e Carlos Hugo Christensen (1914-1999).

Sobretudo no ciclo da pornochanchada1 oriunda da Boca do Lixo (região no Centro de São Paulo, onde se concentravam produtoras e distribuidoras nos anos 1970), houve diretores cujas obras, à semelhança de produções europeias, misturavam o apelo erótico a elementos sobrenaturais, como o chinês radicado no Brasil, John Doo (1942-2012), o português Jean Garret (1946-1996) e Luiz Castillini (1944-2015).

Segundo Cánepa, as principais vertentes encontradas nas produções cinematográficas brasileiras do gênero são: o horror de autor, do qual Mojica é o grande representante; o horror clássico, que remete ao romance gótico do século XVIII e se caracteriza mais pela criação de atmosferas terríficas do que pela exposição detalhada e explícita dos fatos horríficos, representada por diretores como Khouri e Christensen; o horror de exploração, caracterizado pelo sensacionalismo, filão no qual se destacam os títulos do ciclo da pornochanchada; o horror paródico, em que se inserem os filmes de Ivan Cardoso, Amácio Mazzaropi (1912-1981) – como O Jeca contra o capeta (1976) –, além de longas como Bacalhau (1975), dirigido por Adriano Stuart (1944-2012), sátira de Tubarão (1975), de Steven Spielberg. Finalmente, há um grupo que reúne “casos relacionados a subgêneros como os filmes espíritas, os de lobisomem e os infantis que dialogaram com o universo do horror” (CÁNEPA, 2008, p.132). Na catalogação de Carlos Primati (apud CÁNEPA, 2008), essa perspectiva híbrida engloba cerca de 500 filmes desde a terceira década do século XX.

Este artigo concentra-se na análise semiótica da reportagem Em a ‘Sombra do Pai’ a busca pela mãe (2019), de Merten, observada tendo em conta os conceitos de Charles Sanders Peirce (2000). O texto aborda o lançamento, na época, da obra cinematográfica A Sombra do Pai (2018), filme brasileiro que transita entre os gêneros horror, drama, suspense e fantasia, escrito e dirigido por Gabriela Amaral Almeida e estrelado por Nina Medeiros, Júlio Machado, Luciana Paes e Rafael Raposo.

A trama do filme gira em torno da difícil relação entre o pedreiro Jorge (Julio Machado) e sua jovem filha, Dalva (Nina Medeiros), órfã de mãe. Jorge sucumbe à melancolia em meio à exaustiva rotina de trabalho que leva, especialmente após a morte de seu colega de trabalho. Dalva acredita ter poderes sobrenaturais capazes de trazer sua mãe de volta à vida, um desejo que aumenta conforme ela acompanha a degradação do pai.

A teoria semiótica de Peirce

Charles Sanders Peirce nasceu em Cambridge, em 10 de setembro de 1839, e foi um filósofo, pedagogista, cientista, linguista e matemático americano. Seus trabalhos apresentam importantes contribuições à lógica, matemática, filosofia e, principalmente, à semiótica.

De acordo com Santaella (2003), a semiótica peirceana pode ser considerada uma Filosofia Lógica Científica da Linguagem. A Fenomenologia é a ciência que permeia a semiótica de Peirce, a qual pode ser compreendida nesse contexto epistemológico. Para Peirce, a Fenomenologia é a descrição e análise das experiências do homem, em todos os momentos da vida.

Nesse sentido, o fenômeno é tudo aquilo que é percebido pelo homem, seja real ou não. Seus estudos levaram ao que ele chamou de Categorias do Pensamento e da Natureza, ou Categorias Universais do Signo. São elas a Primeiridade, que corresponde ao acaso, ou o fenômeno no seu estado puro que se apresenta à consciência, a Secundidade, correspondente à ação e reação – é o conflito da consciência com o fenômeno, buscando entendê-lo. Por último a Terceiridade, ou o processo, a mediação – é a interpretação e generalização dos fenômenos.

