CINÉTICA MONSTRUOSA DAS METAMORFOSES

Por Guilherme Sarmiento

Em meados da década de 1980, a Rede Globo de Televisão veiculou em sua grade de programação um seriado que obteve grande sucesso entre o público infanto-juvenil. A atenção massiva dispensada pelos adolescentes, no entanto, foi insuficiente para que Manimal chegasse a uma segunda temporada. Talvez o fôlego curto da empresa pudesse ser explicado pelo seguinte: o roteiro de Manimal girava em torno de uma única cena invariavelmente obrigatória para seus fãs. Toda a obra se sustentava nos apelos visuais de uma metamorfose. E assim, a atenção se mantinha alerta ao momento em que o Dr. Jonathan Chase, interpretado por Simon MacCorkindale, sofreria diante dos olhos dos espectadores mais uma incrível transformação corporal. Sua estrutura óssea adquiria uma configuração radicalmente nova; sua pele quase se rompia com a deformação, como se dentro dele um animal se debatesse e solicitasse maior espaço para se movimentar. Ao final, o herói transfigurava-se em pantera ou em águia e executava sua ação redentora. De quebra, os jovens admiradores do seriado satisfaziam-se em flagrar a transição xamânica na qual o homem e a fera se viam por alguns segundos confundidos, como a criança e o adulto se confundiam em seus próprios corpos adolescentes.

Hèlène Kuntz, em seu verbete sobre o “Belo Animal”(SARRAZAC, 2012, pp. 41-43), na compilação Léxico do Drama Moderno e Contemporâneo, diria que este fascínio tem motivação contextual. A contemporaneidade deu à narrativa instrumentos para colocar a poética clássica em crise. Já não se exigia mais do drama uma totalidade ordenada, garantia de um encadeamento lógico cujo resultado seria a harmonia entre as partes para a expressão do belo. Jean Dhombres, professor de matemática da Universidade de Nantes, concordaria com ela por um outro viés: para nossa época, a forma passou a ser associada a “alguma coisa” mais dinâmica “que expressa a mutação, que expressa a evolução, e, portanto, que expressa o tempo” em vez de algo estático, definitivo e solidificado em uma unidade idealizada (NOËL, 1996, p.16). Tanto para os narratólogos como para os geômetras a qualidade formal dada por uma figuração, a partir de um determinado momento, passou a ser a expressão gráfica do movimento ativado por uma morfogênese. Isso se confirma quando se observa o entorno cinematográfico de Manimal. Na década de 1980, vimos nascer obras como A mosca, de David Cronenberg, ou A marca da pantera, com os protagonistas prontos para inscrever em seus próprios corpos o paradigma de uma época sujeita a metamorfoses monstruosas e fascinantes. Na virada do século, a franquia Transformers levou até o extremo essa fascinação escópica. Em segundos, a carroceria de uma caminhonete desdobrava-se para revelar o tronco de um alienígena metálico, cujos braços se abriam ao longo da carroceria e a cabeça, girando sobre um eixo, desencaixava-se de um para-choque somente para produzir o gozo de se testemunhar a fluidez de uma desagregação monstruosa.

Na realidade, resgatar essas imagens fílmicas serve para mostrar que “desagregação monstruosa” soa como um pleonasmo. Toda desagregação tem um quê de monstruoso talvez porque todo monstro encerre em si um processo de mutação – a exposição de sua face revela que foi abortado antes de se fixar como algo “concluído”. Mirá-lo tem o mesmo efeito de se deparar com o enigma da própria vida em suas contínuas tentativas de se desfigurar para o surgimento do novo. O atrativo no monstro deve ir além da superabundância transgressora, conforme o apontado por José Gil, já que a superabundância transgride o próprio contorno do semblante, conferindo-lhe solvência em meio a um campo de forças prototípicas. No clássico Frankenstein, o protagonista, antes de alcançar êxito, por exemplo, teve de se debruçar diante do processo de decomposição para revertê-lo em proveito de sua criatura. Assim, o monstro nasce como o redirecionamento de uma travessia, um refluxo da morte sobre a vida ou uma injeção de vida sobre a matéria inerte, com o consequente domínio das etapas que preenchem os aspectos de uma transição:

Eis que me via agora induzido a examinar a causa e a evolução dessa destruição, tendo, para tanto, de passar dias e noites em tumbas e casas mortuárias. Minha atenção fixou- se especialmente nos detalhes de deterioração mais suscetíveis de ferir a delicadeza do sentimento humano. Via de perto como a forma humana se degradava e se corrompia gradativamente. Assistia à podridão da morte se espargindo sobre a face florida da vida. E via essa coisa maravilhosa que é um olho, ou um cérebro, tornar-se a fonte de nutrição de um verme. ( SHELLEY, 2021,P. 62)

