
Por Felipe da Silva Borges
Introdução
Possivelmente toda estrutura necessite de elementos de concretude para manter-se em pé, mas o que determina uma estruturação não é a fixidez do concreto e sim a manutenção de suas prováveis fissuras. Aquilo que revela algo da qualidade concreta que lhe é particular: os movimentos tectônicos. Uma estrutura, seja de edifício, casa ou túnel está disposta sobre os movimentos de placas tectônicas. A articulação da engenharia baseia-se nos cálculos desses movimentos para que não haja rupturas basilares na construção, fomentar um terreno em prol de fincar e fixar um corpo. Nada se mantém estável sem uma manutenção ou adaptação exaustiva, uma vez que as falhas dos blocos terrestres produzem a formação constante de novos atritos, mesmo que ocorra em movimentos imperceptíveis ao sistema sensório-motor. Por mais estruturado que seja o território, por mais concreto que seja seus elementos, o movimento manifesta-se ainda que em expressões moleculares.
Quem sabe toda estrutura seja realmente assombrada por estarem carregadas de memórias. Por mais que seja recém-construída e que suas paredes estejam padronizadas, lisas e sem detalhes, as estruturas são dotadas de blocos de memória díspares. Pode ser do interesse das forças dos estratos e da manutenção perpetrar que as memórias sumam, expelindo os fantasmas que rangem os canos das paredes. No entanto, qualquer território está sobre efeito do vagar oscilante da memória. O corretor de imóveis ao ofertar uma casa certificar-se das histórias que sucederam naquelas paredes. Nesse caso, precisaria verificar a respeito de tudo, inclusive, se ocorreram mortes no local, pois é passível de desvalorização. A memória pode ser custosa, ainda que não seja dado para qual posição se direciona a vantagem. Essa é a questão do assombro: a sensação indomável da memória na qual o perigo se faz iminente na aparição sem, contudo, ser dado a posição de quem está em perigo, apesar de todos serem tomados pela sensação.
Construções assombradas por espíritos do passado e recalcados naquele território serão do interesse para uma leva de filmes de horror. Em geral, as fabulações que contornam essas narrativas utilizam construções que invadiram terrenos sagrados, maculando-os. Muitas vezes se fixaram encima ou em extremidades de cemitérios, normalmente de povos originários. Em muitos casos, foram acometidos por atos de violência fora do que é qualificado como aceitável. Ou seja, a memória coibida e prensada se manifestando e tornando os pequenos movimentos sísmicos em tremores, rompendo com a argamassa solidificada no fluir dos espectros. Quando a memória não se acomete a partir de nostalgia acalentadora se torna um desejo desgostoso, quase um não-desejo. O assombro é esse desconforto extremo que toma o corpo, as paredes já não são seguras. É a lembrança de que tudo pode ruir ou tudo há de rachar. A assombração é o isto que se expressa quando não é desejado, sempre em um momento de perigo iminente. Encontra-se entre o corpo e o incorpóreo, um espectro que vive na memória. Se é que exista espectro que não seja feito pela memória.
O cinema contemporâneo brasileiro emerge da necessidade criativa no ato de elaborar a memória daquilo que a estrutura tende a homogeneizar. Em particular, o cinema do Recife se preocupou em ver esses movimentos tectônicos da estrutura brasileira tanto em suas construções como na atuação da especulação imobiliária. Desse modo, interessa a este ensaio refletir sobre essa vontade em olhar o que assombra as estruturas, entrever nas fissuras os monstros através de uma ética crítica. Nesse sentido, o cinema pernambucano parece particularizar-se no pensar as estruturas e seus monstros. Assim sendo, o filme Menino aranha (2008) de Mariana Lacerda aparece como criação de imagens latentes a essa tendência em rememorar a figura do monstro na contemporaneidade brasileira. Entretanto, antes de analisar o mencionado filme, talvez seja razoável estabelecer relações entre estrutura e criação da monstruosidade.
