ATMOSFERAS GÓTICAS: O CINEMA E O INSONDÁVEL DAS IMAGENS

Por José Cláudio S. Castanheira

Introdução

O romance gótico é comumente associado à presença de elementos sobrenaturais, que podem se apresentar na forma de criaturas abjetas, eventos misteriosos ou ambientes sombrios. Especialmente no caso de filmes de terror e suspense, alguns dos personagens mais populares do cinema são provenientes de romances góticos. Parte do fascínio que tais personagens e obras suscitam pode ser atribuído à tentativa de descrever sensações fugazes, impalpáveis. As sensações se originam no estranhamento do ser humano diante do improvável, do inverossímil. Por se tratarem de percepções e sentimentos além do horizonte humano, são dificilmente traduzíveis em palavras. O texto escrito, expressando a mesma surpresa que nós leitores experimentamos diante do estranho, tenta abarcá-lo, apreendendo pelo menos parte das impressões mais facilmente figuráveis através da linguagem. Não raro o texto vale-se de descrições minuciosas e de adjetivações profusas de modo a dar conta do deslumbramento diante de fenômenos além da compreensão. Victor Frankenstein assim descreve sua visão do alto do Montanvert, nos Alpes:

Lembrei-me do efeito que a visão daquela geleira imensa e em eterno movimento produzira em minha mente quando a contemplara pela primeira vez. Enchera-me, então, de um êxtase sublime que dera asas à minha alma e lhe permitira voar acima do mundo obscuro rumo à luz e à alegria. A visão do que havia de mais majestoso e aterrador na natureza de fato sempre tivera o efeito de transportar minha mente para um estado solene e fazer com que eu esquecesse as preocupações passageiras da vida. (SHELLEY, 2014, edição eletrônica)

O encantamento (e também o horror) que constantemente acomete os personagens deriva do fato de que lhes é impossível lidar com eventos tão poderosos, especialmente em razão da limitação humana. Victor Frankenstein, ao ver seu experimento tomar vida, surpreende-se com sua própria criação: “Como posso exprimir minhas emoções diante dessa catástrofe, ou descrever o ser miserável que eu lograra formar através de sofrimentos e cuidados infinitos?” (SHELLEY, 2014, edição eletrônica). Tais acontecimentos inevitavelmente levam à ruína tanto os personagens principais quanto aqueles ao seu redor, mesmo que tenham de antemão consciência desse destino miserável. Fenômenos naturais, seres monstruosos e mesmo pragas desconhecidas são obstáculos insuperáveis para os personagens. Mais do que isso, são irredutíveis ao modelo de conhecimento de mundo pautado apenas pela racionalidade. Em Frankenstein, a menção a teses científicas populares no século XIX, como, por exemplo, o galvanismo, ilustra uma curiosidade dos autores do período em relação às maravilhas da ciência moderna, mas ainda assim não diminui a atração pelo oculto, pelo desconhecido, tanto no mundo quanto na alma humana. É justamente esse mistério que, valendo-se de requintadas estruturas literárias e do desvelamento de um contínuo entre sensações antes subterrâneas, aspectos secretos dos personagens, e o universo exterior de forma enigmática e ameaçadora, encontra no cinema um meio de expressão poderoso.

Este texto parte da hipótese de que o cinema forneceu os meios materiais necessários para a presentificação, de forma mais tangível, de fenômenos anteriormente apenas sugeridos pela literatura. Um novo repertório de imagens, dessa vez não apenas mentais, tomou o lugar das figuras de linguagem e das descrições minuciosas. O inescrutável do romance gótico, por sua vez, serviu como base profícua para um tipo de filme — o horror, o mistério — que também atrairia um público bastante fiel.

Começamos esta análise com algumas definições no campo da teoria literária.

A atmosfera e o extralinguístico

Ao analisar as mudanças nos paradigmas teóricos dentro dos estudos literários a partir da segunda metade do século XX, Gumbrecht (2014) descreve duas posições que divergem quanto à relação entre o texto literário e a realidade empírica. O desconstrucionismo, parte da “virada linguística” da filosofia, negando o contato imediato entre linguagem e realidade. Para teóricos dessa corrente, a linguagem não se refere nunca diretamente ao mundo, uma vez que as funções da literatura e os modos de relacionamento com os textos seriam apenas “alegorias da leitura” (GUMBRECHT, 2014, p. 11).

Por outro lado, os estudos culturais, baseados em metodologias quantitativas e empíricas, dariam primazia às realidades extralinguísticas. Evitando essa polarização, Gumbrecht sugere os contornos de um tipo ampliado de ontologia da literatura, a qual ele define como: “o conjunto de modos fundamentais como os textos literários — enquanto fatos materiais e enquanto mundos de sentido — se relacionam com as realidades que existem fora deles” (GUMBRECHT, 2014, p. 10).

