ONDE COMEÇA, ONDE TERMINA O EXPRESSIONISMO?

Por Jacques Aumont

Tradução Fernanda Martins

À guisa de introdução

Fazer duas perguntas é evidentemente uma facilidade: isso evita fazer apenas uma, que arriscaria permanecer sem resposta. Interrogando-me, há uns vinte anos, sobre o que poderia ser o expressionismo no cinema, eu encontrava somente essa saída:“o expressionismo no cinema, alemão ou outro, não existe e nunca existiu”.(AUMONT, 2007)

Sob a arrogância do enunciado, advinha-se o embaraço: como definir no e para o cinema o que se tem tanta dificuldade de definir nas e pelas outras artes, no entanto munidas de sua anterioridade estética e de uma história mais positivamente assegurada? Para a pergunta frontal, que hoje eu evito: “o que é o expressionismo?”, eu encontrava respostas reveladas apenas nos truísmos (Caligari), nas proposições arbitrárias (Murnau expressionista), a saber, francas asneiras (Lang expressionista). Movimento com história complicada e mesmo confusa, há muito tempo ignorada na França, jamais compreendida, não era muito surpreendente que tenha autorizado ou engendrado tantos mal-entendidos.

Hoje eu busco modestamente o introduzir nos pontos de vista mais precisos, mais argumentados, que propõem os artigos dessa coletânea, desfazendo alguns desses mal-entendidos, e sugerindo uma ou duas razões para as quais, a despeito de todas as suspeitas legítimas que ele engendrou, o fenômeno expressionista (eu não falo de “movimento” expressionista – não no cinema em todo caso) permanece interessante, e o epíteto, a despeito de tudo, aplicável aos filmes. Eis minhas teses:

  1. “Expressionismo” é uma palavra de crítico, inventada e prometida para se opor ao “impressionismo”, o qual aparecia como muito burguês e muito pouco poético1; mas inventado para recobrir com uma etiqueta cômoda e proeminente um conjunto de obras notavelmente disparates. É um termo do gênero “surrealismo” ou “pós-modernismo”: programático, polêmico, impondo-se facilmente e por essas razões mesmas deliberadamente vago. Há, ao certo, se nos atemos a suas datas oficiais de nascimento e de morte, uma história, aliás, curta; e se nos detemos às suas principais ideias, ele é muito simples. Mas se buscamos a sua origem, se seguimos a sua evolução e o seu fim e, sobretudo, se queremos o definir a fundo, ele se torna bem mais incerto: iniciado bem antes que o crítico Herwarth Walden2 inventasse o termo (em 1911), ele tem seu fim bem após a última obra expressionista patenteada.
  2. Não é um movimento de pintores nem, aliás, exclusivamente um movimento de artistas, mas um movimento social e ideológico ambicioso, que visa nada mais que revolucionar a vida ou, em todo caso, criar as condições intelectuais e, sobretudo, espirituais de tal revolução. Ele é desse ponto de vista inseparável de sua época (os anos dez e o início dos anos vinte), e as utopias revolucionárias efetivas, no século vinte, seguirão outros caminhos totalmente diferentes.
  3. O expressionismo no cinema é um fenômeno secundário, que só parece superficialmente com o expressionismo em geral; ele retoma alguns aspectos de suas manifestações picturais e plásticas, mas não do coração de suas ideias, de sua ideologia humanista, ingênua e pródiga. Apesar disso, o termo “expressionismo” e alguns dos aspectos visuais através dos quais ele se traduzia em filmes tiveram uma fortuna real e durável na crítica de cinema, sobretudo, mais tarde. Pôde-se defender a ideia de que existe uma herança expressionista mais ou menos direta em certas produções dos anos trinta e ainda quarenta, a saber, cinquenta, e continuamos hoje a batizar “expressionistas” obras onde observamos certos aspectos simplesmente expressivos.

Em resumo, há um paradoxo e um enigma do expressionismo, de um modo geral e no cinema: é um movimento típico e essencialmente alemão, muito delimitado no tempo, sem dúvida o mais importante de sua época; ele foi mais famoso do que verdadeiramente compreendido, e assim resta sempre “algo”, provavelmente seu valor o mais a-histórico, o que faz com que não possua nem verdadeiro início nem verdadeiro fim.