“Do sangue de meus monstros erguerei meus muros”
O sangue parece ser o meio móvel que sustenta o corpo em suas funcionalidades. A respiração é composta por uma série de transformações modais, por meio da circulação sanguínea, que permitem o organismo manter-se em funcionamento como também mudar conforme a materialidade e tempos do corpo em vida. O sangue é tecido líquido que circula no corpo possibilitando o movimento de sua organicidade. O sangue está tanto no fluir do movimento como nas diferenças que se fazem na relação de movimentos. Isso não significa que a vida se resume ao funcionamento dos órgãos. Os mecanismos dos estratos, por mais que funcionem sobre a lógica do organismo, ocorre pela supressão dos movimentos e pela visibilidade aparente da fixidez. Fala-se em aparência na medida em que a fixação não é absoluta, por mais forte que possa parecer. Os estratos sociais e culturais possuem como perspectiva essa visualidade fixa com finalidade em ocultar os micromovimentos tectônicos que os assombram. Os monstros estão nesse limiar entre a virtualidade molecular do micromovimento e a expressão excessiva de sua aparição.
O monstro é de todo modo um excesso não só por suas características físicas, mas por sua definição. O parâmetro para seu excesso está no campo das leis como aponta Foucault em sua genealogia dos corpos anormais. A monstruosidade está sob a noção de lei, consistindo em dupla infração da jurisprudência e das leis naturais, o que autor determinou como uma noção jurídica-biológica. O excesso que a figura do monstro traz incide em seu corpo, pois trama para o sistema uma rede paradoxal que a esfera da lei não consegue responder em seus próprios parâmetros.
De fato, o monstro contradiz a lei. Ele é a infração, e a infração levada a seu ponto máximo. E, no entanto, mesmo sendo a infração (infração de certo modo no estado bruto), ele não deflagra, da parte da lei, uma resposta que seria uma resposta legal. Podemos dizer que o que faz a força e a capacidade de inquietação do monstro é que, ao mesmo tempo que viola a lei, ele a deixa sem voz. Ele arma uma arapuca para a lei que está infringindo. (FOUCAULT, 2010, p. 48)
O monstro, sendo uma exceção, não comporta as conformidades da lei e as deixam sem voz na jurisprudência — do mesmo modo que a medicina tecnicista — por não saberem como lidar com o desvio monstruoso a partir de seu repertório funcional. Que não se engane! A exceção não deve ser entendida como disposição daquilo que deve ser excluído. Existe uma necessidade na criação de cada figura anormal e os desvios de monstruosidade que permeia sua formação. Por mais que esteja determinada nos parâmetros da lei, em seus extremos, o monstro atua sobre uma diversidade funcional da estrutura. Desde reafirmar as normas a afirmação de um real tomado pela diferença. Porém, atentando-se à concepção de normalidade, aparecem aqui princípios da atuação dos mecanismos do estrato no qual o monstro é para a estrutura parte de adequação dos seus meios de poder.
Nesse sentido, a exploração das figuras do monstro comporta uma formação que a estrutura tende a negar: o afastamento do olhar sobre os desvios. Pode-se mencionar como exemplo a imagem do oceano como refúgio dos monstros nos tempos das grandes navegações. Nas navegações a mar aberto o olhar é tomado pela imensidão do horizonte, infinitude da perspectiva, profundidade em seu mergulho e a incapacidade de domar as leis das ondas marítimas contribuem para a formação de lendas e monstruosidades. A baleia como animal gigante, não sendo peixe e não caminha sobre a terra é um dos grandes monstros marítimos. Por tempos foi considerado o monstro a ser vencido, pelo seu tamanho e poder diante do homem nos tempos das explorações marítimas. Era preciso entender as lógicas do mar, mas, sobretudo, domar as águas salgadas sob suas leis de navegação: as leis dos homens.
No Brasil colônia a formação de armações baleeiras através da costa litorânea desenvolveu uma indústria de óleo de baleia que sustentou parte importante das funções coloniais, desde estruturas básicas das cidades a confecção de produtos comerciais. A caça da baleia atravessou tempos, passou da colônia à república, e sua decadência com a ameaça de extinção desses animais. A imagem do óleo de baleia permeou a qualidade de sustentação das construções antigas. Os casarões coloniais são comumente relacionados à qualidade de perdurar. Esse perdurar viria por seu assentamento feito pelo “azeite” do mamífero marítimo, ainda que sua composição química não favoreça elementos de conjunção para formar uma argamassa. A monstruosidade mística das baleias, de certa forma, estabeleceu uma lenda sobre a produção de seus fluidos. O sangue das baleias compôs parte daquilo que estruturou o imaginário brasileiro.