Nos seus estudos, Peirce (2000) identificou vários tipos de signos, relativos às observações das ações sígnicas e definiu a noção básica de signo da seguinte maneira:

Um signo, ou representamen, é aquilo que sob certo aspecto ou modo, representa algo para alguém. Dirige-se a alguém, isto é, cria, na mente dessa pessoa, um signo equivalente, ou talvez um signo mais desenvolvido. Ao signo assim criado denomino interpretante do primeiro signo. O signo representa alguma coisa, seu objeto. Representa esse objeto não em todos os seus aspectos, mas com referência a um tipo de ideia que eu, por vezes, denominei fundamento do representamen. (PEIRCE, 2000, p.46)

Assim, para o autor, os signos constituem-se de três partes: o representamen – “si mesmo”, “suas propriedades internas”, “seu poder para significar”; o objeto – “referência àquilo que ele indica, se refere ou representa”; e o interpretante – tipos de efeitos que está apto a produzir nos seus receptores” (SANTAELLA, 2004, p.5). A teoria ainda sugere várias possibilidades de produção de sentido a partir das instâncias destas três partes em diferentes combinações.

Finalmente, é possível afirmar que o texto jornalístico tratado neste trabalho é um signo que trata de outro signo (o filme), pois “esta é a condição do jornalismo cultural na maior parte das vezes” (HERMES, 2021). O jornalismo, como parte da indústria cultural, trata de outros produtos culturais. Assim como se espera que o produto jornalístico contribua para a compreensão da vida que é compartilhada socialmente, a mesma expectativa ocorre com os produtos artísticos, mais propensos à produção de signos com um caráter estético.

Análise

A princípio, a leitura semiótica do texto jornalístico em questão começa com a observação dos destaques gráficos (legi-signos2 da cultura jornalística). É possível analisar os signos pelo que eles são em si mesmos (representamen – o texto como se apresenta), a sua relação com o objeto (o filme neste caso) e os interpretantes que são capazes de criar (os possíveis sentidos produzidos sobre o filme através da leitura do texto jornalístico) (PEIRCE, 2000; SANTAELLA, 2000).

Quanto ao objeto, deve-se levar em conta o “objeto dinâmico” – aspecto fora do signo para o qual ele produz sentido que, neste caso, é o filme A Sombra do Pai – e o “objeto imediato”, o fundamento do signo, que parte dos aspectos das manifestações da obra cinematográfica para apresentar-se de uma maneira específica no interior do próprio signo (neste caso, o texto de Merten analisado).

Sendo a obra cinematográfica o objeto dinâmico, o texto jornalístico é, portanto, o signo que o mediatiza através de vários outros signos. Tais aspectos sígnicos compõem, através do texto jornalístico, o objeto imediato como um todo.

Desta forma, o título principal – “Em `A Sombra do Pai´, a busca pela mãe” –, as palavras em destaque na parte de cima da página, – “Cinema & Estreia” – e a linha de apoio3 – “Entre o suspense e o místico, terror de Gabriela Amaral Almeida mostra menina lutando para superar abandono” – enfatizam a estreia do filme de suspense A Sombra do Pai, de Gabriela Amaral Almeida. A produção tem como enredo o abandono vivenciado por uma menina após a morte de sua mãe e a consequente busca em tê-la novamente. Assim, podem ser observados nos destaques gráficos três aspectos sígnicos do objeto imediato: a “obra cinematográfica”, a “diretora” e o “abandono”.

Pelo fato de os textos jornalísticos tentarem transparecer os acontecimentos para os leitores, os signos analisados têm um forte caráter indicial, ou seja, buscam no texto serem um reflexo da realidade. No entanto, sendo as redações jornalísticas dependentes dos depoimentos, percepções e opiniões das fontes, os textos são construídos a partir de interpretantes produzidos pelos entrevistados. Assim, através dos signos oferecidos pelas fontes em entrevistas, o texto jornalístico tenta fazer uma aproximação indicial ao objeto dinâmico, neste caso, o filme.