Alguns dados históricos

Em 9 de novembro de 1918 a república alemã é proclamada em Weimar; um “conselho dos intelectuais” se reúne em Reichstag. Ele requer a abolição das instituições universitárias, a nacionalização dos teatros e das profissões liberais, a convocação de um parlamento mundial; ele proclama que a arte deve ir ao povo e transformar o mundo. Programa de esquerda típico, cujas reivindicações serão as dos revolucionários de todo gênero (até maio de 68). Ora, em sua maioria, eram expressionistas, para quem no fundo a revolução política era apenas a continuação de uma revolução cultural engajada antes de 1914(LAQUEUR, 1978, p.25). De fato, a maior parte das obras dos artistas e escritores expressionistas data de antes da guerra; em 1918, vários estavam mortos (Franz Marc e August Macke na fronte, Georg Trakl suicidado, etc.), e os principais movimentos como Die Brücke (A Ponte) ou Der blaue Reiter (O Cavaleiro azul), dissolvidos.

O expressionismo é um fenômeno geracional, como o romantismo ou o surrealismo. Ele corresponde ao vivido de uma geração nascida em torno de 1890, a que tinha vinte anos antes da Grande Guerra; antes mesmo de sair traumatizada pelo horror (a palavra apocalipse já é pronunciada, como o será na guerra seguinte), eles são tomados por um sentimento de revolta em relação aos valores estabelecidos. Mas essa revolta não é negativa, niilista: o expressionismo aspira à realização de uma ética nova, no reino do “homem novo”. O expressionismo mobilizou poetas: Gottfried Benn, Theodor Däubler, Ivan e Claire Goll, Georg Trakl, Franz Werfel e vários outros, dos quais pintores como Else Lasker-Schüler e Jacob van Hoddis. Encontramos esses nomes, com alguns outros, numa célebre antologia, surgida em 1920 como um balanço, sob o título significativo Menschheitsdämmerung (Crepúsculo da Humanidade)3, evidente eco do Crepúsculo dos Deuses, de Wagner (1874), assim como do Crepúsculo dos Ídolos, de Nietszche (1888). Os subtítulos das partes são igualmente notáveis: Sturz und Schrei (Queda e Grito, eco de Sturm und Drang), Erweckung des Herzens (Acordar do coração, tema romântico tardio frequente), Aufruf und Empörung (Apelo e Revolta), Liebe den Menschen (Amor pelos Homens). O grito, a exaltação, a revolta, o amor do Homem: um duplo rosto, revoltado e utópico. Como outros movimentos ideológicos da mesma época (tais como os Wandervögel), o expressionismo é ao mesmo tempo idealista, “aveniriste4 e regressivo; ele é fascinado tanto pela grande cidade e o trem rápido (como os futuristas) quanto pelo sentimento do apocalipse, do horror, do fim do mundo. O fim do expressionismo é precoce: ele coincide, nos poetas e literatos, com o fracasso da revolução alemã, 1919 ou 1920. Trata-se, pois, pelo essencial, de um movimento dos anos dez do século vinte, mesmo se, ao longo dos anos vinte, continuamos a utilizar o termo, a assim batizar novas obras, sobretudo, obras de imagem – aí incluso e principalmente o cinema.

Assim o expressionismo não é fácil de delimitar, longe disso. De saída, é um termo “engloba-tudo”, que se assemelha com isso ao romantismo – outra etiqueta ligada a várias obras, as quais não se sobressaem nesse sentido senão muito livremente. É também – como “romântico” ainda – um termo cuja plasticidade mesma autorizou o emprego bem após o fim histórico do movimento que ele designou. Poder-se-ia assim qualificar quase indiferentemente de românticos ou de expressionistas muitos filmes dos anos vinte (a maior parte dos filmes fantásticos, ao menos), mas também filmes bem ulteriores como Sangue Ruim (Carax, 1984), Le Berceau de cristal (Garrel, 1976), A Hora do Lobo (Bergman, 1968), para permanecer na Europa, e sem falar do cinema noir à francesa de 1935 a 1955.5

O expressionismo foi propriamente um movimento? Não existe definição do interior: nenhum programa teórico absolutamente nítido, nenhum manifesto; Gottfried Benn pôde escrever que não havia nenhuma característica própria. Nenhuma definição do exterior, nem limites: esses são fluidos e moventes. O mais fácil é saber ao que ele se opõe (grosso modo, as normas estéticas em vigor): a beleza é uma mentira, apenas a feiura é verdadeira porque mostra o homem em sua fraqueza e sua miséria; a arte não tem por objetivo o deleite estético, ela deve exprimir as experiências religiosas, psíquicas, sociais, as mais fundamentais.