No filme Baleia magic park (2016), Mariana Lacerda perpetra uma busca na memória sobre três tempos de um território, a saber: as últimas armações baleeiras do Brasil na Paraíba; o parque aquático temático que se construiu sob a estrutura dessa armação e, por fim, o terceiro tempo, das ruínas dessas duas construções. A vontade que se faz no filme consiste em articular esses três tempos através da memória de Juarez (um dos trabalhadores da refinaria do óleo), das ruínas e dos documentos fotográficos. A articulação, através da montagem, da memória de Juarez, das ruínas das construções e das imagens fotográficas parece forçar outro entendimento sobre a estrutura ou sua formação. O mais impressionante nesse processo de sobreposição é o aproveitamento das estruturas da caça de baleia para formação de um parque aquático em homenagem ao “maior mamífero do planeta”, como anuncia a placa central da piscina do parque.
Os tempos da morte, da homenagem e da ruína. Entre os três tempos apresenta-se o olhar para a estrutura, um fundar-se na memória. É no processo em elaborar os tempos, através de Juarez e das fotos, que o filme desenvolve suas imagens. Não por acaso, o último plano da piscina fora enquadrado pensando na transição de sobreposição da filmagem dos restos da construção para a foto do parque em funcionamento. Nessa piscina, que se banhavam crianças, era onde as baleias mortas eram cortadas. O óleo de baleia não tinha a qualidade aderente para formar uma argamassa, mas o ato em derramar o sangue desses monstros, assim como de tantos outros, ergueram as estruturas do país.
O emparedamento dos monstros
Não escasseiam histórias de casas antigas assombradas em todo o mundo. No Brasil existe recorrência da aparição de assombrações por pessoas que foram emparedadas vivas nas construções. Em particular, a história da cidade de Brasília está rodeada por lendas, tendo em vista a velocidade de sua construção. Em muitos relatos, trabalhadores caíram nas vigas e por lá foram enterrados pela argamassa que compõe as paredes do Congresso Nacional. Do mesmo modo, os casarões da arquitetura colonial são marcados por um imaginário assombrado por monstros dentro de suas paredes. No Recife, o romance “A emparedada da rua nova” de Carneiro Vilela acaba por virar uma lenda urbana e o fantasma da emparedada permeia o imaginário do centro da cidade. Indagar se essa recorrência ao emparedamento são fatos verídicos está mais para uma busca tautológica na qual a resposta provável seja a falta de provas. Quem sabe seja necessário olhar para a relação de forças que mantém a predisposição para este imaginário.
Quando Foucault (2010, p. 47) se empenha na genealogia da figura do “monstro humano” incide estudar a disposição da relação de poder que está na origem desses desvios. É o estudo da relação de uma força sendo determinada e determinando outras forças, nisso se faz o poder. As lendas urbanas, assim como os monstros, permeiam a relação de imagens por se encontrar nessa relação de poder, pois são referentes da violência consequente dessas forças: “a violência um concomitante ou um consequente da força” (DELEUZE, 1988, p. 73). Nisso consiste o centro do interesse do cinema pernambucano pela estrutura das construções, parecendo estabelecer essas relações de forças históricas através da memória. Nesse caso, o monstro seria uma força em si e uma violência consequente dessa relação de forças coloniais.
A vontade que Mariana Lacerda expressa ao dirigir o documentário Menino aranha (2008) está na necessidade não só em rememorar a história de um menino que fora transformado em lenda urbana como também em expor as entranhas das estruturas de concreto em seu funcionamento de terror. Seria fazer a exaustão do concreto homogêneo ruindo pelos movimentos moleculares e insurgindo diante da clausura do emparedamento: olhar para a fissura e ver nos monstros, um encontro com a alteridade. Os relatos sobre a vida de Tiago (Menino Aranha) são o pouco que sobrou de sua memória, a lembrança que os outros tinham daquela criança que tanto os afetou.