No jornalismo cultural, é comum haver um formato híbrido na apresentação de produtos artísticos ao público, havendo maior quebra dos limites entre os formatos informativo e opinativo. Ou seja, os textos têm um caráter informativo, no entanto, os jornalistas muitas vezes inserem em alguns trechos seus pontos de vista sobre as obras tratadas em reportagens, aproximando-se dos textos críticos, mas sem serem predominantemente críticas. Nestes trechos, podemos identificar interpretantes produzidos pelo jornalista sobre o filme, sendo seus pontos de vista explícitos sobre a sua experiência de assistir a fita, ou sobre as suas deduções a partir dos dados apresentados no texto.

Iconicidade

O filme propriamente dito, quanto à sua apresentação gráfica, pode ser considerado como um signo icônico. A foto que ilustra a matéria é, de certa forma, o signo que contempla de forma mais plena a semiose icônica do filme, com a reprodução de um dos seus fotogramas. Pois o objeto imediato de caráter icônico é pautado pelo “modo como sua qualidade pode sugerir ou evocar outras qualidades” (SANTAELLA, 2004, p.20). Ou seja, os signos que funcionam como ícones estabelecem relações de semelhança com seus objetos, que podem ser imagens, diagramas e metáforas.

Assim, o aspecto icônico é dado sobretudo pela foto da matéria que estabelece relações de semelhança com a cena do filme. O público que já assistiu ao filme deve reconhecer a cena que foi registrada na foto e os seus personagens. É importante observar na foto o distanciamento entre os atores e suas expressões visuais.

Houve a opção do fotógrafo e da edição em usar uma foto (corte de cena) que escurece em parte os rostos dos atores, explorando os sentimentos de angústia e tristeza que o sombreamento inspira, que está de acordo com outros objetos imediatos que o texto apresenta.

Já a imagem desvinculada do texto e da legenda (sin-signo icônico) teria um sentido mais aberto, sendo apenas reconhecida por aqueles que conhecem os atores ou já viram o filme, podendo assim, ser interpretada de outras formas. Pois, enquanto tendo um sentido mais amplo, a imagem depende mais da “experiência colateral”4 de quem a vê.

Além de ícones, as fotografias também podem ser vistas como índices, pois são produzidas em uma relação direta com o objeto, através da captação dos reflexos luminosos. Dessa forma, a fotografia é um índice da cena do filme “A Sombra do Pai”.

Na foto da matéria é possível ver uma figura feminina com um moletom de cor cinza, sentada em um balanço, com olhos fechados e expressão negativa, em um dia ensolarado, e uma figura masculina em segundo plano, em pé, com roupas também cinzas, olhando para a menina, com expressão negativa também – imagem que faz parte de uma das cenas do filme.

A legenda diz: “Filha e pai. Dalva (vivida por Nina Medeiros) e Joaquim (interpretado por Júlio Machado): relação frágil e angustiante”. (MERTEN, 2019, o destaque é do original). Portanto, ela identifica os atores, os personagens e descreve o interpretante produzido pelo jornalista sobre o filme com base nesta representação das personagens e uma possível visão do filme como um todo.

A frase associada à imagem enfatiza algo que está presente na fotografia de uma forma que corresponde à subjetividade do jornalista. Salienta o distanciamento emocional entre os dois personagens. A expressão “relação frágil e angustiante” pressupõe a “tensão vivida” entre eles durante o filme, a qual provavelmente poderá ser percebida pelos espectadores que assistirem a obra.

O olho na matéria (frase graficamente destacada do texto jornalístico com letras maiores) traz uma fala da diretora do filme: “A concentração de riqueza, a exclusão social, esse é o verdadeiro terror dos tempos modernos”. Gabriela Amaral enfatiza através de um signo interpretante sobre a relação entre o gênero de horror e o contexto sociopolítico a definição do que, para ela, é realmente o terror da vida real e do qual se inspira para fazer roteiros com cunho de crítica ao contexto político, econômico e social brasileiro, como afirma ao longo do texto.