Algo parecido – porém qualitativamente diferente – ocorria nas Metamorfoses, de Ovídio: Calvino, que selecionou a obra para constar entre os clássicos incontornáveis da literatura, leu-a como a resposta do poeta a um universo percebido em suas contiguidades: as formas históricas e terrestres (os mitos, as lendas, as personalidades) restariam como reflexos das celestes (o universo, os deuses, o mundo subterrâneo), num contínuo de correspondências fluidas e dinâmicas (CALVINO, 1993, p.32). Finalizar sua cosmogonia com a biografia de Pitágoras, para quem coisa alguma mantinha a mesma aparência, dissolvendo-se, perdendo peso, contraindo-se e precipitando-se como o som de uma cítara, explicava o próprio teor de um poema onde as metamorfoses dos seres catalogavam as infinitas possibilidades das formas vivas. Não por outro motivo Costa Lima considerou Metamorfoses como a base de construção do universo ficcional, por assumir dentro da narrativa as dissoluções implícitas no jogo entre verdade e mentira, e alocando no espaço da criação literária a plasticidade de um semblante modulado pela dissonância do imaginário(LIMA, 2006, p.229). Quando Io, por exemplo, através da interseção do deus Júpiter, volta a ser humana e deixa de ser uma vaca, há um cuidado de iniciar a descrição pelo sumiço dos pelos e dos chifres, o estreitamento da órbita dos olhos e da boca, o retorno dos ombros e das mãos,

o casco cai dando lugar a cinco unhas;/Cada de vaca resta, a não ser a candura;/contente com o uso dos dois pés, a ninfa/se ergue, hesita falar com medo de mugir/como rês, e reensaia as palavras perdidas.(CARVALHO, 2010, p.61)

O processo descrito por Ovídio não perdeu a sua relevância durante os quase dois mil anos até que fosse apropriado pela equipe de produção de Manimal. O doce pausar entre as etapas de reorganização corporal e vocal onde a besta aos poucos readquiria sua feição humana, desfigurando-se até a deformidade, encontrou no cinema um outro nível de apresentação figural. Isso não quer dizer que esta trajetória tenha sido sem percalços, porque tais mesclas mágicas e atrativas ao olhar nem sempre foram benquistas pelos poetas ou teóricos que desde a antiguidade consideravam-se sentinelas de quaisquer sinais de “degeneração” da arte. Horácio em seu influente Ars Poética retomaria Aristóteles ao censurar o pintor que “junta a uma cabeça humana um pescoço de cavalo” comparando o arranjo a um sonho doentio, “sem pé nem cabeça”( AVELAR, 2018, p.65). Locke utilizará o mesmo exemplo, o do centauro, para diferenciar as ideias reais das fantásticas, estas últimas consideradas fora dos “padrões existentes”, em relação de “inconsistência” e “contradição” com o dado “real”(LOCKE, 1999, p.493) A falta de lastro com o referente, por outro lado, prometia às ficções uma autonomia que em curto prazo modificou consideravelmente seu estatuto criativo. Se desde Vitrúvio criticava-se, na arquitetura, as cornijas, os candelabros ou os tímpanos, cujo desenho juntava o talo vegetal a um tronco humano sem critério de “verdade”, já no final do século XVIII o grotesco havia, pelo menos, encontrado um nicho para se enquadrar obras perdidas em alucinadas volutas metamórficas(KAYSER, 2013, p. 56). Schlegel, em Conversação sobre poesia, encontrou um ideal de beleza na confusão aparente do arabesco, para ele integrado ao próprio caráter fragmentário e misterioso da natureza em suas contantes e infinitas mutações.

Então, não será de todo estranho que a arte, conforme avançava em direção ao século XX, fosse abrindo um caminho potencialmente estimulante para a exploração visual das metamorfoses. Certamente, a literatura continuou a aprofundar esses experimentos atenciosa ao detalhe de uma mutação, porém o domínio dessa técnica, encontrou no período sua vocação apresentativa, além da descritiva, aberta pelo campo de trocas sensíveis proporcionado pela cultura visual. Não há como ignorar que a integração dos anamorfemas à prosa romântica veio acompanhada, se não prognosticada, pelas anamorfoses propriamente visuais e auditivas que então proliferavam nos espaços públicos e particulares setecentistas. Com seus recursos ensaiados em trezentos anos de pesquisas físicas, as projeções óticas atingiram um patamar até então inédito na produção de efeitos visuais antes mesmo que o cinematógrafo obtivesse sua hegemonia mercadológica. Parte daquilo que hoje, na linguagem cinematográfica, conhecemos como “efeito de transição”(fusão, fade in, fade out, janela etc.) foi projetado em aparelhagens que se movimentavam mecanicamente para induzir a impressão do fluxo de surgimento e de desaparecimento de um semblante em uma sala escura. Desde o final do século XVIII, a aquisição do domínio técnico daquilo que, cinquenta anos depois, seria denominado de Dissolving views(vistas dissolvidas), já deslocava a imagem para uma zona de indeterminação favorável às metamorfoses ambulantes.