Tiago foi, em quase toda sua vida, marcado como uma lenda urbana real. A criança que desde seus sete anos escalava prédios de trinta andares para furtar. A vida de Tiago e as imagens que rondam sua pessoa colocaram à prova determinado sentido de segurança nas construções. A existência de uma criança capaz de escalar edifícios sem nenhuma ferramenta ou treinamento fez com que a concepção de uma arquitetura vertical fosse posta em perigo. Desse modo, toda uma “arquitetura do medo” começa a mostrar suas brechas. Por conseguinte, qual sentido se coloca em uma criança que põe um sistema em questionamento? Quando sequer o andar mais alto oferece segurança, o que se faz com o perigo? A lenda urbana tem como coextensão em sua atuação, a paranoia. A paranoia se constrói na medida que o perigo está sempre presente, a iminência do monstro à espreita. Assim, Tiago foi determinado a transformar-se no Menino Aranha.
Durante sua vida, o Menino Aranha esteve dotado, pelos relatos do filme, por um particular interesse em sua história por diversos setores da sociedade. O interessante e temível caso do garoto que conseguia escalar as paredes dos prédios foi assunto de polícia, direitos humanos, mídia, permeando todo o imaginário da cidade, principalmente sob aqueles que viviam em Boa Viagem, na segurança dos seus altos andares. Tiago batizado como lenda urbana teve configurado sua imagem enquanto monstro. A criança que nasce no domínio do duplo, no misto de duas espécies, o humano e o aracnídeo. Para esse menino não existia um estatuto, leis que pudessem enquadrar com a sua configuração. Dentre os relatos no filme de Lacerda, o juiz alegava que “não tinha uma normativa que se enquadrasse o Menino Aranha”. Não sabiam, de fato, como lidar juridicamente com a existência de Tiago. A figura de uma criança torna-se um verdadeiro questionamento sobre os limites do corpo humano, da própria humanidade, como, também, do direito.
O Menino Aranha, como um monstro, tem a vontade em mostrar, apontar para as brechas e os extremos da lei. José Gil entende o monstro como um excesso de presença, uma existência que se afirma no excesso detalhado do real: “o monstro mostra. Mostra mais que tudo o que é visto, pois mostra o irreal verdadeiro” (GIL, 2006, p. 77). O monstro trabalha nas distâncias paradoxais de uma superabundância de realidade, as leis têm seus sentidos colocados à prova, em uma trama na qual as entranhas se expõem. Gil ainda ressalta que “o monstro surge por aproximação do que deve ser mantido à distância” (GIL, 2006, p. 15). Por isso, a lenda urbana carece do monstro para manter a normalidade. Paradoxalmente ela mantém o perigo da monstruosidade próximo para se afirmar enquanto humanidade: “os homens precisam dos monstros para se tornarem humanos” (GIL, 2006, p. 82).
Contraditoriamente existe algo de horrível e repugnante no monstro que provoca aproximar-se dele. A monstruosidade tem na tradição do horrível ocidental um nascimento a partir de um desejo podre, devasso e sujo sobre os parâmetros da moralidade. O monstro, de acordo com Gil, está diretamente relacionado à pele. A origem da monstruosidade estaria na relação com sua alma. A pele monstruosa é repugnante por colocar ao externo o interno, mostrar suas entranhas, mostrar sua alma que já não cabe nas regras do corpo. A pele é a origem da monstruosidade porque é o desejo podre e devasso da mãe que não se firma na moralidade: “a pele é a alma da mãe que se moldou totalmente no corpo do filho” (GIL, 2006, p. 90). No paradoxo em precisar do desvio para manter a norma é que a figura do monstro evidência sua relação de forças e qualidade de contracultura. É aqui que a relação do poder trabalha para não se tornar aparente, não imaginar o monstro sob o perigo dele expor os movimentos da fissura.