Para fugir a essa dicotomia — linguagem vs. realidade —, que considera infrutífera, Gumbrecht sugere a adoção de “terceiros”: perspectivas de análise alternativas que, entre outras peculiaridades, levariam em conta aspectos materiais e sensíveis do texto literário. A concepção de Stimmung, que o autor propõe, traz semelhanças com as noções mood e climate, mas não se restringe apenas aos estados interior e exterior, como sugerem os termos em inglês. Stimmung propõe uma continuidade entre o estado de espírito e as condições atmosféricas. Tanto a dimensão atmosférica (de forma ampla) quanto a dimensão musical, que o verbo stimmen (afinar) evidencia, tratam de eventos que envolvem os corpos. Eles são, por assim dizer, tocados pelo espaço a sua volta. O termo resgata, até certo ponto, elementos das noções de “materialidades’ e de “presença” que o próprio Gumbrecht descreveu em escritos anteriores (2010; 1994). A semelhança entre essas ideias está no fato de que os diferentes textos (literários ou não) dispõem de camadas de sentido que não são alcançadas apenas pelo exercício hermenêutico. Há uma conexão mais imediata com os sentidos fisiológicos e com as relações subjetivas criadas entre leitores/espectadores e a forma/matéria dos objetos. Ao descrever o que ele chama de “culturas de presença” (2010), o teórico enfatiza o espaço como condição determinante da existência das coisas e como o lugar onde os diferentes corpos entram em atrito. A “violência” dos corpos em choque, convivendo em um mesmo ambiente, é uma característica das formas de expressão artística. Entretanto, o caráter direto, mais físico, de nossa relação com os objetos não elimina a procura por sentidos da obra através do exercício interpretativo, apenas fornece outros dados da experiência, “aquilo que o sentido não consegue transmitir”, nas palavras do próprio Gumbrecht (2010).

Ler com a atenção voltada ao Stimmung” sempre significa prestar atenção à dimensão textual das formas que nos envolvem, que envolvem nossos corpos, enquanto realidade física — algo que consegue catalisar sensações interiores sem que questões de representação estejam necessariamente envolvidas. (GUMBRECHT, 2014, p. 14)

A tradução das imagens subjetivas em palavras sempre foi um desafio, ainda mais no caso do romance gótico. Há um forte caráter sinestésico, buscando e enfatizando os estímulos sensoriais, sugerindo dimensões mais abissais das situações e dos personagens. Ao mesmo tempo em que se procura uma conexão íntima com o leitor, insinuando mesmo respostas físicas, imergimos em um universo psicológico pouco claro e de difícil alcance, como vemos nesta passagem de Drácula, de Bram Stoker:

O hálito era doce, num certo sentido; doce como mel, e causava em meus nervos a mesma sensação que suas risadas. Havia algo de amargo sob o aroma doce, porém, e um tanto repugnante, como o cheiro do sangue. (STOKER, 2014, edição eletrônica)

O seguinte trecho explicita a dificuldade para definir o impacto de imagens sublimes através de palavras:

Levantei-me em silêncio e, afastando a veneziana, olhei para fora. A lua estava brilhante, e o efeito suave da luz sobre o mar e o céu — fundidos num único e silencioso mistério — era mais belo do que as palavras poderiam descrever. (STOKER, 2014, edição eletrônica)

A natureza, além de moldura complacente para os acontecimentos da narrativa, converte-se, muitas vezes, em ameaça onipotente para os personagens. Assim, o encantamento que o meio exerce confunde-se com um temor de se ver perdido ou destruído pelo próprio ambiente: monumental e alheio aos tormentos humanos. Mary Shelley deixa transparecer muito dessa cruel majestade em suas descrições das paisagens geladas dos Alpes e do Ártico, tanto em seus romances quanto em seus diários de viagem:

Já era depois de meia-noite quando fui acordado por batidas violentas na porta. O inverno ia longe. Nevara, e ainda nevava. O vento assobiava por entre as árvores desfolhadas, arrancando delas os flocos brancos que caíam. Por um tempo, o terrível gemido delas e o som das batidas se misturaram aos meus sonhos, mas enfim acordei. (SHELLEY, 2020, edição eletrônica)

Em O último homem, a ameaça, uma praga desconhecida, é ação direta e inexplicável da natureza. Paradoxalmente, o frio converte-se em uma esperança de que o mal que dizima a humanidade seja contido. A beleza e serenidade do clima ameno é descrita, portanto, como uma maldição:

Temíamos o ar brando. Temíamos o céu sem nuvens, a terra coberta de flores e as deliciosas florestas — pois voltamos a encarar o tecido do universo já não mais como nosso lar, e sim como nossa tumba, com a terra perfumada cheirando a medo como em um amplo cemitério. (SHELLEY, 2020, edição eletrônica)

Em alguns casos a natureza interpela diretamente o protagonista, fazendo as vezes ou mesmo transmudando-se no próprio ser misterioso e ameaçador, elemento motor da narrativa:

Dessa vez, eu me lembrava de que estava deitado no compartimento de carvalho e ouvia claramente a ventania e a neve açoitar o telhado; também ouvia o galho do pinheiro repetir seu ruído incômodo, e sabia de onde vinha o barulho — mas me incomodava de tal modo que resolvi silenciá-lo. […]

— Tenho de acabar com isso, de qualquer maneira! — murmurei, atravessando a vidraça com o punho fechado e esticando o braço a fim de agarrar o galho inoportuno. Em vez disso, meus dedos se fecharam sobre os de uma pequenina e gélida mão!

O horror intenso do pesadelo me invadiu: tentei puxar de volta o braço, mas a mão se apoderara dele, e uma voz extremamente melancólica soluçou:

— Deixe-me entrar… deixe-me entrar! (BRONTË, 2018, edição eletrônica)

Dessa forma, esses romances, através de metáforas, alegorias e demais recursos poéticos, tentam fundir a sensibilidade do leitor à dos personagens. O uso comum do discurso indireto livre ou de técnicas específicas, como a narrativa desenvolvida através de cartas ou trechos de diários, também ajuda a criar uma sensação de realismo e de identificação com os sentimentos evocados pelo drama. Fazendo isso, o romance gótico contribuiu para a construção um repertório de imagens insólitas, que não se referem apenas a uma realidade inusitada, mas a essa realidade transformada por perturbadoras dimensões internas e externas aos personagens. O leitor, deparando-se com esse desconforto, é levado a processar e normalizar tais imagens de modo a tornar esse mundo inexplorado um pouco mais reconhecível.

O cinema como novo repertório de imagens

Se o romance gótico ajudou no desenvolvimento de um repertório de imagens originais, tratando de dimensões desconhecidas da alma humana e de realidades não aventadas, podemos também deduzir que o cinema ampliou, diversificou e popularizou essas imagens. Não se trata mais de imagens mentais subjetivas, de cada um dos leitores, mas de objetos materiais, perceptíveis, e comuns a todos. A objetividade da película, a experiência conjunta e ancorada em um espaço físico determinado, são fatores determinantes para que essas imagens ajudem a compor um imaginário coletivo e relativamente estável.

Algumas das representações mais canônicas das criaturas e eventos dos romances góticos nos chegaram através do cinema. Como exemplo, podemos citar a criatura de Victor Frankenstein, costumeiramente associada à caracterização feita por Boris Karloff para o filme de 1931, de James Whale. Ainda que no romance os traços do monstro sejam pouco detalhados, com destaque especial para a cor amarelada dos olhos, tanto o formato quadrado da cabeça quanto os parafusos salientes no pescoço — presentes no filme — são inevitavelmente lembrados como parte essencial de sua figura. Outra imagem que inevitavelmente nos acomete, também relativa ao filme de Whale, são os raios da tempestade e as centelhas percorrendo os equipamentos do laboratório de Frankenstein enquanto a criatura é içada para que a eletricidade, manifestação aterrorizante da natureza, possa revivê-la. Não há, no romance, descrição exata dos procedimentos utilizados pelo cientista em seu experimento, apenas a menção discreta ao efeito de galvanismo, como já comentamos.

Foi numa lúgubre noite de novembro que contemplei a conquista de meus pesados trabalhos. Com uma ansiedade que era quase agonia, coletei os instrumentos da vida ao meu redor, para que pudesse infundir uma centelha na coisa inanimada aos meus pés. Já era uma da manhã; a chuva batia melancolicamente contra as vidraças e minha vela fora quase toda consumida, quando, sob sua luz débil, vi o torpe olho amarelo da criatura se abrir; ela respirou fundo, e um movimento convulsivo agitou seus membros. (SHELLEY, 2014, edição eletrônica)

No filme, durante o clímax da cena em que a criatura desperta, entretanto, tudo o que o cientista consegue dizer é “It’s moving! It’s alive! It’s alive”, repetindo estas palavras freneticamente, tomado por uma incontrolável euforia. O transtorno de Victor Frankenstein, tanto por ter sucedido em seu projeto, quanto por se ver perseguido e encurralado por sua criação, não podem ser traduzidos em palavras. Seus gritos, seus gestos, sua momentânea perda de razão são uma forma eficaz de dimensionar o peso dos acontecimentos.