Alguns testemunhos dessa atividade já são de domínio público, especialmente após a revisão histórica realizada por pesquisadores empenhados em seguir o rastro que o invento dos irmãos Lumière fez por apagar. Aqui se impõe o desafio de se rever o próprio conceito de imagens em movimento, ampliando-o para suportar experiências mecânicas que plasticamente resultavam em efeitos, para a época, suficientes para criar essa impressão. O uso das projeções luminosas forneceu o suporte ideal para se fundir dois ou mais semblantes pelo movimento mecânico de aparatos de projeção de imagem, dando suporte cênico e tecnológico às metamorfoses até então sugeridas pela descrição literária. Pode-se vislumbrar o impacto sensorial desses espetáculos recorrendo às palavras de Paul Philidor, um dos seus primeiros executores. Em um reclame de jornal publicado em 14 de março de 1793, o misterioso personagem que se autoproclamava “engenhoso físico” descreveu da seguinte forma o conteúdo de sua apresentação:

Um ponto luminoso atravessa a distância da noite profunda: brilha, prende vossos olhares; logo ele se move, aproxima-se, agiganta-se ao mesmo tempo e toma uma configuração que se define e torna-se mais distinta a cada passo que dá, até que, a quatro ou cinco pés de distância, esse ponto imperceptível vos represente o fantasma ainda luminoso de Mirabeau (MANONNI, 2003,p. 158).

Prosseguindo com sua descrição, Philidor dava a entender que, em seguida, uma sucessão de outras imagens aparecia e desaparecia fundindo-se umas às outras: o diabo, o Imperador José II e o Padre Maury. As possibilidades abertas pela lanterna mágica para sobreposição de perfis readmitiu a metamorfose, no século XIX, como amalgama fantasmagórico entre o visível e o invisível. Realmente, uma forma que se dissolve para se tornar outra está a meio caminho da individuação, algo ainda prestes a se condensar, um amontoado de vapor cuja formação pode de uma hora para outra tornar-se algo novo ou simplesmente desaparecer no ar saturado. Robertson, outro nome importante para os espetáculos de projeções óticas, quando orquestrava o movimento de suas máquinas acesas era pra envolver o espectador nessa ambientação mágica, proteica, aterradora, na qual a vida e a morte se tocavam no salto cego em direção a um outro ser, tendo a tela como placenta e a luz como conteúdo imaterial de um gérmen à procura de assentamento. Essa instabilidade da forma será posteriormente apropriada pelos primeiros mestres do cinema, interessados em pesquisar as novas potencialidades expressionais proporcionadas no intervalo aberto na sucessão de quadros.

George Meliès, herdeiro direto não somente do teatro de vaudeville, como da linguagem já experimentada pela fantasmagoria, em The haunted castle promoveu um verdadeiro e alucinante balé de metamorfoses manipuladas no limite do corte seco. Logo no início, um morcego some em meio a fumaça de uma explosão para que um homem adquira forma com resíduos de bruma. Em Meliès, o truque ainda não se firmou como “trucagem”. Levará um tempo ainda para que as fusões se introduzam entre os fotogramas e retenham as camadas de tempo e de espaço, sobrepondo-as como a fixar por alguns segundos o rastro de um escoamento. Esse recurso será utilizado sobretudo pelas vanguardas surrealistas ao entender os sonhos como resultado de associações, deslocamentos e condensações de imagens, muitas vezes, sem um nexo aparente entre elas. A sobreposição da lua sobre o olho, logo na abertura de Um cão andaluz, não somente equipara, a nível metafórico, o órgão ao satélite, como referenda o caráter fluido da forma reduzida aos caprichos da imaginação criadora. Bergson, no momento de descrever o fenômeno da memória, encontrou no cinematógrafo e seus efeitos de transição o conjunto de estilemas para descrever o processo de rememoração, as sobrevivências de perfis alocados em um determinado horizonte de expectativa. Segundo o filósofo francês, a imagem rememorada:

Aos poucos, surge como que uma nebulosidade que se condensa; de virtual, ela passa ao estado atual; e, à medida que seus contornos se desenham e que sua superfície se colore, ela tende a imitar a percepção. Mas permanece ligada ao passado por suas raízes profundas, e se, uma vez realizada, não sofresse os efeitos de sua virtualidade original, se não fosse, ao mesmo tempo em que é um estado presente, algo que se destaca do passado, nunca o reconheceríamos como uma lembrança( RICOEUR, 2014, P.444).