A esse movimento da fissura ou aberrante é que interessa a visualidade do documentário de Mariana Lacerda. Assim, o filme deteve-se em voltar suas lentes para a materialidade dos edifícios. Não possui em tela a preponderância das figuras humanas, quem emerge aqui são os prédios e como estes são filmados. A direção de Lacerda privilegiou olhar a concretude fixa a partir de movimentos de câmeras acrobáticos. Movimentos, de certa maneira, aberrantes: a câmera entra em regimes de ângulos oblíquos, as vezes filmado em plongée do topo do prédio, outras vezes em contra-plongée do térreo, mas sempre flutuante. Está sempre numa relação em que o edifício não se encontra inteiramente integrado na imagem. Existe sempre algo do exterior que vaza ao mesmo tempo em que se está muito próximo de suas paredes azulejadas. Há realmente algo de aberrante no movimento acrobático, ele sugestiona um enquadramento enquanto objetivo final para logo em seguida desenquadrar em movimento oposto. Os prédios em suas formas retangulares e fixas são completamente desajustados por estes movimentos circulares fantasmáticos da câmera. Em certa medida, essas imagens parecem desejar invadir os apartamentos. Mas, sua vontade jaz naquilo que vaza para além dos azulejos de suas paredes, um desejo de flutuar.
O movimento de câmera cheio de pequenas modulações acrobáticas estabelece uma relação estreita com a monstruosidade. Enquanto o monstro trabalha perturbando a ordem pelos desvios, a acrobacia adota “posições corporais que põe em perigo o ajustamento do sentido e das coisas” (GIL, 2006, p. 159). Portanto, as afinidades desses dois trabalhos podem ser observadas no quebrar certas regras da representação sem, por assim dizer, perder seu referente corpo. Seria uma série de desconstruir os sentidos para reconstruir logo em seguida. A acrobacia flutuante da câmera estabelece relações de escape, o prédio não tem suas bases fixas, assim como a câmera parece não está presa a nada. Nesses movimentos acrobatas sobre a matéria fixa dos edifícios, Lacerda reverte a origem do monstro. Não é mais a mãe da criança e sim a própria estrutura.
A acrobacia dos movimentos de câmera que inicia o curta-metragem já indica o regime visual do filme. O enquadramento dos edifícios a partir de seus desajustes, da desconfiguração das regras de perspectiva pictórica. O prédio nunca está numa relação com a câmera sob a regra da perspectiva. Há sempre um desarranjo no movimento ou na exposição da luz que tira a profundidade da representação da imagem. Nisso pode-se afirmar que se trata de uma relação monstruosa com a estrutura dos prédios.
O rosto do assombro
De certa forma, a figura do monstro diz muito pouco sobre a pessoa de Tiago, mas mostra muito sobre o rosto que veste a estrutura. Ao ater-se filmar os prédios, o documentário concretizou uma escolha fundante quando se trata pensar a monstruosidade. O interesse pela estrutura se dá pela atenção à sensibilidade paranoica na qual o olhar está condicionado à sensação de ser olhado de volta, observado por um estranho, por um outro. Esse jogo de olhares ocorre por meio do rosto, só se sente observado por um rosto que não o meu. Assim sendo, o Menino aranha (2008) constrói em seus planos a formação do rosto nos prédios. Aqui se entende o rosto como o primeiro-plano ou a imagem-afecção como Deleuze conceitua:
A partir do momento em que uma parte do corpo teve de sacrificar o essencial da sua motricidade para tornar-se o suporte de órgãos de recepção, estes já terão principalmente tendências para o movimento ou micromovimentos capazes, para um mesmo órgão ou de um órgão para outro, de entrar em séries intensivas. O móvel perdeu seu movimento de extensão e o movimento tornou-se movimento de expressão. É este o conjunto de uma unidade refletora imóvel e de movimentos expressivos que constitui o afeto. Mas não é a mesma coisa que um Rosto em pessoa? (DELEUZE, 2018. p. 142).
Os leves movimentos acrobáticos que flutuam entre a superfície dos prédios, quase por querer tocar os poros da textura das paredes, não são movimentos de locomoção, mas de expressão. A aberração criada entre a mobilidade circunscrita da câmera ao gerar enquadramentos oblíquos nos modelos retangulares dos prédios designa essa espécie de afeto monstruoso. Os enquadramentos estáticos das sacadas dos prédios são também parte do rosto dessa arquitetura do Recife. A preponderância da tela tomado pelo preto e o amarelado das luzes formando o retângulo das janelas constituem os micromovimentos expressivos do rosto. O Menino aranha parece tomado por essa imagem-afecção que mantém a relação monstruosa com a estrutura.