Os parágrafos iniciais narram de forma resumida a trajetória profissional de Gabriela, trazendo sin-signos5 que correlacionam a sua biografia com a história do gênero de terror. Relaciona a juventude da diretora com o período em que os filmes estavam sendo exibidos nas emissoras e TV6 e estavam disponíveis em cópias para vídeo:

Gabriela Amaral Almeida fez sua formação nos anos 1980 e 90, quando os filmes de terror invadiam as madrugadas da TV aberta e eram o gênero dominante nas prateleiras das locadoras de vídeos. Era uma menina suscetível, que curtia relatos sobre medo, morte. (…) Tornou-se mestra, foi para Cuba, cursou a tradicional Escola de San Antonio de Los Banõs. Tornou-se roteirista, diretora. (MERTEN, 2019)

Os primeiros parágrafos também trazem um sin-signo dos mais significativos sobre a história do cinema brasileiro de terror. Zé do Caixão é um legi-signo ou símbolo do terror nacional, mas aqui funciona como uma réplica, um sin-signo, e é correlacionado com outros sin-signos, outros diretores e suas obras recentes. Desta forma, eles são relacionados ao valor simbólico que José Mojica Marins representa. Merten (2019) escreve:

O cinema de gênero, leia-se terror, consolida-se no Brasil. Antes, havia os filmes de Zé do Caixão. Hoje, existe a geração de Gabriela, de Marco Dutra e Juliana Rojas, de Marina Meliande. Filmes como os citados de Gabriela, e também Trabalhar Cansa, Às Boas Maneiras e Mormaço, que vai estrear na próxima quinta, 9. Andrucha Waddington finaliza Juízo, terror sobrenatural espírita que tem roteiro de Fernanda Torres e Fernanda Montenegro no elenco. No junket de Sob Pressão – sua série que estreia nesta quinta, na Globo -, Andrucha disse que adorou fazer cinema de gênero. Acrescentou que o filme está bom, assustador. (MERTEN, 2019)

Já nos próximos parágrafos, o texto funciona como uma entrevista com a diretora, tratando do enredo do filme e da inspiração de Gabriela para a obra, ressaltando o contexto político-econômico-social do país como matéria bruta para sua criação. Os sin-signos trazidos pelo jornalista correspondem ao processo criativo da diretora, que produziu e divulga seu filme a partir de signos interpretantes que elabora sobre o momento vivido pela sociedade brasileira:

Gabriela reflete que o Brasil atual virou terreno propício para o cinema de gênero. “Às vezes tenho a impressão que tudo isso que vivemos é um pesadelo, não é real, como se o Brasil, a partir dos momentos de 2013, tivesse entrado numa realidade paralela. É tanto horror que nem sei.” Na verdade, e cedo, ela descobriu que, por mais que o gênero lhe tenha fornecido uma ferramenta para olhar o mundo – e que ela devolve como narrativa –, não busca no terror uma forma de alienação, mas justamente, pelo contrário, uma afirmação política. (MERTEN, 2019)

Outro sin-signo trazido, de forma a contemplar o processo criativo, é a descrição de parte da infância da diretora, narrando uma situação de crise que afetou seu pai, relacionado ao trabalho que exercia – comparativamente com o próprio personagem Joaquim no filme. A “exclusão social” consiste em um signo interpretante produzido pela diretora a partir das suas vivências e que será determinante para a compreensão do caráter político do seu filme e a sua concepção particular do gênero terror:

Pois Gabriela sabe que o horror, ou o terror da realidade, supera o dos filmes. Aprendeu em casa. “Meu pai era engenheiro especializado em ferrovias. Tinha uma função social importante, era um homem admirado, com uma posição. De um dia para o outro, os poderosos resolveram que a malha férrea não seria mais necessária, que os trens estavam obsoletos e seriam substituídos pela malha viária, por carros. Meu pai, que estava no auge, sentiu o golpe. Vi-o transformar-se, virar um farrapo de si mesmo. Isso me marcou. E acho que, na atualidade, o que me interessa é fazer cinema de gênero para colocar na tela o processo de desumanização que está na base do capitalismo, do neoliberalismo. Não é o humano que importa. A concentração de riqueza, a exclusão social, esse é o verdadeiro terror dos tempos modernos. (MERTEN, 2019)

Assim, há o tom de crítica ao modelo político e econômico vigente atual, relacionando ao processo interno de produção da obra e das próprias experiências pessoais da diretora (sin-signos) que inspiraram o filme.