Se Rilke havia dito que a beleza era o começo do horror, os expressionistas foram mais longe: é no desequilíbrio, na dissimetria e no horror da tortura que se revelava a beleza autêntica.(LAQUEUR, 1978, p.129)

Programa negativo, fundado na dor, no sentimento de catástrofe; a epígrafe de Schönberg para sua Música de acompanhamento para uma cena de filme, em 1930 (Drohender, Gefahr, Angst, Katastrophe – perigo ameaçador, medo, catástrofe), sempre lida como premonição do nazismo por vir, é também um eco expressionista, uma lembrança do sentimento de apocalipse do qual é sempre a face negativa.6 Paradoxo: esse movimento que queria renovar o homem (como tantas utopias duvidosas do início do século, as quais iriam flertar com os totalitarismos) não é mais legível hoje senão como uma longa lamúria, um grito, um manifesto do terror e horror existenciais.

Um cinema expressionista?

Se o expressionismo é complexo, o problema é, pois, ainda mais grave a respeito do “cinema expressionista”. As pessoas que trabalham no cinema, na Alemanha em 1920, não têm em geral nenhuma relação com os meios artísticos e, em particular, nenhum contato com os poetas nem os pintores expressionistas – ou o que resta dele após o fim da guerra e a dissolução dos movimentos. Não há praticamente romance expressionista, não há então roteiro nem roteiristas; o próprio teatro expressionista não possui nenhum prolongamento no cinema. É no fundo por um acaso e também pela força das circunstâncias que existiu algo que se pôde chamar de “cinema expressionista”. A história é muito conhecida, eu a relembro brevemente.

No inverno de 1918-1919, dois jovens intelectuais se encontram em Berlim: Hans Janowitz, escritor quase desconhecido, e Carl Mayer, homem de teatro também desconhecido. Eles começam a escrever um roteiro de filme – iniciativa que não é rara no contexto (Pinthus havia publicado em 1913 um Kinobuch, um Livro de cinema feito de pequenos esboços de roteiros por escritores em voga – alguns dos quais expressionistas patenteados).7 Janowitz e Mayer confundem suas recordações: faits-divers (um crime sexual), as velhas ruas de Praga (Janowitz é de Praga), os horrores da guerra; eles pensam em um autor e pintor então influente, Alfred Kubin, e em suas visões de pesadelo (O Outro Lado, 1908); eles se lembram também do filme de Paul Wegener, O Estudante de Praga e O Golem, precursores da corrente “demoníaca”, para a qual eles vão dar uma contribuição maior. Finalmente a história que eles concebem é a de um ilusionista que força seu médium, um sonâmbulo, a cometer crimes; esse ilusionista é perseguido por um estudante cujo amigo foi assassinado e cuja noiva escapou por pouco da agressão; ele se refugia num asilo; o estudante entra no asilo para se dar conta de que o ilusionista criminoso não é outro senão o diretor do asilo. Esse roteiro de dois iniciantes é aceito por Erich Pommer, responsável pela produção da firma Decla (Deutsche Eclair). Pommer, além disso, engaja como cenógrafo, talvez por sugestão de Janowitz e Mayer, Hermann Warm8, do grupo de vanguarda berlinense Der Sturm (A Tempestade)9, depois Walter Röhrig10 e Walter Reimann.