O longa-metragem Drácula (1931), dirigido por Tod Browning e Karl Freund, vale-se também do magnetismo exercido pela figura de seu protagonista, Bela Lugosi, para construir uma imagem — que se tornaria estereotipada e incansavelmente repetida — do conde Drácula. Fatos da vida pessoal do ator, como ter sido sepultado com o traje de Drácula (a seu pedido, segundo a crença popular), contribuíram para fortalecer a associação deste não apenas a esse personagem específico, mas a todo o gênero de horror. No filme, ele é econômico ao se apresentar — “I am Dracula!” —, deixando que seu olhar terrível, emoldurado pelas sombras, seja um aviso da ameaça que ele representa. Algumas das indicações do comportamento e das características físicas do personagem estão presentes no livro, contudo muito da representação de Drácula, contemporaneamente, resulta de uma adaptação e mesmo de uma recriação que tanto o filme de 1931 quanto versões posteriores realizaram.

De certo modo, os filmes foram capazes não apenas de refinar as imagens propostas pelos romances originais, mas também criar novas dimensões dessas representações. Dimensões que se cristalizaram na cultura popular e que, por sua vez, acabam gerando novas representações. Dizer que os filmes se beneficiaram de um imaginário desenvolvido nos romances é correto, mas também é verdade que esses personagens e situações ganharam proporções ampliadas no cinema e foram capazes de sugerir sentidos que os livros, por si só, não eram capazes de fazer. Trata-se de uma ecologia distinta de imagens. Imagens cinematográficas relacionam-se umas com as outras e definem um estar no mundo que é maior do que as palavras podem expressar. Apesar do aspecto bidimensional (na forma de projeção clássica) da imagem e da limitação às percepções visual e auditiva, o filme existe de uma maneira corporificada, identificando-se, de forma atávica com a plateia. As experiências são compartilhadas através do tempo e do espaço, reduzindo a necessidade de explicações e de interpretações a uma pequena parte da experiência. A imagem visível de uma montanha gelada é imediata, física. A sensação de terror e de deslumbramento por ela provocada também.

Conclusão

Ao mesmo tempo em que as imagens cinematográficas representam um aprendizado de vivência e de compreensão do mundo, elas também podem resultar em uma simplificação desse mesmo mundo. Mesmo que consideremos como inesgotável a capacidade de produção de imagens sobre os diferentes mundos possíveis, na realidade e na ficção, devemos entender que a categorização e a estereotipagem também são inevitáveis. O cinema clássico narrativo foi um importante agente dessa categorização, propondo arquétipos que, repetindo-se através dos anos, proporcionaram uma experiência mais confortável às diferentes plateias. Se pensarmos o cinema como ferramenta ideológica incomparável (especialmente durante o século XX), podemos facilmente constatar como ele contribuiu para a padronização dos modos de ver e de habitar o mundo. Esse é, infelizmente, um projeto simplificador da existência das imagens e, portanto, da existência humana. A imagem cinematográfica pode e deve ser pensada como um facilitador de uma intersubjetividade em termos temporais e geográficos, mas nunca como um achatamento da percepção ou da consciência. O romance gótico buscava, nas entrelinhas, o intangível. O cinema, diante do inalcançável da vida, deve nos propor o indizível.

José Cláudio Siqueira Castanheira é doutor em Comunicação Social pela Universidade Federal Fluminense – UFF. Mestre em Comunicação Social pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ (2010). Possui graduação em Cinema pela Universidade Federal Fluminense (1994). É professor do curso de Cinema da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e líder do grupo de pesquisa GEIST/UFSC (Grupo de Estudos em Imagens, Sons e Tecnologias) – CNPq. Pesquisador nas áreas de cultura digital, música, estudos do som e cinema

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BRONTË, E. O morro dos ventos uivantes. Rio de Janeiro: Zahar, 2018.

GUMBRECHT, H. U. Atmosfera, ambiência, Stimmung: sobre um potencial oculto da literatura. Rio de Janeiro: Contraponto: Editora PUC Rio, 2014.

GUMBRECHT, H. U. Produção de presença: o que o sentido não consegue transmitir. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC-Rio, 2010.

GUMBRECHT, H. U.; PFEIFFER, K. L. (Eds). Materialities of communication. Stanford: Stanford University Press, 1994.

SHELLEY, M. Frankenstein ou o Prometeu moderno. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2014

SHELLEY, M. O último homem. São Paulo: Plutão Livros, 2020.

STOKER, B. Drácula. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2014.

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