Uma regra de textos jornalísticos informativos é que tenha como base a observação de fatos e a coleta de informações com fontes jornalísticas. Desta forma, a existência de fontes, como é no caso do texto analisado a diretora Gabriela Amaral Almeida e Andrucha Waddington, trata-se de um legi-signo (regra) dos textos jornalísticos que deve ser sempre observada.

Portanto, todas as regras de produção jornalística podem ser vistas como legi-signos que perpassam o texto – sendo produtoras de sentido quanto à perspectiva da cultura jornalística. Finalmente, o objeto imediato também aparece na perspectiva das fontes, da linha editorial do jornal e da reportagem jornalística, sob responsabilidade do autor.

Ainda é fundamental ressaltar a contribuição para o horror brasileiro que as produções jornalísticas, neste caso o texto de Merten, oferecem ao escrever sobre as obras cinematográficas atuais do gênero, levando aos leitores novas perspectivas e conhecimentos a respeito do cinema nacional de horror.

A Secundidade manifestada através de símbolos

Ao relatar ocorrências, de forma a definir uma realidade, o jornalismo tenta dar conta de uma realidade concreta, através do uso das palavras (símbolos) e dos interpretantes produzidos pelas fontes em relação a esta realidade almejada. Os legi-signos, no texto jornalístico, passam a funcionar como sin-signos, capazes de produzir interpretantes dicentes.

Desta forma, levando em conta o interpretante final, poderíamos identificar vários símbolos dicentes (legi-signos simbólicos dicentes) – signos que, com palavras ou símbolos, tentam dar conta da atualidade (momento de publicação da notícia), capazes de produzir interpretantes com caráter factual. Também podem ser vistos como sin-signos do tipo “réplica”, que produzem um sentido específico para legi-signos neste contexto.

Dentre os sin-signos, há os depoimentos de Gabriela Almeida, citados anteriormente, e os nomes dos diretores brasileiros do gênero horror, trazidos por Merten, tais como: Rodrigo Teixeira, Marco Dutra, Juliana Rojas, Marina Meliande, entre outros; e os filmes de terror mencionados – O Animal Cordial, Trabalhar Cansa, Às Boas Maneiras, Mormaço, Sob Pressão. Tais signos servem como referência para o contexto atual dos filmes do gênero terror produzidos recentemente no Brasil.

Já o sin-signo Psicose, de Alfred Hitchcock, encontrado em – “Seu maior choque foi a descoberta de Psicose, de Alfred Hitchcock, quando tinha 15 ou 16 anos” – (MERTEN, 2019), remete a uma obra famosa do terror cinematográfico da sociedade moderna. E o nome de Zé do Caixão, o personagem mais conhecido do cinema deste gênero brasileiro, como observado anteriormente, aparece no seguinte trecho: “O cinema de gênero, leia-se terror, consolida-se no Brasil. Antes, havia os filmes de Zé do Caixão” (MERTEN, 2019).

Em termos de contextualização, são importantes os sin-signos “Bahia”, no trecho – “Na universidade, ainda na Bahia, descobriu que podia fazer filmes, ou então estudá-los” –; “Brasil”, em – “Gabriela reflete que o Brasil atual virou terreno propício para o cinema de gênero” – e “2013”, extraído de – “Às vezes tenho a impressão que tudo isso que vivemos é um pesadelo, não é real, como se o Brasil, a partir dos momentos de 2013, tivesse entrado numa realidade paralela. É tanto horror que nem sei” – (MERTEN, 2019). Foram apresentados como falas da diretora e funcionam como símbolos de um contexto regional, para situar o leitor no momento e local em que se passam os eventos descritos no texto jornalístico de Merten, tanto a biografia da diretora como a produção do filme.