Esse filme, O Gabinete do Doutor Caligari, deu origem a uma corrente e foi logo qualificado de expressionista – em referência ao expressionismo pictural, como reivindicava um dos três pintores, Walter Reimann (o mesmo cuja carreira foi em seguida a menos notável) – sem que essa etiqueta seja forçosamente exata. Os cenógrafos trabalharam segundo uma diretiva simples: “Das filmbild muss graphik werden” (a imagem de filme deve se tornar grafismo).11 Essa deformação visual atualizada pela cenografia, o irracionalismo latente e ameaçador, a angústia e o pesadelo, e uma atmosfera de irrealismo que se pôde qualificar de “extática”(GERSCH, p.156) se encontrarão em vários filmes da Alemanha de Weimar, sobretudo, na segunda metade da década de vinte. Falar de expressionismo, contudo, não é simples. Falta evidentemente nesse filme como na maior parte dos que se etiquetará da mesma maneira nos anos seguintes – Genuine, crime e castigo, O gabinete das figuras de cera, O mostrador de sombras, Crônica de Grieshuus, A Casa voltada para a Lua – um traço essencial, intelectual e ideológico do movimento: a revolta contra a burguesia. Desse ponto de vista, o único filme que pode ser ligado de maneira convincente ao programa expressionista é Da aurora à meia-noite, adaptação de uma peça de teatro (ou, o teatro expressionista manifesta um vivo engajamento social). Esses filmes não têm a dimensão utópica do expressionismo, não traduzem o desejo do Homem Novo e nem mesmo, ou ainda pouco e de forma derrisória, os gritos que sua miséria arranca do homem.

O expressionismo foi um movimento muito sério e certamente Caligari não é suficiente para lhe dar uma versão cinematográfica. Certo Eckart von Sydow (tio, creio eu, do famoso ator de Bergman) escreve em 1918 que o expressionismo é um movimento religioso, a saber, místico, cuja religiosidade não é cristã de maneira unívoca e ainda menos nietzschiana”(SYDOW, 1976, p. 102). A fórmula é um pouco opaca, ela diz de modo aproximativo que o expressionismo não é questão de casas tombando ou de escadarias obscuras. Esse von Sydow me interessa, entre os inumeráveis críticos da época, devido a uma distinção que ele propõe entre expressionismo absoluto e expressionismo extático; o primeiro visa a simplicidade, e toma a via da abstração; o segundo visa a grandeza e é naturalista. Absoluto e abstrato, extático e naturalista: o cinema não é abstrato e o expressionismo no cinema, se ele é possível, será pois “extático”, quer dizer, ele visará não a simplicidade, mas a grandeza – e aqui, com efeito, pode-se reconhecer um certo delírio de grandeza, uma certa hubris visual que possuem todos os filmes às vezes qualificados de expressionistas, até os de menor qualidade (até Crime e Castigo).

A herança imediata mais forte do expressionismo se encontra ainda não nos subprodutos do caligarismo, com suas estridências limitadas às curiosidades cenográficas, mas nos filmes que aceitam esse “êxtase” formal. Ora, no cinema mudo, o elemento mais evidente, mais natural do trabalho formal, além do cenário, é o ator; a encenação – da qual já se tem o conceito e até certas regras de estúdio muito precisas – permanece ainda muito centrada essencialmente em torno da “mise en jeu” (interpretação) e da “mise en geste” (gestualidade), retomando os termos de Eisenstein(EISENSTEIN, 1986). Em meados da década de vinte, há a tentativa de mobilização expressiva do quadro, que se chamará enfesselte Kamera, câmera descontrolada – mas ela também não diz respeito a muitos filmes12, e permaneceu uma espécie de curiosidade estética um pouco extrema, sem alcance no imediato (tanto que a chegada iminente do sonoro iria a deixar fora de moda). O signo mais corrente, até mesmo o mais constante, do expressionismo naturalista e “extático” é, pois, uma certa interpretação exagerada do ator. As filiações e passagens aqui são tão numerosas quanto surpreendentes. Eis aqui uma: em 1925, Robert Wiene (o cineasta de Caligari) assina um Orlacs Hände (As Mãos de Orlac, adaptação do romance de Maurice Renard sempre filmado); ele aí encontra Conrad Veidt no papel do personagem assombrado, atordoado por uma força que lhe excede e manipula (as mãos de um transplante – mãos de criminoso, se tornando criminosas apesar dele). Dez anos mais tarde exatamente, Karl Freund, que fotografou As Mãos de Orlac para Wiene, dirige na América um remake muito literal com Peter Lorre, Mad Love; na câmera, dessa vez, Gregg Toland. Cinco anos mais tarde, Toland, que choca pela semelhança virtual de Welles com Peter Lorre, sugere ao autor de Cidadão Kane a retomada de elementos visuais de Mad Love (entre outros um papagaio branco que pertencia a Lorre); no fim do filme, a semelhança dos dois atores é reforçada pela maquiagem(KAEL, 1974, pp.112-113) Welles expressionista? Sem dúvida – mas por algumas outras razões(COZARINSKI, p. 141). O que se produz aqui é de outra natureza, mais subterrânea: uma migração, para retomar o termo proposto por Aby Warburg, de Veidt-Cesare a Veidt-Orlac depois de Lorre-Orlac a Welles-Kane: transcendendo os físicos muito diferentes desses três grandes histriões, a interpretação exagerada, o êxtase do ator, a expressão inteira posta nas mãos, no rosto maquiado, no corpo transformado em manequim vivo.