E assim, a metamorfose emaranhou-se no indivisível liame do devir, no qual o futuro e o passado se abismam ao se aprofundarem no presente, escorrendo e ao mesmo tempo acumulando-se no estático enigma que, ao fim, erige um mundo sobre placas escorregadias. O assustador nas metamorfoses, sua face monstruosa, tem a ver com o vislumbre do provisório a sabotar constantemente a solidez de uma arquitetura, cuja ruína se anuncia desde o momento em que se conclui. Será possível construir algo sólido, permanente, em meio a um deslocamento contínuo, a uma transformação ininterrupta, que inviabiliza a legislação norteadora do próprio pensamento científico? Olhar nos olhos do monstro é encarar o desafio de se vislumbrar o trânsito alucinado das formas em seu mergulho no caos, à procura de novos e mais promissores caminhos para insuflar. Depois de tomar a memória com suas condensações de perfis e de encontrar no cinema o meio de concretizar visualmente o seu fluxo, a metamorfose chega à contemporaneidade insatisfeita com seu nível de superfície e resolve utilizar o próprio corpo como veículo para se sentir ainda mais profundamente sua experiência. A mistura de corpos com máquinas, os transplantes, experiências genéticas, e, mais recentemente, a transição de gênero, abrem possibilidades que anunciam novas classificações, ordenações, introduzem o organismo vivo para essas zonas de indeterminação ainda sem artigo definido para a interpelar. Segundo seu mais recente apóstolo, Paul B. Preciado em um artigo escrito para o jornal El país:

A decisão de “mudar de sexo” é necessariamente acompanhada disso que Édouard Glissant chama de “um tremor”. A travessia é o lugar da incerteza, da não-evidência, do estranho. E tudo isso não é uma fraqueza, mas um poder. “O pensamento do tremor”, diz Glissant, “não é o pensamento do medo. É o pensamento que se opõe ao sistema ”

Neste sentido, a metamorfose sempre será monstruosa, porque sempre transgressora da ordem, do sistema, e aberta ao acaso de uma insurgente vida. Ver um corpo em transformação atrai o olhar porque nos induz a pensar no futuro com todas as suas incertezas, a beira do abismo das formas.

Guilherme Sarmiento é Professor Adjunto de Dramaturgia e Narrativas Audiovisuais na UFRB (Universidade Federal do Recôncavo da Bahia), Doutor e Mestre em Letras pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Possui graduação em Comunicação Social, habilitação em Cinema, pela Universidade Federal Fluminense (1998).Tem experiência como roteirista de longas e curtas-metragens cinematográficos.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AVELAR, Mário. Poesia e artes visuais – confessionalismo e écfrase. Imprensa Nacional:Lisboa, 2018.

CALVINO, Italo. Por que ler os clássicos. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

CARVALHO, Raimundo Nonato de. Metamorfoses em tradução. Relatório Final apresentado ao Programa de Pós graduação em Letras Clássicas, do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, como trabalho de conclusão de pós-doutoramento. 2010.

COSTA LIMA, Luíz. História, ficção, literatura. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

KAYSER, Wolfgan.O grotesco. São Paulo: Editora Perspectiva. 2013.

LOCKE, John. Ensaio sobre o entendimento humano.Fundação Caloustre Gulbenkian, 1999.

MANONNI, Laurent. A grande arte da luz e da sombra. São Paulo: Editora UNESP, 2003.

PRECIADO, Paul B. “Ser trans é cruzar uma fronteira política”, Paul B. Preciado: Ser ‘trans’ é cruzar uma fronteira política | Cultura | EL PAÍS Brasil (elpais.com), acessado em 15 de setembro de 2021.

RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esqueccimento. São Paulo: Editora Unicamp, 2014.

SARRAZAC, Jean-Pierre. Léxico do drama moderno e contemporâneo. São Paulo: Cosac e Naify. 2012.

SHELLEY, Mary. Frankenstein. Baixar Frankenstein – Mary Shelley ePub PDF Mobi ou Ler Online (elivros.love) , acessado em 08/08/2021

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