Há ainda os sin-signos de “fantasmas”, em – “Internaliza os fantasmas que o destroem” –, “sincretismo religioso” em – “Como baiana, Gabriela convive muito bem com o sincretismo religioso” –, “dirigismo religioso”, religiões afro”, “benzedeiras”, “terreiros”, “comunhão” e “igreja” (MERTEN, 2019) – legi-signos ou símbolos do contexto religioso brasileiro, que se encontram na fala da diretora em:

Hoje eu acho que exige uma cobrança, um dirigismo religioso. Às religiões afro, como tudo que é negro nesse Brasil, parece que parou de merecer respeito. Eu me criei entre as benzedeiras dos terreiros e a comunhão da igreja. Tudo somava. Hoje, infelizmente, não é assim. (MERTEN, 2019)

A diretora traz outros interpretantes sobre o seu processo criativo, em sua entrevista, que propiciam também compreender o filme como um interpretante crítico sobre os processos de mudança cultural recentes no contexto nacional, especialmente no âmbito religioso.

Podemos ressaltar os sin-signos que fazem referência ao contexto político, econômico e social que é elencado na matéria, como “afirmação política” em – “não busca no terror uma forma de alienação, mas justamente, pelo contrário, uma afirmação política” – (MERTEN, 2019); “função social” em – “Meu pai era engenheiro especializado em ferrovias. Tinha uma função social importante, era um homem admirado” – (MERTEN, 2019). Já “base do capitalismo”, “neoliberalismo”, “concentração de riqueza”, “exclusão social”, “terror dos tempos modernos” são vistos na seguinte fala de Gabriela Amaral já citada:

E acho que, na atualidade, o que me interessa é fazer cinema de gênero para colocar na tela o processo de desumanização que está na base do capitalismo, do neoliberalismo. Não é o humano que importa. A concentração de riqueza, a exclusão social, esse é o verdadeiro terror dos tempos modernos. (MERTEN, 2019)

E, ainda, há os interpretantes produzidos por Merten, com base nas palavras “crítico” e “ideológico”, de maneira a expressar um ponto de vista sobre o processo criativo da autora: “Por mais crítico, e até ideológico que seja seu cinema, Gabriela evita o que para ela seria um problema – a ideologização dos personagens” (MERTEN, 2019). Com essa abordagem, o jornalista sugere o risco de uma abordagem panfletária de um cinema que se pensa também como uma forma de agir politicamente.

Possíveis interpretantes

O interpretante é o “efeito interpretativo que o signo produz em uma mente real ou meramente potencial”. Também tem dois aspectos, um interior e outro exterior: o imediato e o dinâmico. O interpretante imediato é interno ao signo, “trata-se do potencial interpretativo do signo”. Já o interpretante dinâmico refere-se “ao efeito que o signo efetivamente produz em um intérprete” (SANTAELLA, 2004, p.33) e ainda pode ser classificado como emocional, energético ou lógico.

Na análise feita, o interpretante imediato, – observado através dos sin-signos descritos – é, em síntese, a potencialidade para expressar o tom crítico à situação brasileira atual através da simbiose do enredo do filme, que espelha a realidade econômica-social aterrorizante que a população brasileira encontra no País, posição defendida pela diretora da obra, Gabriela Amaral Almeida. O texto também apresenta como interpretante imediato os bastidores de A Sombra do Pai e o contexto atual das produções cinematográficas de terror no Brasil.

Já o interpretante dinâmico, considerado como o efeito que de fato o texto é capaz de produzir nos leitores, pode ser, na categoria fenomenológica da primeiridade, de caráter emocional. Os sentimentos experimentados pelo público que já assistiu ao filme podem ser evocados, e/ou os sentimentos trazidos à tona durante a leitura de Merten, com as falas de Gabriela Amaral a respeito das crises vivenciadas no Brasil pela população.