Sem dúvida, os diretores de fotografia e os cenógrafos exercem um papel importante na migração dos topoi expressionistas, ou reputados como tal, da Alemanha de Weimar (onde eles iriam se centrar no naturalismo do final dos anos vinte e na Nova Objetividade) até Hollywood e talvez alguns outros lugares. Em A Tela Demoníaca, Lotte Eisner dedica todo um capítulo à paixão dos diretores alemães (aí incluso o teatro) pelas escadarias. Sem oferecer uma interpretação única nem definitiva, a autora observa com justeza que o que é provável é que a escadaria possui um duplo valor cênico e simbólico: ela estrutura o espaço de maneira simples e imediata, e metaforiza de maneira transparente a desestabilização psíquica. Para se assegurar disso basta ver como esse topos habita tanto um filme que ainda se quer expressionista, como Crime e Castigo (1923 – cenários de Andréï Andréiev e atores russos) quanto Escada de Serviço puramente naturalista de Leopold Jessner (Hintertreppe, 1921 – roteiro de Carl Mayer, cenários de Paul Leni). Mas a escadaria é um velho símbolo, que já se encontra abundantemente na pintura (ver o famoso Filósofo em Meditação de Rembrandt, de 1632, no Louvre), e que se encontrará muito tempo ainda no cinema, sem que seja preciso obrigatoriamente aí observar uma reminiscência ou uma filiação expressionista. Seria interessante, por exemplo, confrontar a escadaria do usuário dostoievsquiano no filme de 1923 e a retomada do mesmo motivo em Vício Frenético, de Abel Ferrara, (1992): na cena onde o herói corre da casa de seu amigo dealer e se esconde nos ângulos de uma escadaria desgastada, filmada em grande ângulo, podemos se quisermos detectar como um eco, sem dúvida subconsciente, não da escadaria de Wiene, mas de certas escadarias que o cinema de gênero hollywoodiano imita, até mesmo após a chegada da cor.

E, então, quando os gestos e as posturas excessivas dos atores tiverem passado, quando os clichês cenográficos antediluvianos tiverem se esgotado, restou essa ideia, a mais elementar de todas (e tão justa, apesar de tudo), que o expressionismo é muito simplesmente a arte da luz e da sombra: que é nos jogos do preto e do branco que o encontramos o mais evidentemente. Welles, Garrel, Carax, Bergman, que eu já citei, souberam cada um a seu modo que eram longínquos herdeiros do expressionismo – mas poderiam ser acrescentados vários outros, por vezes inesperados, tanto a arte do low key, quanto dos quadros contrastados e do jogo exagerado tão utilizados nas cinematografias do mundo inteiro, a mais simples e a mais constante das receitas expressivas.

Onde começa o expressionismo? Onde ele termina?