De fato, o filme produz um rosto paranoico, mas não transforma o prédio em monstro em si, contudo, mantém com ele uma relação de monstruosidade. O rosto é paranoico porque a câmera semelha observar a todos num plano virtual. Em momentos parece estar num sentido voyerista, noutro de tentar invadir um apartamento, mas são sempre sugestionamentos não concluídos. A monstruosidade sobrevém no limiar dos extremos, na quebra dos parâmetros e nos desvios das formas. O prédio não pode ser o monstro, mas em sua estrutura os monstros fazem ver e se expressam. Nesse sentido, é que a atuação da câmera tem uma relação monstruosa com a estrutura, pois é a expressão do monstro na imagem-movimento em si e não na representação do objeto filmado. Seu processo paradoxal consiste em ser o monstro e desfazer a figura que produz a monstruosidade: desfazer para fazer novos sentidos.
A vontade em produzir o rosto da estrutura, buscar a origem da monstruosidade na relação de forças (poder) vem da necessidade sincera em encontrar outro rosto. Um rosto fora do regime da lenda. Que se forma no fabular dos relatos de vários outros que foram afetados com o encontro do jovem Tiago. Diante dos encontros e situações que os relatos trazem sobre a presença do menino na vida de cada uma dessas pessoas e como elas fizeram parte da vida desse jovem. O rememorar vida de Tiago pela memória de outras pessoas se processa através da relação que a estrutura confere à pele da monstruosidade. Tiago foi um jovem negro morador do Recife que fora assassinado aos dezoito anos com catorze tiros no bairro nobre de Boa Viagem. Não morreu do perigo ao qual se submetia ao escalar edifícios, morreu sob a perspectiva da lei. Por mais que não se possa afirmar que fora morto pela ação do Estado, a organização da lei, a lógica de estrutura da arquitetura do medo, o racismo, que lhe conferiram o estatuto de lenda urbana, foram determinantes em sua morte.
Elaborar a memória de sua vida é antes de tudo tentar buscar seu rosto enquanto Tiago. Por isso, o filme finaliza com o único primeiro-plano de uma pessoa. Um vídeo caseiro cheio de ruídos de fita magnética com baixa resolução, com movimentos bruscos, comum à estética de imagens das festas de colégio e de famílias. Nessa imagem, o filme apresenta a criança Tiago festejando o São João na FUNDAC (Fundação de Apoio à Criança e ao Adolescente) com a alegria que merece uma comemoração.
Nenhuma imagem posta em qualquer texto pode sintetizar os efeitos, muito menos representar, todos os blocos de sensações de um filme. Mas, essa imagem final tomado pelos ruídos do magnetismo e dos movimentos bruscos de câmera na mão foi, para este texto, a força que fez querer escrever. A vontade vem no movimento de transmutação, no trabalho ético em olhar para imagem, dentro de sua baixa resolução ruidosa, o rosto desmedido de uma criança. Essa imagem mantém uma força que não quer ser esquecida ou mantida como uma lenda urbana, tal como fora determinado pelas imagens de alta resolução. Finaliza-se este ensaio com esse último plano de Tiago em Menino aranha (2008) por essa vontade de memória que é permeada por uma necessidade política.
Felipe da Silva Borges é mestrando no programa de pós-graduação Meios e Processos Audiovisuais da Universidade de São Paulo (USP), Bacharel em Cinema e Audiovisual pela Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB). Colaborou para a produção de 11 curtas, atuando nas funções de direção de fotografia, montagem e finalização de cor, e participou, junto ao SONatório, em 6 performances audiovisuais durante a graduação. Atualmente dedica-se a pesquisa nas áreas da imagem audiovisual e da cultura com foco no horror cinematográfico.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
DELEUZE, Gilles. A imagem-movimento. São Paulo, SP: Editora 34, 2018.
_______________. Foucault. São Paulo, SP: Brasiliense, 1998.
FOUCAULT, Michel. Os anormais. São Paulo, SP: Editora WMF Martins Fontes, 2010.
GIL, José. Monstros. Lisboa, Portugal: Relógio D’Água Editores, 2006