O interpretante dinâmico energético pode ocorrer, tendo em vista a produção física do filme, com a possibilidade do público em ir à estreia assisti-lo ou ainda outra reação dada através da leitura da matéria. E, por fim, às interpretações lógicas, como a constatação de que o filme parece ter um bom argumento – pela explanação feita a respeito do enredo; bem como às conclusões formuladas sobre as dificuldades enfrentadas pelos brasileiros no contexto atual do País, dado os sin-signos relatados pelo autor e pela fonte, ou ainda a posição política (voltada para a esquerda) defendida pela diretora.

Existe, também, a perspectiva de análise pelo interpretante final, que é “o efeito último do Signo, na medida em que ele é intencionado ou destinado pelo caráter do Signo, sendo mais ou menos de uma natureza habitual e formal” (PEIRCE in SANTAELLA, 2000, p.74).

Há a possibilidade de que “no caso do signo genuíno, essencialmente triádico, apresentando-se ao interpretante final como argumento, o propósito que o norteia é de natureza crítico-pragmática” (SANTAELLA, 2000, p.85).

Enquanto a matéria jornalística é tida como “um signo de lei. A base do argumento está nas sequências lógicas de que o legi-signo simbólico depende” (SANTAELLA, 2004, p.26). Desta forma, o autor busca convencer os leitores a assistirem ao filme, a partir da construção do texto com sin-signos familiares do contexto e cultura em que vivem, com o propósito de estabelecer proximidade entre eles e facilitar seu interesse pela obra cinematográfica sugerida.

É possível observar os signos interpretantes expressados por Merten a respeito do longa-metragem em cartaz ao longo da construção de seu texto, como –”Nina é fantástica” – a respeito da atriz que faz a personagem principal, enlutada pela perda da mãe. Destaca-se a escolha de inserir a fala da diretora, que afirma: “Nina é um doce, mas encarnou a personagem de um jeito que tem gente que me diz, depois de ver o filme, que tem medo dela” (MERTEN, 2019). O texto ressalta o aspecto assustador da obra, configuração importante para que um filme de horror seja considerado bem-sucedido, por causar mal-estar, medo, susto ou angústia à audiência. Finalmente, são usados os sin-signos “assustador”, “pesadelo”, “horror” e “terror” para a construção da narrativa.

Será, portanto, em termos pragmáticos, o interpretante final, por exemplo, a decisão que o leitor tomará em assistir ou não o longa-metragem A Sombra do Pai – dado a construção lógica-argumentativa buscada por Merten, através da análise destrinchada neste trabalho, para convencê-lo de que ‘sim’. No entanto, serão continuamente produzidas novas semioses sobre o filme através da recepção do público e todos os outros textos que possam ser produzidos sobre a fita. O interpretante final leva em conta todas as ações sígnicas que o filme possa ser capaz de produzir, por isso também tem um caráter inapreensível, voltado para a sua continuidade no futuro.

O autor Luiz Carlos Merten opera ao longo do texto dentro da lógica do sistema cultural jornalístico. Semioticamente, produz sentidos através de fatos e ocorrências (sin-signos), habitualmente utilizados como dados jornalísticos ou definições presentes nos contextos cinematográfico e social (legi-signos) para a produção de matérias. Neste caso, foram usadas as características do filme, o contexto no qual foi produzido e os pontos de vista da diretora Gabriela Amaral Almeida, expresso em entrevista.

Além disso, como é próprio do jornalismo cultural, Merten expressa signos interpretantes, que neste caso são as avaliações feitas sobre a obra A Sombra do Pai. Ainda, produz sentido de acordo com as lógicas do sistema jornalístico e do jornalismo cultural, mas também perpassa as fronteiras do sistema cinematográfico e político-social. Por fim, busca estabelecer relações argumentativas com os públicos, especialmente através das relações com o sistema da cultura brasileira.