A dupla questão que devia me economizar o terror do arbitrário ou da dúvida se revelou em si mesma bem duvidosa. Se a efetuamos, enquanto historiador da cultura, certamente ela possui respostas muito unívocas, embora variáveis segundo os domínios. Mas, no cinema, não é sempre certo que o expressionismo tenha existido, a não ser o tempo de um filme. Lotte Eisner, nos lembramos dela, não salva finalmente nem mesmo Caligari, mas somente Da Aurora à Meia-Noite, que é dificilmente um filme (do diretor de teatro Karl Heinz Martin, ele adapta muito teatralmente uma peça de Georg Kaiser). Todo o resto é medieval, fantástico, demoníaco, unheimlich, quer dizer, de fundo romântico. Tal é a resposta minimalista, consistindo em desafiar as certezas de datas, os fatos revelados e a plena consciência das realizações por seus realizadores: se o expressionismo pictural ou poético, embora muito breves, são facilmente identificáveis, não há quase cinema expressionista.

Mas há, com certeza, outra resposta, radical essa e através da qual o expressionismo desponta desde que um filme se exerça na sombra, que afetos noirs podem ser sentidos, que “os sorrisos são maiores que as bocas” (para retomar uma fórmula dada, creio eu, por George Grosz). Ou seja, uma resposta que não é um problema de história, mas de limites, de forças e de intensidades. Nessa perspectiva, o expressionismo não é um movimento artístico rotulado, datado, etiquetado; é o nome de código de uma tendência da imagem cinematográfica a exercer o aspecto intenso: religuemos as páginas de Deleuze onde ele assimila – inexatamente no olhar da historiografia, mais produtivamente no olhar de sua estética vitalista – expressionismo e imagem intensa, quer dizer, imagem entregue ao figural. Eu não estou certo de estar de acordo com essa tradução, um tanto precisa demais a meu gosto, do epíteto. Ademais, eu creio que, na falta de poder se entender absolutamente sobre um sentido bem definido, dotado de uma história clara e consensual, não serve para nada esconder a face e exercer o papel dos puristas (como eu o fazia noutra época). A palavra “expressionismo” é vaga? Sem dúvida, e ela o permanecerá eternamente a propósito do cinema, uma vez que nele não é inteiramente legítima. No lugar de maldizê-la, saibamos então a aclimatar, a fazer funcionar, lhe dar sentido – do lado do intenso, do lado do figural ou em direção a outras concepções mais comuns da expressão, não importa. Tentemos apenas não a aplicar a tudo, de maneira indiscriminada; isso seria lhe privar de todo conteúdo.

Uma última observação: o problema eterno com o expressionismo é seu sufixo. Contrariamente aos outros “-ismos” do início do século vinte13, esse não é um movimento moderno. Não podemos o incluir na grande corrente de tradições traídas e de traições tradicionais (para plagiar Thierry De Duve14) que caracteriza o jogo da arte moderna em seu século. O expressionismo não se opõe a nada (e, sobretudo, não se opõe ao impressionismo – mesmo se essa é verdadeiramente, como se diz, a origem da palavra). Ele não dá em nada (a Neue Sachlichkeit não é a contestação nem o deslocamento). É uma investida obscura, opaca, que atualiza novamente ideias, sensações e sentimentos românticos, mas também, eu deveria ter insistido nisso mais longamente, ideias do simbolismo. O cinema, que não tem movimentos artísticos seguramente constituídos – até suas vanguardas são subjugadas pelas vanguardas artísticas, por não possuir um programa verdadeiro –, foi no fundo o revelador dessa anomalia, de um movimento artístico que não entra, ou o faz de modo inconveniente, na história dos movimentos artísticos. Eis a razão pela qual continuaremos, sem dúvida, sem muito escrúpulo, a assistir a filmes expressionistas cada vez que o aspecto intenso, a expressão ou mais subjetivamente a emoção nos os sugerirá.

Tradução parcial do prólogo do livro Le Cinéma expressionniste – De Caligari à Tim Burton (2008), organizado por Jacques Aumont e Bernard Benoliel.

Jacques Aumont é um teórico do cinema e universitário francês. Autor de cerca de vinte obras sobre o cinema e as imagens, fora recompensado com o Prêmio Balzan em 2019. Mais recentemente publicou “Doublures du visible – Voir et ne pas voir en cinéma” (2021) e “Comment pensent les films – Apologie du filmique”(2021).