Finalmente, através da análise sígnica do texto, é possível notar a contribuição do filme de Gabriela Amaral, pela abordagem feita por Merten, para a renovação do gênero de terror no Brasil. A relação estabelecida pela autora com o gênero, partindo dos aspectos econômicos e sociopolíticos atuais do País (que ela busca refletir em sua obra a partir de suas próprias experiências pessoais como cidadã brasileira), enriquece os interpretantes possíveis da obra e contribuem para a construção de reflexões sobre as questões culturais pertinentes ao público-alvo que o gênero pode tratar.

Gilmar Hermes é Coordenador do Grupo de Estudos de Jornalismo Cultural da UFPel. E-mail: ghermes@yahoo.com.

Larissa Rodrigues Bruno é graduanda em Jornalismo pela Universidade Federal de Pelotas. E-mail: lrbruno@outlook.com.br.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

PEIRCE, Charles Sanders. Semiótica. São Paulo: Perspectiva, 2000.

SANTAELLA, Lucia. A Teoria Geral dos Signos: Como as linguagens significam as coisas. São Paulo: Pioneira, 2000.

SANTAELLA, Lúcia. Semiótica Aplicada. São Paulo: Pioneira Thomson Learning, 2004.

SANTAELLA, Lucia. O que é semiótica. São Paulo: Brasiliense, 2003.

HERMES, Gilmar. Teorias Semióticas em uma Perspectiva Estética. Curitiba: CRV, 2013.

HERMES, Gilmar Adolfo. Vontade de Ver Outro Cinema em “Café com Canela”. Enecult, Salvador, v. 17, n. 1, p. 1-15, jul. 2021.

MERTEN, Luiz Carlos. Terror ‘A Sombra do Pai’ mostra garota que quer a mãe de volta. Disponível em: https://cultura.estadao.com.br/noticias/cinema,terror-a-sombra-do-pai-mostra-garota-que-quer-a-mae-de-volta,70002812090. Acesso em: 11 nov. 2021.

CÁNEPA, Laura Loguercio. Medo de quê?: uma história do horror nos filmes brasileiros. 2008. 501 f. Tese (Doutorado) – Curso de Multimeios, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2008.

FERRARI, Márcio. Horror à brasileira. Pesquisa Fapesp, [s. l], v. 256, n. 1, p. 1-14, jun. 2017. Disponível em: https://revistapesquisa.fapesp.br/horror-a-brasileira/. Acesso em: 06 dez. 2021.

NOTAS DE FIM

1 “Esses filmes tinham em comum o uso dos clichês da pornochanchada (sexo, nudez, machismo) e do horror (violência, sangue, fenômenos naturais)” (CÁNEPA, 2008, p.119).

2 “Um legi-signo é um signo considerado no que diz respeito a um poder que lhe é próprio de agir semioticamente, isto é, de gerar signos interpretantes, sendo que sua identidade particular se dá pela margem de signos interpretantes que ele é capaz de gerar.” (RANSDELL, 1983, p.54 apud SANTAELLA, 2000, p.101). Na categoria fenomenológica da terceiridade, o legi-signo, que corresponde a uma classificação quanto ao signo em si mesmo, ou seja o representamen, funciona através de uma regra ou convenção, como ocorre no contexto da cultura jornalística.

3 A linha de apoio é um destaque gráfico usado nos textos de jornalismo que cumpre com a função de complementar o título com mais informações.

4 Peirce define este conceito como a intimidade “prévia com aquilo que o signo denota” (PEIRCE in SANTAELLA, 2000, p.35).

5 “Um sin-signo é um signo considerado especialmente no que diz respeito a uma relação diádica na qual ele se situa – sua ocorrência ou existência atual (seu ocorrer ou existir: uma propriedade segunda) – apenas na medida em que isso é constitutivo de uma identidade sígnica que ele carrega” (RANSDELL, 1983, p. 54 apud SANTAELLA, 2000, p.100).

6 Merten também produz com frequência colunas para o jornal O Estado de S. Paulo sobre a programação de filmes na TV.

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