Fernanda Martins é professora do Colegiado em Cinema e Audiovisual da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, onde exerce igualmente atividades de pesquisa e de extensão. Compõe o Comitê de Assessoramento da ARPIA – Association de Recherche et Production d’Images en Anthropologie et Art (Paris).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

EISENSTEIN,S. M.“Questions de mise en scène: «mise en jeu» et «mise en geste», Le Mouvement de l´art, trad. por A. Zouboff e M. Iampolski, Éd. Du Cerf: 1986.

LAQUEUR, Walter. eimar. Une histoire culturelle de l´Allemagne des années 20 (1974), trad. por G. Liébert, Robert Laffont: 1978.

KAEL, Pauline. “Raising Kane”, em Citizen Kane Book, Toronto-New York-London, Bantam Books: 1974.

SYDOW, Eckart von “Das religiöse Bewusstsein der Expressionismus“ (1918), em Otto F. Best, Theorie des Expressionismus, Reclam: Stuttgart, 1976.

NOTAS DE FIM

1 “Jamais um época se exprimiu mais pura e fortemente que a da dominação burguesa no impressionismo. A dominação burguesa era incapaz de produzir música ou poesia […] mas na pintura impressionista ela deu o melhor de si, de seu mal-estar, um signo de tal perfeição que talvez um dia, quando a humanidade será liberada dela […] ela poderá em nome desse signo brilhante ser perdoada.” Hermann Bahr, Expressionismus, Delphin Verlag, München, 1920. p. 111-112 ( tradução do alemão feita por Jacques Aumont).

2 Herwarth Walden (1878-1941), editor da revista Der Sturm (A Tempestade), é também o autor de uma palavra célebre – sempre atribuída a Paul Klee que com efeito a parafraseou: “Kunst ist Gabe, nicht Wiedergabe.” (“A arte é dom, e não cópia” – produção, e não reprodução.). Atribui-se também a Wilhelm Wörringer (1881-1965) a paternidade do termo.

3 Kurt Pinthus (1886-1975), Hg., Menschheitsdämmerung, Berlim, Rowohlt, 1920; reed. Revista por Pinthus, Hamburgo, Rowohlt Taschenburg Vlg., 1959.

4 Ao pé da letra se traduz “futurista”, ou seja, voltado para o futuro.

5 Ver logo adiante o texto de Noël Herpe (p. 129).

6 E o próprio Schönberg é freqüentemente ligado à história do expressionismo, devido a Erwartung (1909) e a Pierrot lunaire (1912), mas também devido a suas pinturas dos anos dez.

7 Kurt Pinthus, Hg., Das Kinobuch (1913), Zürich, Die Arche, 1963. Entre os que contribuíram: Max Brod (o futuro amigo e editor de Kafka), Else Lasker-Schüller (que acabava de se divorciar de Walden), Walter Hasenclever (autor em 1914 da peça expressionista O Filho), mas também Arnold Höllriegel (autor prolífico de folhetins) ou Ludwig Rubiner (o qual devia, por exemplo, em 1919 dirigir a coletânea pró-comunista Camaradas da humanidade, Poemas par a Revolução).

8 Warm (1889-1976) trabalhou também em As Aranhas (Lang, 1919), Schloss Vogelöd (Murnau, 1921), Fantasma (Murnau, 1922), A Paixão de Joana d´Arc (Dreyer, 1927) e Vampiro (Dreyer, 1930).

9 Ligado, eu assinalei (nota anterior supra), a Herwarth Walden, então mais ou menos “expressionista”.

10 Röhrig (1893-1945) será em seguida cenógrafo de numerosos filmes, entre os quais O Último Homem (ou A Última Gargalhada, Murnau, 1924), Fausto (Murnau, 1926), Aurora (Murnau, 1929); seu último trabalho é no Rembrandt de Steinhoff (1942).

11 Frase notável, no que ela é eco literal da célebre frase do filme: “Du musst Caligari werden.” Cf. Rudolf Kurtz, Expressionismus und Film, Berlim, Lichtbildbühne, 1926, reeditado por Chronos Verlag, Zurique, 2007.

12 Entre os filmes sempre citados, O Último dos Homens (ou A Última Gargalhada, Murnau, 1924) e, sobretudo, Variedades (Ewald-André Dupont, 1925).

13 E mesmo de um pouco mais tarde, cf. o letrismo.

14 Th. De Duve, Au nom de l´art, Éd. de Minuit, 1989.

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